Com a nova “Lei Básica do Estado Nação” aprovada pelo Knesset, o parlamento de Israel, passa à condição de ‘lei constitucional’ o regime de apartheid já em vigor no Estado de Israel (através de uma série de leis, normas e ações do Estado) e, portanto, transgride abertamente determinações legais internacionais acerca da proibição mundial contra a discriminação racial contida no proscrito regime do apartheid sul-africano.
De acordo com o texto aprovado, Israel assume agora a institucionalização desta execrável ilegalidade.
Aprovada um dia depois do mundo inteiro comemorar os 100 anos de nascimento de Nelson Mandela e de louvar sua gigantesca luta que deu fim ao odioso apartheid, a “lei” aprovada por 62 votos a favor, 55 contra e duas abstenções, afirma, entre outros absurdos, que o “assentamento judaico é um valor nacional” e que cabe ao Estado “encorajar e promover seu estabelecimento e consolidação”.
“Assentamento”, é o termo israelense para definir o estabelecimento de colônias judaicas em terras roubadas aos palestinos nos territórios que Isael ocupa e atua de forma incessante para anexar desde 1967.
Ou seja, a Lei Básica de Israel diz que o ato de roubar, dos árabes palestinos, é, para os judeus de Israel, não apenas legal, mas um “valor nacional”.
Eis o conteúdo do apartheid israelense: roubar os não-judeus, assaltar sua propriedade, é considerado uma virtude. Pode haver algo mais definidor de uma ideologia racial supremacista? Fica estabelecido também – desconsiderando a condição nacional básica e ancestral dos palestinos e seu inalienável direito ao anseio e luta pela autodeterminação nacional, incluindo aí aqueles que insistiram em permanecer em sua terra – que “o direito ao exercício da autodeterminação nacional, no Estado de Israel, pertence unicamente ao povo judeu”.
Quanta arrogância! Como se o direito à autodeterminação não fosse intrínseco a todo ser humano e ao coletivo nacional ao qual pertence. Significa que – como se não bastassem os milhões de descendentes dos desterrados pela hedionda limpeza étnica de mais de 70 anos de execução guindada a política de Estado e proibidos de voltar a sua pátria – agora, todo palestino que vive em Israel está proibido por lei de se declarar como parte do usurpado povo palestino. Como evidentemente não são judeus, são pessoas que o apartheid quer tornar párias em sua própria terra milenarmente ancestral, enquanto são considerados nacionais unicamente os judeus, independente de haverem nascido lá ou em qualquer outra parte do mundo e haver chegado aí há dias.
A nova lei reforça a falácia da existência de “um povo judeu” e mais: afirma que o Estado de Israel é, por definição, “o lar nacional do povo judeu, com o hebraico como sua língua oficial e Jerusalém única sua capital”, desta forma, pretende estripar do judeu alemão, inglês, brasileiro, russo, ou de onde quer que seja, sua terra natal, de sua nacionalidade verdadeira, a partir da qual exerce seus direitos nacionais e se supõe deve ter os mesmos anseios e identidade dos seus patrícios. Surge, no mesmo parágrafo, o intento de anexação da Jerusalém Oriental, inteiramente árabe e palestina e, como tal mundialmente reconhecida (condição negada apenas pelos adeptos do apartheid israelense e agora pelo desvario prepotente de Donald Trump).
Em suma, os árabes, que vivem em Israel passam a estar em uma terra que – por lei – não os engloba como nacionais. Não que este mal estivesse ausente até agora, ao contrário, a própria implementação do Estado de Israel, já trazia as chagas dessa discriminação – agora constitucionalizada – em suas raízes fundacionais.
A lei define que a língua árabe, até antes dela, considerada – junto com o hebraico – como língua oficial, passa a status secundário de “língua especial”. Isso, apesar de Israel, situada no árabe, Oriente Médio, ter 20% de sua população constituída de árabes e mais cerca de 40% de judeus árabes, ou seja, o árabe, língua mãe de 60% da população israelense, deixa de ser língua oficial.
O apartheid israelense foi sempre exercido por diversos meios: a vigilância sobre moradores das aldeias árabes, discriminação nas dotações orçamentárias, proibição de questionar o caráter excludentemente judaico do Estado de Israel. Uma discriminação estatal, o que se reflete nas condições econômicas dos árabes – reduzidos a minoria em Israel – na menor frequência árabe nas universidades, nos postos de governo, nos empregos mais valorizados, nas fábricas e fazendas, em mãos judaicas.
Israel é um Estado que nasceu com disfarces que o permitiram ingressar na ONU. Um deles expresso na Declaração de Independência do Estado de Israel, onde se lia que “deve haver uma lei única para todos os seus habitantes independente da raça, religião, língua ou gênero”.
Enquanto esta retórica se apresentava em Tel Aviv, com a Declaração lida por Ben Gurion, em 18 de maio de 1948, as forças judaicas desatavam o terror aldeia árabe a aldeia árabe, bairro árabe a bairro árabe, de norte a sul da Palestina. Um terrorismo de Estado que despojaria perto de um milhão de palestinos de sua pátria ancestral para, sobre os escombros das casas palestinas, de mais de 400 de suas aldeias e cidades, construir os kibutzim (as aldeias ‘socialistas’ judaicas) e os bairros que passaram a majoritariamente judaicos em Haifa, Tel Aviv, Jerusalém e nas cidades antes inteiramente árabes de Lod, Afula. Acre, Atlit, Bet Shean, Beer Sheva, Eilat, agora judaizadas.
Na Declaração, agora – até mesmo ela – jogada no lixo sob o tacão corrupto do premiê Netaniahu já se declarava a nação, pretensamente “de árabes e judeus”, como um “Estado Judeu” e –além de elevar meras comunidades confessionais a categoria de um suposto povo supranacional e mundial – teve a limpeza étnica no terreno a serviço de sua materialização em Estado de Israel.
A diferença é que agora o apartheid ganha foros de ‘constituição’. Na verdade um arremedo constitucional, pois o Estado de Israel nunca teve uma Constituição. Não se produziu uma Carta Magna para assim impedir que direitos democráticos fossem reivindicados pelos não judeus.
GENOCÍDIO
Como ilustração, sobre os primeiros passos desse hediondo genocídio planejado e executado, seguem trechos de um dos mais pungentes relatos do professor Ilan Pappe, no seu livro A limpeza étnica da Palestina:
A ordem para atacar Sasa proveio de Yigal Allon, o comandante da Palmach no norte, e foi confiada a Moshe Kalman. Era muito clara: “Você deve explodir 20 casas e matar tantos guerreiros [leia-se aldeões] quanto possível. ” Sasa foi atacada à meia-noite. O New York Times (16 de abril de 1948) relatou que a unidade de soldados judeus não encontrou resistência enquanto entrava no vilarejo e começava a emplastrar TNT às casas. “Demos de cara com um guarda árabe”, Kalman narrou depois. “Ele estava tão surpreso que não nos perguntou “min Hada?”, “quem é você?”, mas “eish Hada?”, “o que é isso?”, um dos nossos soldados, que sabia árabe, gracejou: “hada esh”, (“isto é [em árabe] fogo [em hebraico]) e disparou uma rajada contra ele. Os soldados de Kalman tomaram a rua principal do vilarejo e sistematicamente explodiram uma casa após a outra, com as famílias ainda dormindo. “Afinal o céu se escancarou para nós”, rememorou Kalman de foma poética, conforme um terço do vilarejo voava pelos ares. “No nosso rastro, deixamos 35 casas demolidas e 60-80 cadáveres” (um bom tanto eram crianças). Ele condecorou o exército britânico por ajudar as tropas a transferirem os soldados feridos – atingidos pelos destroços que riscavam os céus – para o hospital de Safad. (Pappe, pag. 98).
NATHANIEL BRAIA