“Quando o Banco Central insiste em manter juros extraordinariamente altos, além dos males conhecidos, agrava o desequilíbrio das contas públicas que ele tanto critica”
O economista André Lara Resende, em artigo publicado no Valor Econômico, nesta sexta-feira (2), afirma que “um regime fiscal responsável deve ter por base uma política de juros que só excepcionalmente se desvie desse intervalo”. Segundo ele, parece ter sido finalmente entendido no Brasil que as políticas monetária e fiscal são indissociáveis.
“O que ainda falta ser assimilado é que a política de juros altos tem implicações fiscais que não podem ser desconsideradas. Quando o Banco Central insiste em manter juros extraordinariamente altos, além dos males conhecidos, agrava o desequilíbrio das contas públicas que ele tanto critica”, argumenta. Confira!
OS JUROS E A QUESTÃO FISCAL
ANDRÉ LARA RESENDE*
Há unanimidade quanto aos malefícios dos juros altos. Ninguém gosta. Todos, até o nosso Banco Central, que atualmente detém o recorde mundial de juro real, reconhecem os problemas que podem causar. A razão alegada para manter os juros extraordinariamente elevados é que seria necessário para controlar a inflação e trazê-la de volta para a meta. Sustenta-se, também, que embora determine a taxa de curto prazo, mesmo se quisesse, o Banco Central seria impotente para reverter o quadro de juros altos. As taxas mais longas seriam determinadas pelo mercado, com base nas expectativas de inflação e na pressão exercida pela necessidade de financiamento do Estado.
Estes dois argumentos são questionáveis.
Juros altos são efetivamente necessários e eficazes para o controle da inflação? Até o final do século passado, havia um relativo consenso de que uma inflação moderada de um dígito, numa economia sem mecanismos estabelecidos de indexação, poderia ser combatida com o desaquecimento da economia e o aumento do desemprego. A maneira mais rápida e eficaz de desaquecer a economia era elevar da taxa de juros, que desde os anos 1990 é reconhecidamente a principal variável de política monetária. A alta dos juros reduziria o consumo e o investimento, com demanda mais fraca, o mercado de trabalho ficaria desaquecido, o ritmo do aumento dos salários seria reduzido e a inflação contida. Essa é a lógica por trás da Curva de Phillips, uma relação empírica que associava o aumento do desemprego à redução da inflação.
A controvérsia em torno da possibilidade de que esse “trade-off” pudesse ser explorado para reduzir o desemprego com um pequeno aumento da inflação terminou com a incontestável vitória dos céticos. No entanto, a tese de que o aumento do desemprego reduziria a inflação, que o desaquecimento da economia modera a inflação, continua a ser parte central do quadro conceitual da macroeconomia convencional. Nas últimas duas décadas, a Curva de Phillips se tornou praticamente horizontal, ou seja, a inflação ficou menos sensível ao desemprego. Entre as explicações possíveis, a mais plausível é que o emprego formal perdeu importância, os sindicatos se enfraqueceram e os salários já não são mais tão relevantes na formação de preços. A resiliência da inflação pós-pandemia, no mundo todo, deveria ter deixado definitivamente claro que juros são bem menos eficazes do que se pretende no controle da inflação. Não estamos aqui falando de processos inflacionários crônicos, como o brasileiro da segunda metade do século XX, que, se pudessem ser combatidos com juros altos, não teriam exigido um Plano Real, mas de uma inflação moderada, como a que temos hoje aqui e em grande parte do mundo.
Artigo de Alex Ribeiro, de 22 de maio, neste Valor, a propósito do seminário internacional promovido pelo BC, em São Paulo, reporta que Campos Neto perguntou a outros banqueiros centrais presentes por que, em várias partes do mundo, apesar de os juros subirem tanto, a atividade econômica e a inflação resistem. A pergunta é sinal de uma certa perplexidade diante do descompasso entre a teoria dominante e a prática. Ora, se há perplexidade em face da evidência da ineficácia e unanimidade sobre os efeitos colaterais do remédio, por que então insistir na aplicação de doses maciças? A resposta nos remete à suposta incapacidade de o Banco Central reduzir os juros. Argumenta-se que se o BC reduzisse a taxa básica com as expectativas “desancoradas”, o tiro sairia pela culatra e as taxas longas se elevariam.
No Valor, em 8 de março, publiquei um artigo onde sustento que a taxa básica fixada pelo Banco Central é a principal determinante de toda a estrutura a termo das taxas de juros. Apresentei como evidência um gráfico do Tesouro Nacional, com a trajetória da taxa Selic, o custo médio das emissões em oferta pública e o custo do estoque da dívida para o período entre 2011 e 2022. Afirmei que, como se pode constatar a olho nu, o custo médio das emissões e do estoque da dívida acompanha a Selic. Existe uma alta correlação entre eles. Fiz o “disclaimer” de que correlação não significa necessariamente causalidade, mas que, nesse caso, não há dúvida, pois a taxa Selic é instrumento do BC, a variável independente, e o custo da dívida, o resultado, a variável dependente.
Duas semanas depois, em 31/3/2023, Garcia e Cardoso, também no Valor, chamam o meu artigo de “instigante”, mas curiosamente não citam o autor. Tentam contestar a tese de que o BC controla os juros. Utilizando dados para um período mais curto, entre 2019 e 2021, sustentam que quando o BC deu início a um ciclo de baixa dos juros até chegar a 2% ao ano, as taxas dos títulos de 4 e 10 anos não acompanharam a queda da Selic. Afirmam que o fato do custo do estoque da dívida acompanhar a taxa básica é devido a que parte expressiva da dívida, pouco mais de 40%, composta pelas LFTs e pelas Operações Compromissadas, está vinculada à Selic, mas que a correlação entre o custo da dívida e a taxa básica não significa que o BC tenha influência significativa sobre a curva dos juros.
O argumento procede: a redução da taxa básica pode reduzir o custo da dívida, dado que grande parte dela é vinculada à Selic, sem que isso signifique que a redução da taxa básica implique redução de toda a curva e em particular das taxas mais longas. Ainda assim, a redução do custo da dívida reduziria o déficit nominal e a necessidade de financiamento do Estado, com efeito positivo sobre as expectativas. É verdade, como afirmei, que quando a redução da taxa básica é percebida como artificial e possivelmente insustentável, como foi o caso da redução do BC de Tombini, a taxa longa se reduz proporcionalmente menos, levando a curva de juros a ficar mais inclinada. Ainda assim, quando o BC reduz a taxa básica, como se pode observar com os dados da curva de juros das últimas duas décadas disponíveis na Bloomberg, toda a curva se desloca para baixo. Assim como ocorreu no período de Tombini, a redução da taxa básica para 2% a.a. durante a pandemia foi percebida como excepcional e transitória. Por isso, a taxa longa não acompanhou na mesma proporção a queda da taxa curta.
Dois interlocutores que tenho em alta conta entendem que a alta da taxa básica eleva o custo da dívida e agrava o desequilíbrio fiscal, mas argumentam que é preciso mais do que um gráfico, com a evidente correlação entre a taxa básica e o custo da dívida, para contestar a tese de que o BC não controla a curva de juros. É exatamente isso o que faz Simon Simoski, em “A Keynesian Exploration of the Determinants of Government Bond Yields for Brazil, Colombia and Mexico”, numa tese de 2019, para o Levy Institute do Bard College, em NY.
Num trabalho cuidadoso, ele utiliza as mais modernas técnicas estatísticas para estimativas de correlações entre séries temporais, para verificar se, como sustentava Keynes, são os BCs, através das taxas de curto prazo, que determinam as taxas de longo prazo. Revisita a crítica de Keynes à teoria dos “loanable funds”, dos fundos emprestáveis, segundo a qual a taxa de juros é determinada pela oferta e a demanda de crédito. Para Keynes, é o Banco Central quem determina a taxa de juros no mercado monetário. Após examinar as evidências para os três países, Brasil, Colômbia e México, conclui que o Banco Central tem efetivamente controle da taxa longa. Como já fora demonstrado para o Japão, os EUA, a Índia e os países europeus, numa série de trabalhos de Tanweer Akram e outros, a partir de 2014, o coeficiente de correlação entre a taxa curta e a taxa longa, dos títulos de 10 anos, está em torno de 70%. Ou seja, uma variação de 1% na taxa de curto prazo implica uma variação de 0,70%, na mesma direção, na taxa longa. Para Brasil, encontra um coeficiente de correlação de 71,2% entre a taxa curta e a do título de 10 anos. Portanto, é o Banco Central através da taxa básica, e não o mercado e as expectativas, o principal determinante das taxas longas.
Este não é o lugar para fazer uma resenha detalhada do trabalho de Simoski, mas recomendo enfaticamente que, ao menos os mais afeitos à discussão teórica e à evidência econométrica, não deixem de ler com atenção sua tese. O tema é da mais alta importância prática quando se discute o regime fiscal e as condições para a convergência e a redução da relação dívida/PIB. É urgente compreender que uma taxa de juros razoável – e por razoável deve-se entender uma taxa nominal superior à meta de inflação e inferior à taxa de crescimento nominal do PIB potencial – é a base de uma política macroeconômica competente, da qual estamos carentes há muitos anos.
Um regime fiscal responsável deve ter por base uma política de juros que só excepcionalmente se desvie desse intervalo. Como parece ter sido finalmente entendido no Brasil, as políticas monetária e fiscal são indissociáveis. O que ainda falta ser assimilado é que a política de juros altos tem implicações fiscais que não podem ser desconsideradas. Quando o Banco Central insiste em manter juros extraordinariamente altos, além dos males conhecidos, agrava o desequilíbrio das contas públicas que ele tanto critica.
André Lara Resende é economista
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