Mesmo tendo, pela própria lei inglesa, direito à liberdade a partir do dia 22 de setembro, o jornalista e fundador do site WikiLeaks, Julian Assange, responsável por algumas das mais contundentes denúncias dos crimes de guerra dos EUA no Iraque e Afeganistão, ficará preso indefinidamente por decisão da juíza Vanessa Baraitser e à mercê da extradição pedida por Washington.
Assange está encarcerado desde abril na prisão de segurança máxima de Belmarsh, considerada a ‘Guantánamo britânica’. A carimbadora de perseguições políticas declarou que a condição de Assange mudou para “prisão para extradição”. Dado que o processo de extradição provavelmente envolverá uma longa batalha legal, a decisão de Baraitser potencialmente mantém o jornalista em Belmarsh pelos próximos anos.
Do outro lado do oceano, essa já é a situação de Chelsea Manning, a denunciante dos crimes de guerra expostos via WikiLeaks, que se encontra em um cárcere do estado da Virgínia por tempo indeterminado, até que admita mentir para culpar Assange no processo secreto contra o jornalista, só recentemente trazido a público, e que visa incriminá-lo por ‘espionagem’. Ela havia sido indultada por Obama no final de seu governo.
Foi graças ao WikiLeaks e a Assange que monstruosidades como o vídeo do “Assassinato Colateral” – a execução de uma dezena de civis em Bagdá, inclusive dois jornalistas, filmada desde o próprio helicóptero de guerra norte-americano -, foi mostrado ao público e tomou as páginas dos principais jornais do mundo e as telas das maiores redes de tevê.
CHICANA
A audiência de extradição está marcada para fevereiro do ano que vem. A libertação de Assange deveria ocorrer por já ter completado a metade da iníqua sentença de 50 semanas de cadeia, por ter pedido asilo na Embaixada do Equador, sentença emitida no mesmo dia em que o governo Moreno o entregou à polícia secreta inglesa, atendendo Trump.
Normalmente, a falta a uma audiência de fiança só é punida com uma multa – mas não no caso de Assange.
Que a justiça britânica é uma excrescência, é sabido desde os absurdos jurídicos cometidos durante o levante contra a ocupação do norte da Irlanda, em que inocentes eram julgados e condenados com base em falsidades e montagens, passando pela recusa em punir os assassinos do brasileiro, executado pela polícia, Jean Charles.
A prisão de Assange reafirma isso e ele é hoje o mais conhecido preso político nos cárceres de Sua Majestade.
Para atender a ordem do então governo Obama de calar Assange – aquele que expunha os crimes dos EUA sob W. Bush -, a ‘justiça’ britânica chegou ao cúmulo de usar a versão em francês da ordem judicial proveniente da Suécia (que não estava assinada por um juiz, mas por um promotor e, assim, sem valor), porque se usasse o idioma inglês a chicana ficaria inviabilizada.
Assange decidiu-se a exercer seu direito internacionalmente reconhecido de pedir asilo para escapar de perseguição política, quando tanto Estocolmo quanto Londres se recusaram a garantir que não seria, a partir desse pretexto, extraditado para os EUA.
Como Manning já estava preso desde maio de 2010 e foi condenado a 35 anos de cárcere, a perseguição a Assange era só o segundo ato da caçada aos denunciantes das atrocidades dos EUA, a “nação excepcional”.
‘RESPONDER PERGUNTAS ?’
O caráter de provocação não era de difícil percepção. O mais famoso jornalista do momento, cujas revelações de crimes de guerra causavam impacto no mundo inteiro, ameaçado de extradição para ‘responder perguntas’ sobre se relações sexuais que manteve durante visita a Estocolmo haviam sido ou não consensuais, e sem que quaisquer provas fossem apresentadas. Não havia condenação, não havia nada. Antes de deixar Estocolmo, ele prestara todos os esclarecimentos pedidos e havia sido autorizado a partir.
A ‘extradição para responder perguntas’ era só uma estratagema, como se tornou evidente, desde que se tornou público que a então secretária de Estado Hillary Clinton chegara a sugerir que fosse usado “um drone” para silenciá-lo. Que um processo secreto seguiu através de nove anos e dois governos. E que o atual secretário de Estado do regime Trump, Mike Pompeo, chamou o WikiLeaks de “serviço de inteligência hostil não-estatal” e não protegido pela 1ª Emenda, a da liberdade de expressão.
Também é sabido que a Suécia tentou desistir da falcatrua, mas o governo de Londres pressionou para que continuasse. Em dezembro de 2016, os promotores suecos finalmente aceitaram ouvir Assange – como ele se dispusera desde o início – em Londres, dentro da embaixada, e no ano seguinte, em abril, o processo foi declarado encerrado. Agora, meio que foi reaberto.
Em 2016, o Grupo de Trabalho da ONU sobre Prisão Arbitrária equiparou a estadia forçada de Assange na embaixada – Londres se negava a conceder salvo conduto – a uma “detenção arbitrária” e contrária à lei internacional.
Jamais foi explicado porque os tribunais britânicos determinaram que ele seria extraditado para a Suécia para ‘responder perguntas’ de uma ‘investigação preliminar’. Por causa de uma camisinha – na qual o DNA de Assange não foi encontrado -, desmoralizando a acusadora mais agressiva, é que não foi. A outra, em gravação, disse que apenas queria saber se poderia obter com que ele fizesse um teste de HIV, não queria incriminar ninguém, e a polícia é que tinha insistido.
CABLEGATE
Após a inusitada sentença, o WikiLeaks denunciou que a magistrada “diz que Assange permanecerá na prisão indefinidamente. Ele está sofrendo formas cada vez maiores de privação de liberdade desde sua prisão, nove anos atrás, uma semana depois de começar a publicar o Cablegate”.
O chamado “Cablegate” se refere à publicação do WikiLeaks em 2010 de centenas de milhares de telegramas diplomáticos dos EUA, expondo a ingerência do Departamento de Estado na vida dos mais diversos países, subvertendo o processo democrático, montando golpes e provocações, corrompendo a rodo e ameaçando e chantageando.
A parcialidade da juíza nomeada para dar um trato em Assange ficou patente na declaração dela de que “na minha opinião, tenho motivos substanciais para acreditar que, se eu soltar você, você irá fugir novamente”.
Alegação mentirosa e fraudulenta, como visto acima, com alguns dos principais relatores da ONU de Direitos Humanos atestando a condição de Assange de perseguido político.
Se em algum momento houve dúvida se o pedido de asilo era necessário para proteger Assange de um julgamento nos EUA com motivação política, isso acabou a partir das 17 acusações de espionagem contra Assange do regime Trump em abril, depois de nove anos de processo secreto, que o ameaçam com 175 anos de prisão.
TORTURA SISTEMÁTICA
O relator especial da ONU sobre tortura Nils Melzer, que assinalou no início deste ano que Assange foi vítima de uma prolongada campanha de “tortura psicológica”, condenou repetidamente as autoridades britânicas por encarcerá-lo em um presídio de segurança máxima.
Nos últimos cinco meses, Assange esteve em virtual confinamento solitário, sendo ainda lhe negado acesso a um computador e à biblioteca da prisão. Teve suas visitas muito restringidas sob vários pretextos, assim como a preparação de sua defesa contra a extradição. Visitantes recentes do jornalista, incluindo o cineasta John Pilger e o irmão de Assange, Gabriel Shipton, denunciaram que seu estado de saúde vem se deteriorando, apesar de o fundador do WikiLeaks manter um espírito combativo.
No recente ato diante do Ministério do Interior britânico, em que o ex-líder da banda Pink Floyd, Roger Waters homenageou Assange, manifestantes exigiram a imediata libertação e o fim de toda a perseguição ao jornalista.
Pilger relatou aos presentes a mensagem de Assange, de que o perigo vai muito além dele próprio, trata-se de que a liberdade de todos os editores e jornalistas no mundo inteiro está em risco, diante da tentativa de chamar a publicação de denúncias de ‘ato de espionagem’, ocorra onde ocorrer, com todos sujeitos ao arbítrio extraterritorial de Washington. Melhor dizendo, de Trump.
A.P.