A aprovação de Kavanaugh à Suprema Corte nos EUA provocou muitos protestos. Além de ajudar a oficializar a tortura, juiz apoiou ainda o cínico ataque à Constituição, o chamado Ato Patriótico
Sob protestos de manifestantes e da principal entidade de direitos civis dos EUA, a ACLU, tomou posse na Suprema Corte o juiz Brett Kavanaugh, cujo processo de aprovação foi transformado num verdadeiro show de horrores, sintomático da degradação da democracia nos EUA, e que aprofunda o hiato entre a sociedade e o establishment decadente. Apesar de que quase na totalidade a oposição a seu nome decorreu das acusações de violação contra mulheres, ao estilo # MeToo, outro aspecto repugnante da carreira dele – sua condição de virtual padrinho dos Memorandos da Tortura do governo de W. Bush, como conselheiro jurídico da Casa Branca – foi praticamente ignorado.
A própria ACLU não se referiu a essa questão ao deliberar – o que só fizera três vezes antes em um século – pela rejeição do nome dele à Suprema Corte, por considerar que havia interrogações suficientes sobre uma nomeação que ocorre “uma vez em uma vida” e pode mudar os rumos das decisões sobre direitos e constitucionalidade por muitos anos à frente. Contestação que não fez ao outro indicado do presidente Trump, e igualmente reacionário, Neil Gorsuch.
ESTRANHO SILÊNCIO
Há um silêncio gritante de parte de democratas e republicanos sobre a evidente inaptidão para o cargo de mais alto magistrado da nação norte-americana de alguém ligado aos Memorandos da Tortura, que oficializaram em 2002 o espancamento até à morte, o waterboarding (simulação de afogamento) e outras atrocidades que a CIA e Hollywood glamourizaram como feitos maiores da Guerra ao Terror. Pode-se discutir se o pai dos Memorandos da Tortura foi Dick Cheney, e a mãe, Alberto Gonzales, ou vice-versa, mas não há como esconder Kavanaugh, que continuou na Casa Branca até 2006 e era tido como braço direito de Gonzales, o secretário de Justiça de W. Bush.
Se os Memorandos da Tortura fossem considerados, absurdamente, insuficientes para sua rejeição, ainda haveria sua contribuição para o atentado à Constituição dos EUA, cinicamente chamado de Ato Patriótico.
Compreende-se a disposição de Trump para ter Kavanaugh na Suprema Corte, com tanta gente com gana de ver seu impeachment. Afinal, o jurista pau pra todo obra já mostrou sua serventia redigindo as passagens mais escabrosas do relatório Kenneth Starr, sobre o relacionamento de Bill Clinton com uma estagiária. E também na equipe que arrancou da Suprema Corte a bênção ao descarado roubo da eleição a presidente de Al Gore, em favor de W. Bush, na Flórida.
Outra motivação para sua rejeição é que está comprometido com tudo que não presta, e defendeu publicamente o grampeamento em massa cometido pela NSA, elogiando sua “constitucionalidade”. Também não esconde sua repulsa aos direitos dos trabalhadores ou o viés em favor das corporações.
Correntes de opinião nos EUA temem que ele reverta a decisão da Suprema Corte que descriminalizou o aborto. Assim, acredita-se que a mais alta instância de justiça nos EUA poderá se mover, ainda mais, para a direita, porque nos temas identitários a correlação de forças teria passado para 5 a 4 em favor dessa gente. Nada tão surpreendente para uma Corte que ousou revogar a Era Lincoln e impor as leis racistas Jim Crow, até o movimento dos direitos civis, encabeçado por Martin Luther King, Malcom X e outros grandes, ter posto no chão o odiento apartheid no sul do país nos anos 1960.
Antigamente, costumava-se dizer que não bastava a mulher de César “ser virtuosa”, ela também tinha que “parecer virtuosa”. Com seu extenso currículo, falta quase tudo a Kavanaugh para ao menos parecer virtuoso. O que ficou patente em seu deprimente depoimento no Senado, televisionado, diante da acusadora, Christine Blasey Ford. Após o FMI encenar uma “investigação” que evitou ouvir qualquer um que pusesse em risco a nomeação – outras duas mulheres o acusavam -, votação no Senado o aprovou por 50 a 48, com uma dissensão de cada lado – a margem mais estreita de confirmação para qualquer juiz da Suprema Corte em 137 anos. Os protestos vão continuar: “Kava-Nope”.
ANTONIO PIMENTA