
O ex-secretário de Estado dos Estados Unidos esteve no comando das operações de lesa-humanidade como as que levaram Pinochet ao poder no sanguinário golpe de Estado que assassinou Allende e naquela de devastação e extermínio no Vietnã
Faleceu em Connecticut na quarta-feira (29), aos 100 anos, o notório criminoso de guerra, ex-secretário de Estado de Nixon e conselheiro de Reagan, além de protegido dos Rockfellers, Henry Kissinger, que no auge da Guerra Fria serviu de mestre de cerimônia das manobras do imperialismo norte-americano para postergar sua decadência e a conquista, pelos povos, da liberdade, soberania, igualdade e fraternidade.
Nos últimos anos, diante da completa mediocridade das figuras centrais dos países imperialistas em crise, a mídia do establishment não se cansava de apresentar Kissinger como um “estadista”, um artesão da “realpolitik”.
Mas nada disso, nem mesmo o Nobel da Paz com que foi agraciado por ter sido obrigado a assinar a retirada dos EUA do Vietnã, pode obscurecer o fato de que ele tem as mãos manchadas de sangue do Vietnã, Camboja, Laos; Chile e Argentina; África do Sul, ‘Rodésia’ e Angola; Palestina, Bangladesh e Timor-Leste, só para ficar nos casos mais emblemáticos.
Inquestionáveis permanecem as denúncias sobre ele. Em seu livro sobre Kissinger, Christopher Hitchens o acusou de crimes de guerra, crimes contra a humanidade e ofensas “contra o direito comum, consuetudinário ou internacional, incluindo conspiração para cometer assassinato, sequestro e tortura”.
Também, apesar da vaidade com que Kissinger falava sobre seus momentos melhores, como a restauração de relações com a China e visita de Nixon a Mao, as décadas se passaram e, pelo menos desde Obama, há poucas dúvidas em Washington sobre quem se saiu melhor.
MORALIDADE “IRRELEVANTE”
Em artigo na New Yorker, o escritor Thomas Meaney explicitou outra faceta do ex-secretário de Estado, já manifestada desde sua fase acadêmica, em Harvard.
Para Kissinger, “a indeterminação moral era uma condição da liberdade humana”. A legitimidade da ordem internacional – ele insistia – exigia apenas o acordo das grandes potências. Quanto à moralidade, era irrelevante.
Sobre o papel de Kissinger na guerra do Vietnã, o historiador e jornalista Nick Turse registrou que “pelo menos 3,8 milhões de vietnamitas morreram violentamente em guerra, de acordo com pesquisadores da Harvard Medical School e da Universidade de Washington” e usando uma extrapolação muito conservadora, 5,3 milhões de civis foram feridos durante a guerra, para um total de 7,3 milhões de vítimas civis vietnamitas em geral. A esses números podem ser adicionados cerca de 11,7 milhões de vietnamitas forçados a deixar suas casas e transformados em refugiados, até 4,8 milhões pulverizados com herbicidas tóxicos como o agente laranja, cerca de 800.000 a 1,3 milhão de órfãos de guerra e 1 milhão de viúvas de guerra.
OPERAÇÃO CARDÁPIO
Kissinger também foi um sustentáculo da política secreta de Nixon de estender os bombardeios à neutra Camboja, o que se seguiu de um golpe de estado para instalar um general pró-americano em Pnon Penh. O pretexto era bloquear o reabastecimento das forças da guerrilha que atuava no sul.
Kissinger é considerado o principal arquiteto do plano da interromper essa linha de abastecimento, na assim chamada Operação Cardápio – uma campanha secreta de bombardeios com “café da manhã, almoço, jantar, lanche, sobremesa e ceia”, aprovada em uma reunião no Salão Oval em 17 de março de 1969
Como registra o diário do chefe de gabinete de Richard Nixon, H. R. Haldeman, diz: “Dia histórico. A ‘Operação Café da Manhã’, de K[issinger], finalmente saiu às 2h. K realmente animado, assim como P[residente].”
No dia seguinte, Haldeman escreveu: “A ‘Operação Café da Manhã’ de K foi um grande sucesso. Ele veio radiante com o relatório, muito produtivo.”
ESPETÁCULO À PARTE
Os bombardeios secretos deixaram cerca de 700 mil mortos, com milhões de deslocados, provocando tamanha desestruturação no Camboja, que abriu caminho para a tragédio do Khmer Vermelho.
Para Kissinger, o Camboja era um “espetáculo à parte”, para usar o título do livro condenatório de William Shawcross que expõe a história da guerra secreta dos Estados Unidos com o Camboja de 1969 a 1973, com 2.756.941 toneladas de munição lançadas sobre 113.716 alvos no país.
Os bombardeios secretos incluíam o Laos, onde os alvos eram quase inteiramente aldeias civis habitadas por camponeses, principalmente idosos e crianças que não conseguiam sobreviver na floresta. Dezenas de milhares de laosianos, que sequer sabiam onde a América ficava, foram mortos e, até hoje, bombas largadas pelos americanos seguem fazendo vítimas.
“A IRRESPONSABILIDADE DO POVO CHILENO”
Sobre quem era Kissinger, uma frase dele, de quando Allende foi eleito em 1970 no Chile, traduz exemplarmente seu caráter: “Não vejo porque precisamos ficar parados vendo um país se tornar comunista devido à irresponsabilidade de seu próprio povo”.
Então coordenador do “Conselho de Segurança Nacional” de Nixon, coube a Kissinger supervisionar as ações da CIA para o golpe que levaria Pinochet ao poder.
Em 15 de setembro de 1970 – dois meses, portanto, antes da posse de Allende – o diretor da CIA, Richard Helms, resumiu, em algumas anotações manuscritas uma reunião que tivera com Nixon: “1 em 10 chances talvez, mas salvar o Chile! valor do gasto não preocupar-se não envolvimento da embaixada $10.000.000 disponíveis, mais se necessário trabalhar ‘full-time´ – os melhores homens que nós temos plano de jogo fazer a economia gritar 48 horas para o plano de ação”.
No dia 18 de setembro, Helms se reuniu com Kissinger para lhe passar “a visão da Agência de como esta missão deve ser cumprida” e seus desdobramentos: assassinato do comandante do exército René Schneider, bloqueio econômico, provocações, cooptação de Pinochet, milhares de mortos a partir do golpe e 17 anos de fascismo e neoliberalismo.
“SE APRESSEM”
Também é conhecido o papel de Kissinger, já como secretário de Estado de Gerald Ford, após a renúncia de Nixon, diante da eleição de James Carter, orientando os golpistas argentinos a se “apressarem” no que precisava ser feito. Como se sabe, foi o que a gorilada fez: 30 mil mortos e desaparecidos, fascismo, tortura a rodo e os bebês que as Mães da Praça de Maio precisaram, depois, resgatar.
É creditado, ainda, a Kissinger, o aval para a Operação Condor, o consórcio de assassinatos e sequestros de opositores montado pelas ditaduras latino-americanas.
Outra carnificina em que não faltou o endosso de Kissinger à invasão de Timor Leste, prestes a se tornar independente de Portugal, pelas tropas do ditador indonésio Suharto em 1975, em que 200 mil pessoas foram mortas. Há o registro de que Kissinger disse a Suharto que era “importante que tudo que você fizer tenha sucesso rapidamente”.
APOIO AO APARTHEID
Também foi sob Kissinger que a política de apoio ao apartheid na África do Sul e aos segregacionistas da “Rodésia” – agora, Zimbábue – ganhou força, assim como a intervenção de Washington para barrar a libertação de Angola.
Kissinger fez uma visita oficial à África do Sul em pleno apartheid em 1976, poucos meses depois que a polícia do regime matou mais de 170 manifestantes negros, a maioria crianças em idade escolar, na revolta do Soweto.
Outro ditador, o paquistanês Yahya Khan, também recebeu aval de Kissinger para sua tentativa de suprimir a revolta de Bengala, que deu origem a Bangladesh, graças ao apoio da Índia e da União Soviética. Era conhecida a bronca de Kissinger com Indira Ghandi, que ele chamava de “cadela”.
A NEGOCIAÇÃO DA DISTENSÃO COM A URSS
A conquista, pela União Soviética, da paridade nuclear com os EUA, bem como a derrota no Vietnã, forçaram Washington a admitir uma negociação para o estabelecimento de limites às armas nucleares.
Curiosamente, em 1957 Kissinger publicara um livro em que defendia o uso de armas nucleares táticas e ocupou, no Conselho de Relações Exteriores, aquele antro dos Rockfellers, o cargo de diretor de pesquisa sobre o impacto das armas atômicas na política externa. Havia, inclusive, no meio acadêmico norte-americano, quem o considerasse um inspirador do Dr. Strangelove, do icônico filme de Stanley Kubrick.
No período em que Kissinger esteve à frente do conselho de Segurança Nacional dos EUA (1969-1972) e do Departamento de Estado (1973-1977), foram assinados o tratado sobre limitação de armas estratégicas (SALT1, 1972), sobre armas estratégicas ofensivas (START, 1973) e sobre a prevenção da guerra nuclear (1973).
Ele também encabeçou a negociação do tratado SALT-2 e, com sua participação, em 1975 foi assinado em Helsinque a Ata Final da Conferência sobre Segurança e Cooperação na Europa.
Posteriormente ao colapso da União Soviética, sucessivos governos norte-americanos foram desmontando a arquitetura de distensão nuclear, começando com W. Bush em 2002 com a retirada do Tratado Antimíssil, até chegar à retirada de Trump do Tratado de Proibição de Mísseis Intermediários, que manteve a paz na Europa por quase meio século, e do Tratado de Céus Abertos, e recusa a prorrogar o Tratado Novo Start, o que Biden reverteu, mas que já tem data para acabar.
E, sob Bill Clinton, a OTAN iniciou sua marcha a leste, até às portas da Rússia, até à crise atual da Ucrânia.
A CHINA SE PÔS DE PÉ
Kissinger foi também um personagem central na reaproximação entre os EUA e a China, que resultou na famosa visita de Nixon a Mao em Pequim. Posteriormente, os dois países restauraram as relações diplomáticas, e equacionaram a questão de Taiwan, último vestígio do século de humilhações, sob o princípio de Uma Só China.
Pouco antes, o governo de Pequim tinha sido reconduzido, por decisão da Assembleia Geral da ONU, a representar no Conselho de Segurança da ONU o povo chinês, que vinha sendo usurpada pelo regime do Kuomitang, levado para Taiwan sob proteção da frota norte-americana, após a vitória comunista.
O que para Washington pretendia ser um movimento para bloquear a União Soviética, dividindo o campo progressista no cenário internacional, acabou se desenvolvendo, nas novas condições criadas no mundo, inclusive o colapso da União Soviética, em um processo de desenvolvimento que conduziu a China à condição de maior economia do mundo sob o critério da paridade de poder de compra, isto é, descontando a deformação pelo câmbio.
O que, somado ao renascimento da Rússia, está provocando mudanças tectônicas no mundo, e a possibilidade de que prevaleça uma nova ordem internacional baseada na soberania e na não intervenção.
Embora provavelmente o que Kissinger buscava era uma variação da velha consigna do “dividir para reinar”, parece que o alegre carro da história lhe arrumou uma surpresa, que no caso da China o fez obrigado a reconhecer o fiasco do intervencionismo que sempre estimou e estimulou .
Assim, em tempos de Trump, Biden, Blinkens, Hillarys e Obamas e das continuadas provocações à China através de ameaças de sublevar Taiwan, não chega a ser estranho que Pequim – em um gesto de comparação com a postura belicosa de reposicionamento da Guerra Fria – se despeça de Kissinger chamando-o, em mensagem enviada a Biden, de “velho e bom amigo do povo chinês”.
O Global Times registrou que, em sua última aparição pública no dia 24 de outubro, ao ser homenageado no Comitê Nacional das Relações EUA-China, Kissinger disse ter literalmente passado “metade de sua vida trabalhando nas relações EUA-China”. Com a realidade se impondo até a ele, reiterou que “uma relação pacífica, uma relação cooperativa entre a China e os EUA é no interesse dos dois países e do mundo”.