O artigo abaixo foi publicado, pelo economista André Lara Resende, no último dia 11 de março, no jornal “Valor Econômico”.
Em 2017, Lara Resende causou uma certa comoção (em alguns ex-colegas neoliberais, poderia se dizer, uma espécie de decepção), ao publicar um artigo (“Juros e conservadorismo intelectual”, Valor, 13/01/2017), defendendo que “no longo prazo, a relação entre a taxa de juros e a inflação é inversa à que sempre se acreditou: quando o banco central eleva a taxa de juros, a inflação não cai, mas aumenta; e quando o banco central reduz a taxa de juros, a inflação não sobe, mas ao contrário, cai” (v. HP 15/03/2017, O artigo de Lara Resende e a taxa de juros sanguinária do Banco Goldfajn).
Como o grande motivo – o motivo de fundo, pode-se dizer – das bestiais taxas de juros, no Brasil, é o interesse do setor financeiro, e suas aparas, em mantê-los altos, o assunto provocou algumas paixões (a ganância, certamente, pode ser uma paixão).
Agora, Lara Resende publicou alguns outros artigos – um deles é um ensaio de 22 páginas (“Consenso e Contrassenso: Dívida, Déficit e Previdência”) – mostrando a falência do “paradigma” dominante, isto é, do neoliberalismo e das teorias econômicas dominantes nos países capitalistas centrais desde o século XIX – com exceção do curto período em que John Maynard Keynes foi o expoente da economia política não-marxista.
A reação a esses artigos foi, novamente, raivosa – parecida com a de Torquemada diante de supostas “heresias”, ainda que sem o poder do grande inquisidor de enviar suas vítimas para a fogueira.
O próprio Lara Resende, respondendo aos ataques de um ex-colega e amigo, descreveu, em parte, o que houve:
“Vejamos o que diz Edmar Bacha em seu comentário, não aos meus artigos, que ele optou por não analisar, nem à minha exposição no Cebri, mas à MMT [sigla em inglês de Moderna Teoria Monetária, à qual Lara Resende, hoje, se filia]: ‘Confesso que nunca havia ouvido falar desta teoria… fiz algumas pesquisas na internet, das quais tiro as seguintes conclusões: A MMT já existe há algum tempo, mas era visível apenas para quem descesse por assim dizer ao andar de baixo da academia americana.’ E prossegue: “Por isso mesmo, como disse a princípio, o debate sobre a MMT não chamava a atenção dos papas da profissão nos EUA.” Bacha prossegue citando nominalmente os seus ‘papas’: Paul Krugman, Larry Summers e Olivier Blanchard e Kenneth Rogoff” (cf. “André Lara Resende responde às críticas de Edmar Bacha”, Valor 28/03/2019).
O comentário de Lara Resende é o seguinte:
“Fica evidente que ele [Edmar Bacha] também dispensou a leitura cuidadosa dos últimos artigos, sobretudo dos três primeiros papas, que embora continuem a criticar a MMT, dela se aproximam a passos, se não largos, o necessário para manter a aparência de que nunca estiveram intelectualmente equivocados e, ao mesmo tempo, não correr o risco de serem identificados com a ala mais à esquerda do Partido Democrático americano” (idem).
E, mais adiante:
“A teoria econômica não é uma ciência exata, nunca poderá dispensar a retórica, mas invocar uma autoridade é uma retórica indigente. Invocar, sem analisar os argumentos, a autoridade dos cardeais da igreja macroeconômica americana é indigno, não apenas de intelectuais, mas de qualquer pessoa que pensa. É ainda uma constrangedora demonstração de colonialismo intelectual”.
Os principais ataques – tanto de Bacha quanto de outros neoliberais – foram à afirmação de Lara Resende de que o Estado, com moeda própria, “não tem restrição financeira”.
Ou seja, toda a conversa sobre déficit público – e sobre a necessidade da manutenção de juros altos para cobrir o déficit – é, precisamente, conversa.
Mais especificamente, se o leitor nos permite a expressão, conversa para enganar otários.
O Estado, na realidade, não tem esse problema de déficit – o motivo é simples: o Estado tem o poder de emitir moeda.
Mas isso não criaria inflação?
Não necessariamente – além de lembrar as superemissões de moeda nos EUA, Europa e Japão, que não causaram inflação após a crise iniciada no final de 2008, Lara Resende cita uma frase de Keynes:
“Em ‘Como Pagar pela Guerra’, uma proposta dirigida ao ministro da Fazenda inglês em 1940, ele afirma: ‘O governo sempre pode pagar pelos seus gastos. O problema é a capacidade de produção’.”
Logo – a conclusão é nossa, mas é evidente – também a destruição do Estado (privatização, reforma da Previdência, etc.) é insustentável, não tem sentido, do ponto de vista econômico.
E Lara Resende conclui sua resposta a Bacha:
“A injustiça cometida por Bacha com a MMT, se não é justificável, é compreensível, pois como ele mesmo afirma, seu desconhecimento sobre o assunto é completo.
“Já a sugestão de que eu apenas importei e requentei uma tese de alguns párocos do ‘segundo andar’ da academia americana, decretadas falsas pelos cardeais do ‘primeiro andar’, é imperdoável para quem convive profissionalmente comigo desde os tempos em que eu dividia os bancos da academia americana com três dos quatro ‘papas’ invocados por ele.
“Quando a produtividade da economia está estagnada há três décadas, quando a infraestrutura está obsoleta a ponto dos viadutos na mais rica cidade do país desabarem por falta de conservação, quando o desemprego é superior a 12% da força de trabalho, quando a população das cidades está desesperada com a criminalidade e a falta de segurança, quando o serviço de saúde pública é deplorável, é triste que no lugar de somar esforços para pensar em soluções, os economistas se apeguem ferrenhamente à defesa de dogmas que já se mostraram incapazes de tirar o país da crise”.
A questão suscitada por Lara Resende, do ponto de vista prático (no artigo abaixo, o leitor poderá conferir a teoria que ele defende sobre isso), redunda em que o Estado – no Brasil e em outros países – não precisa ficar pendurado nos monopólios financeiros privados, ou seja, nos grandes bancos.
Se não existe restrição financeira para o Estado – exceto aquelas da realidade, em última instância, a capacidade de produção do país -, por que temos de viver nessa miséria eterna, sacrificando o presente e o futuro, espremendo salários e aposentadorias, investimentos públicos e gastos de manutenção da propriedade pública, para pagar juros aos bancos, por empréstimos desnecessários?
Essa é a questão.
Daí, o acalorado debate, que nada tem de “acadêmico”, pelo menos no sentido habitual do termo.
PREVIDÊNCIA
Lara Resende não cultivou apenas desafetos, com seus textos.
Em artigo, também no Valor Econômico (Ar fresco: o artigo do André), o ex-ministro João Sayad, hoje professor da Faculdade de Economia e Administração da USP, entrou logo no assunto que permeia (ou está atrás) de toda a discussão econômica do momento:
“Que alívio o artigo do André Lara Resende, aqui no Valor! Inteligente, ponderado e cheio de ideias. Contrasta com os artigos que congestionam os jornais e bradam como profetas que se a reforma da previdência não for aprovada volta a hiperinflação e continua a estagnação. (…) São sermões ameaçadores – sem a reforma da previdência, o inferno. Mas não explicam como. Hiperinflação ou revolução popular pela falta de pagamento das aposentadorias e pensões? Talvez a unanimidade sem explicações resulte da fé num paradigma comum sobre o qual não há reflexões” (cf. João Sayad, art. cit., Valor 15/03/2019).
Sayad continua:
“O André questiona o paradigma. O paradigma que usam é conhecido – com o déficit público, a quantidade de moeda cresce, vem a inflação ou a hiperinflação. Uma forma de pensar do final do século XIX e que Keynes, Minski, Kalecki e o Abba Lerner, que o André cita, substituíram por outro paradigma após a crise de 1930. O novo paradigma teve vida curta, de 45 a 80 aproximadamente, os anos dourados do capitalismo, a social democracia. A partir dos anos 80 e até hoje, voltamos ao pensamento do século XIX, repaginado, mas com os mesmos fundamentos. (…)
“A crise de 2008 inaugurou um período de dúvidas e formulação de novas teorias na academia, no Banco Mundial e até no FMI. A dívida pública explodiu nos Estados Unidos e na Europa, é muito grande no Japão e não há sinais de inflação ou expulsão (crowding out) dos investimentos privados. No Brasil, o pensamento hegemônico não mudou”.
Sayad nota que “a reforma proposta é direcionada apenas para a redução do déficit e deixa de lado o objetivo da previdência que é oferecer amparo e renda para a população. A reforma proposta pretende apenas diminuir os benefícios e aumentar as contribuições, ou seja, reduzir o déficit. Está focada apenas no déficit, como afirma o André. Mas e os objetivos da Previdência, o amparo da população mais velha, do desempregado?”
Por fim, diz o ex-ministro do Planejamento:
“Para avançar é preciso que nos livremos dos paradigmas do século XIX. É difícil, mas o artigo do André abre esta e muitas outras perspectivas. Não é para agora. Agora temos que esperar que os Torquemadas e Savonarolas que estão no governo sejam substituídos. Sou pessimista, vai demorar. Sou otimista, o Renascimento prosseguiu apesar destes estrupícios”.
TESES
Destaquemos, para finalizar esta introdução, que já vai além dos limites aceitáveis, que a teoria defendida por Lara Resende, a Moderna Teoria Monetária (MMT, nas iniciais dessas palavras em inglês) tem as suas limitações.
A mais evidente é seu caráter de teoria monetária. Portanto, ainda coloca a moeda no centro da economia e do pensamento econômico. A inflação, por exemplo, ainda é explicada por mecanismos monetários e não como uma consequência das relações econômicas.
Esta é a razão do recurso às “expectativas”, como substituto da teoria quantitativa da moeda (“Inflação”, diz Lara Resende, “é essencialmente questão de expectativas, porque expectativas de inflação provocam inflação. As expectativas se formam das maneiras mais diversas, dependem das circunstâncias, e os economistas não têm ideias precisas sobre como são formadas”).
Mas, nesse caso, apesar de saber que essa suposta explicação, mais psicológica que econômica, não é nova, parece-nos que ela é uma ponte: uma saída provisória da teoria reacionária habitual até a construção de alguma teoria mais sólida.
No entanto, esse problema – os limites de uma teoria monetária – faz com que Lara Resende tenha uma interpretação equivocada da história econômica brasileira, que, claro, vai muito além dos problemas monetários:
“… durante o século XX, o liberalismo econômico perdeu a batalha pelos corações e pelas mentes dos brasileiros. Embora a história tenha mostrado que seus defensores, desde Eugênio Gudin, estavam certos sobre os riscos do capitalismo de Estado, do corporativismo, do patrimonialismo e do fechamento da economia à competição, foram derrotados porque adotaram um dogmatismo monetário quantitativista equivocado. Tentaram combater a inflação promovendo um aperto da liquidez. O resultado foi sempre o mesmo: recessão, desemprego e crise bancária.”
Não foi devido à sua teoria monetária equivocada que Gudin & congêneres destruíram ou tentaram destruir o país – na verdade, desde Joaquim Murtinho, o ministro da Fazenda de Campos Salles, eles adotaram essa teoria porque não conseguiam ver o Brasil senão como uma colônia ou um apêndice das economias centrais, basicamente, a inglesa, e, depois, a norte-americana.
Esse motivo é o mesmo que faz com que alguns economistas não consigam, hoje, se livrar dessa teoria – inclusive o contendor de Lara Resende, Edmar Bacha.
Mas essa questão, a de que o Brasil deve ser uma economia nacional – ou não terá sentido dizer (como faz Resende, corretamente) que não existe restrição financeira para o Estado – é, precisamente, aquela que parece ser a mais confusa na sua atual formulação.
Daí, por exemplo, sua posição quanto ao comércio exterior:
“Para garantir a eficiência dos investimentos e o ganho de produtividade, deveria-se promover uma abertura comercial programada para integrar definitivamente a economia brasileira na economia mundial. O prazo de transição para a completa abertura comercial deveria ser pré-anunciado e de no máximo cinco anos” (grifos nossos).
Se existe algo que uma “abertura comercial completa” não garante – pelo contrário – é a “eficiência dos investimentos e o ganho de produtividade”.
Mas não nos estenderemos sobre o assunto. Pois, mesmo com esses problemas, o mais importante é que a base – ou a falta de base (digamos, como Lara Resende, o “paradigma”, ainda hoje mantido pelos economistas que mencionamos) – foi contestada.
Lara Resende não se sente mais confortável dentro dessa camisa de força.
Pelo contrário, acha necessária uma ruptura – e está conseguindo empreendê-la, mesmo com uma teoria que tem como limite sua própria concepção de moeda.
Mas isso lhe permitiu enxergar algo decisivo, de que falamos já há algum tempo: “a constatação de que o Banco Central fixa a taxa de juros básica da economia, que determina o custo da dívida pública”.
Essa taxa não é estabelecida por qualquer “mercado”, mas pelo Banco Central. Certamente, se este é um agente dos bancos privados, serão esses que estabelecerão a taxa. Mas, nesse caso, também não será o mercado que a determinará, e sim o cartel financeiro, o monopólio privado sobre o dinheiro.
A taxa de juros, como é inevitável, é para onde converge a teoria exposta por Lara Resende:
“… uma taxa de juros da dívida inferior à taxa de crescimento da economia tem duas implicações importantes.
“A primeira é que a relação dívida/PIB irá decrescer a partir do momento em que o déficit primário – aquele que exclui os juros da dívida – for eliminado, sem necessidade de qualquer aumento da carga tributária.
“Portanto, se a taxa de juros, controlada pelo Banco Central, for fixada sempre abaixo da taxa de crescimento, a dívida pública irá decrescer, sem custo fiscal, a partir do momento em que o déficit primário for eliminado.
“Este é um resultado trivial e mais robusto do que parece, pois independe do nível atingido pela relação dívida/PIB, da magnitude dos déficits e da extensão do período em que há déficits.
“A segunda implicação, tecnicamente mais sofisticada, é que será possível aumentar o bem-estar de todos em relação ao equilíbrio competitivo através do endividamento público” (grifos nossos).
O que se choca, diretamente, com o que diz sobre a reforma da Previdência (embora, bem claro, ele é contra a “reforma” de Guedes e Bolsonaro):
“Sim, é preciso uma reforma da Previdência, não porque ela seja deficitária, mas porque ela é corporativista e injusta e porque o aumento da expectativa de vida exige a revisão da idade mínima. O déficit do sistema previdenciário, como todo déficit público, não precisa ser eliminado se a taxa de juros for inferior à taxa de crescimento”.
Já tocamos suficientemente no assunto para que, aqui, nos dispensemos de voltar a ele. O mais importante é que, mesmo que a Previdência fosse deficitária, para Resende não haveria necessidade de destruí-la.
Mas essas limitações obrigam a um último comentário.
A expressão “dores do parto” já foi muito utilizada, a respeito do nascimento de qualquer coisa neste mundo.
Talvez ela caiba, aqui, quando alguém se esforça por superar algo velho, mas não conseguiu, ainda, elaborar – ou aceitar – inteiramente uma nova concepção.
CARLOS LOPES
A crise da macroeconomia
ANDRÉ LARA RESENDE*
A teoria macroeconômica está em crise. A realidade, sobretudo a partir da crise financeira de 2008 nos países desenvolvidos, mostrou-se flagrantemente incompatível com a teoria convencionalmente aceita. O arcabouço conceitual que sustenta as políticas macroeconômicas está prestes a ruir. O questionamento da ortodoxia começou com alguns focos de inconformismo na academia. Só depois de muita resistência e controvérsia, extravasou os limites das escolas. Embora ainda não tenha chegado ao Brasil, sempre a reboque, nos países desenvolvidos, sobretudo nos Estados Unidos, já está na política e na mídia.
A nova macroeconomia que começa a ser delineada é capaz de explicar fenômenos incompatíveis com o antigo paradigma. É o caso, por exemplo, da renitente inflação abaixo das metas nas economias avançadas, mesmo depois de um inusitado aumento da base monetária. Permite compreender como é possível que a economia japonesa carregue uma dívida pública acima de 200% do PIB, com juros próximos de zero, sem qualquer dificuldade para o seu refinanciamento. Ajuda a explicar o rápido crescimento da economia chinesa, liderado por um extraordinário nível de investimento público e com alto endividamento. Em relação à economia brasileira, dá uma resposta à pergunta que, há mais de duas décadas, causa perplexidade: como explicar que o país seja incapaz de crescer de forma sustentada e continue estagnado, sem ganhos de produtividade, há mais de três décadas?
Em artigo recente, “Consenso e Contrassenso: Dívida, Déficit e Previdência”, que circula como texto para discussão do Iepe/Casa das Garças, procuro ligar alguns pontos que podem vir a consolidar um novo paradigma macroeconômico. Como foi escrito com o objetivo de embasar a argumentação na literatura econômica, pode exigir do leitor conhecimentos específicos e ser mais técnico do que seria desejável. Por isso volto ao tema, de forma menos técnica, para dar ideia desse novo arcabouço macroeconômico e de suas implicações para a realidade brasileira. As conclusões são surpreendentes, muitas vezes contraintuitivas, irão provocar controvérsia e correm risco de ser politicamente mal interpretadas.
Não tenho a intenção, nem seria possível, responder às inúmeras dúvidas e perguntas que irão, inevitavelmente, assolar o leitor. Ao fazer um resumo esquemático das teses que compõem as bases de um novo paradigma macroeconômico, pretendo apenas estimular o leitor a refletir e a procurar se informar sobre a verdadeira revolução que está em curso na macroeconomia. É da mais alta relevância para compreender as razões da estagnação da economia brasileira. Na literatura econômica fala-se numa armadilha da renda média, constituída por forças que impediriam, uma vez superado o subdesenvolvimento, que se chegue finalmente ao Primeiro Mundo. Há razões para crer que não se trata de uma armadilha objetiva, mas sim conceitual.
Pilares de um novo paradigma
O primeiro pilar do novo paradigma macroeconômico, a sua pedra angular, é a compreensão de que moeda fiduciária contemporânea é essencialmente uma unidade de conta. Assim como o litro é uma unidade de volume, a moeda é uma unidade de valor. O valor total da moeda na economia é o placar da riqueza nacional. Como todo placar, a moeda acompanha a evolução da atividade econômica e da riqueza. No jargão da economia, diz-se que a moeda é endógena, criada e destruída à medida que a atividade econômica e a riqueza financeira se expandem ou se contraem. A moeda é essencialmente uma unidade de referência para a contabilização de ativos e passivos. Sua expansão ou contração é consequência, e não causa, do nível da atividade econômica. Esta é a tese que defendo no meu livro “Juros, Moeda e Ortodoxia”, de 2017.
Moeda e impostos são indissociáveis. A moeda é um título de dívida do Estado que serve para cancelar dívidas tributárias. Como todos os agentes na economia têm ativos e passivos com o Estado, a moeda se transforma na unidade de contabilização de todos os demais ativos e passivos na economia. A aceitação da moeda decorre do fato de que ela pode ser usada para quitar impostos.
O segundo pilar é um corolário do primeiro: dado que a moeda é uma unidade de conta, um índice oficial de ativos e passivos, o governo que a emite não tem restrição financeira. O Estado nacional que controla a sua moeda não tem necessidade de levantar fundos para se financiar, pois ao efetuar pagamentos, automática e obrigatoriamente, cria moeda, assim como ao receber pagamentos, também de maneira automática e obrigatória, destrói moeda. Como não precisa respeitar uma restrição financeira, a única razão macroeconômica para o governo cobrar impostos é reduzir a despesa do setor privado e abrir espaço para os seus gastos, sem pressionar a capacidade de oferta da economia. O governo não tem restrição financeira, mas é obrigado a respeitar a restrição da realidade, sob pena de pressionar a capacidade instalada, provocar desequilíbrios internos e externos e criar pressões inflacionárias.
O terceiro pilar é a constatação de que o Banco Central fixa a taxa de juros básica da economia, que determina o custo da dívida pública. Desde os anos 1990, sabe-se que os bancos centrais não controlam a quantidade de moeda, nenhum dos chamados “agregados monetários”, mas sim a taxa de juros. O principal instrumento de que dispõe o Banco Central para o controle da demanda agregada é a taxa básica de juros.
Como explicar que o Brasil seja incapaz de crescer de forma sustentada e continue estagnado, sem ganhos de produtividade, há mais de três décadas?
O quarto pilar é a constatação de que uma taxa de juros da dívida inferior à taxa de crescimento da economia tem duas implicações importantes. A primeira é que a relação dívida/PIB irá decrescer a partir do momento em que o déficit primário – aquele que exclui os juros da dívida – for eliminado, sem necessidade de qualquer aumento da carga tributária. Portanto, se a taxa de juros, controlada pelo Banco Central, for fixada sempre abaixo da taxa de crescimento, a dívida pública irá decrescer, sem custo fiscal, a partir do momento em que o déficit primário for eliminado. Este é um resultado trivial e mais robusto do que parece, pois independe do nível atingido pela relação dívida/PIB, da magnitude dos déficits e da extensão do período em que há déficits. A segunda implicação, tecnicamente mais sofisticada, é que será possível aumentar o bem-estar de todos em relação ao equilíbrio competitivo através do endividamento público. Em termos técnicos, diz-se que o equilíbrio competitivo não é eficiente no sentido de Pareto.
Sobre esses quatro pilares, acrescenta-se o que foi aprendido sobre a inflação nas últimas três décadas. Ao contrário do que se acreditou por muito tempo, a moeda não provoca inflação. Inflação é essencialmente questão de expectativas, porque expectativas de inflação provocam inflação. As expectativas se formam das maneiras mais diversas, dependem das circunstâncias, e os economistas não têm ideias precisas sobre como são formadas. A pressão excessiva da demanda agregada sobre a capacidade instalada cria expectativas de inflação, mas não é condição necessária para a existência de expectativas inflacionárias. Alguns preços, como salários, câmbio e taxas de juros, funcionam como sinalizadores para a formação das expectativas. Se o banco central tiver credibilidade, as metas anunciadas para a inflação também serão um sinalizador importante. Uma vez ancoradas, as expectativas são muito estáveis. A inflação tende a ficar onde sempre esteve. Por isso é tão difícil, como sempre se soube, reduzir uma inflação que está acima da desejada. Depois da grande crise financeira de 2008, ficou claro que é igualmente difícil elevar uma inflação abaixo da desejada.
Novas ideias, antigas raízes
Embora grande parte das teses do novo paradigma contradigam o consenso econômico-financeiro, elas não são novas. Têm raízes em ideias esquecidas, submersas pela força das ideias estabelecidas e insistentemente repetidas. A tese de que a moeda é essencialmente uma unidade de conta, cuja aceitação deriva da possibilidade de usá-la para pagar impostos, é de 1905. Foi originalmente formulada pelo economista alemão Georg F. Knapp, no livro “The State Theory of Money”. Ficou conhecida como “cartalismo” e foi retomada recentemente pelos proponentes da chamada moderna teoria monetária, MMT em inglês.
Já a tese de que o governo que emite a sua própria moeda não tem restrição financeira, portanto não precisa equilibrar receitas e despesas, é de 1943. Seu autor, Abba Lerner, foi um economista que, como Clarice Lispector, nasceu na Bessarábia, estudou na Inglaterra e deu contribuições de grande relevância para os mais diversos campos da teoria econômica. No ensaio “Functional Finance and the Federal Debt”, Lerner enuncia os princípios que devem guiar o governo no desenho da política fiscal. Segundo ele, os déficits fiscais podem e devem sempre ser usados para garantir o pleno emprego e estimular o crescimento.
A primeira prescrição de Lerner, a sua “primeira lei da finanças funcionais”, é macroeconômica: o governo deve sempre usar a política fiscal para manter a economia no pleno emprego e estimular o crescimento. A única preocupação em relação à aplicação dessa prescrição deve ser com os limites da capacidade de oferta da economia, que não podem ser ultrapassados, sob pena de provocar desequilíbrios internos e externos e criar pressões inflacionárias. A segunda prescrição, ou a segunda “lei das finanças funcionais”, é microeconômica: os impostos e os gastos do governo devem ser avaliados segundo uma análise objetiva de custos e benefícios, nunca sob o prisma financeiro.
Todo banqueiro central com alguma experiência prática na condução da política monetária sabe que o banco central controla efetivamente a taxa de juros básica da economia. Os mais atualizados sabem ainda que, desde que não haja pressão sobre a capacidade de oferta, é possível criar qualquer quantidade de moeda remunerada sem provocar inflação. Trata-se de um poder tão extraordinário, que convém a todos, para evitar pressões políticas espúrias, continuar a sustentar a ficção de que o banco central deve controlar, e que efetivamente controla, a quantidade de moeda.
Já o fato de que o governo – que emite a sua própria moeda – não está submetido a qualquer restrição financeira, é bem menos compreendido. Talvez porque seja profundamente contraintuitivo, dado que todo e qualquer outro agente, as empresas, as famílias, os governos estaduais e municipais, estão obrigados a respeitar o equilíbrio entre receitas e despesas, sob pena de se tornar inadimplentes.
Quando se compreende a proposição que a moeda é um índice da riqueza na economia, que sua expansão não provoca inflação e o seu corolário, que governo que a emite não tem restrição financeira, há uma mudança de Gestalt.
A compreensão da lógica da especificidade dos governos que emitem sua moeda provoca uma sensação de epifania, que subverte todo o raciocínio macroeconômico convencional. Toda mudança de percepção que desconstrói princípios estabelecidos é inicialmente perturbadora, mas uma vez incorporada, abre as portas para o avanço do conhecimento. Como observou o Prêmio Nobel de Física, gênio inconteste, Richard Feynman, num artigo de 1955, “O Valor da Ciência”, o conhecimento pode tanto ser a chave do paraíso, como a dos portões do inferno. É fundamental que essa mudança de percepção seja corretamente interpretada para a formulação de políticas. Assim como Ivan Karamazov concluiu que se Deus não existe, tudo é permitido, de forma menos angustiada e mais afoita, não faltarão políticos para concluir que se o governo não tem restrição financeira, tudo é permitido.
Uma modernização do sistema passaria pela criação de uma moeda digital do BC, que abriria o caminho para um governo digital e desburocratizado. Do ponto de vista macroeconômico, se o governo gastar mais do que retira da economia via impostos, estará aumentando a demanda agregada. Quando a economia estiver perto do pleno emprego, corre o risco de causar desequilíbrios e provocar pressões inflacionárias. Do ponto de vista microeconômico, a política fiscal tem impactos alocativos e redistributivos importantes. Embora o governo não esteja sempre obrigado a equilibrar receitas e despesas, a composição de suas despesas e de suas receitas, a forma como o governo conduz a política fiscal, é da mais alta importância para o bom funcionamento da economia e o bem-estar da sociedade. A preocupação dos formuladores de políticas públicas não deve ser o de viabilizar o financiamento dos gastos, mas sim a qualidade, tanto das despesas como das receitas do governo. A decisão de como tributar e gastar não deve levar em consideração o equilíbrio entre receitas e despesas, mas sim o objetivo de aumentar a produtividade e equidade. Por isso, é fundamental não confundir a inexistência de restrição financeira com a supressão da noção de custo de oportunidade. O governo continua obrigado a avaliar custos e benefícios microeconômicos de seus gastos. Um governo que equilibra o seu orçamento, mas gasta mal e tributa muito, é incomparavelmente mais prejudicial do que um governo deficitário, mas que gasta bem e tributa de forma eficiente e equânime, sobretudo quando a economia está aquém do pleno emprego.
É possível argumentar que seria melhor não desmontar a ficção de que os gastos públicos são financiados pelos impostos, pelo “o seu, o meu, o nosso dinheiro”, para criar uma resistência da sociedade às pressões espúrias por gastos públicos. Afinal, pressões políticas, populistas e demagógicas, por mais gastos nunca hão de faltar. O problema é que quando se adota um raciocínio torto, ainda que com a melhor das intenções, chega-se a conclusões necessariamente equivocadas.
Uma armadilha brasileira
Desde o início dos anos 1990, a taxa real de juros foi sempre muito superior à taxa de crescimento da economia. Só entre 2007 e 2014 a taxa real de juros ficou apenas ligeiramente acima da taxa de crescimento. A partir de 2015, quando a economia entrou na mais grave recessão de sua história, com queda acumulada em três anos de quase 10% da renda per capita, a taxa real de juros voltou a ser muito mais alta do que a taxa de crescimento. A economia cresceu apenas 1,1% ao ano em 2017 e 2018. Hoje, com a renda per capita ainda 5% abaixo do nível de 2014, com o desemprego acima de 12% e grande capacidade ociosa, a taxa real de juros ainda é mais do dobro da taxa de crescimento. Como não poderia deixar de ser, a relação dívida/PIB tem crescido e se aproxima de níveis considerados insustentáveis pelo consenso macro-financeiro.
O diagnóstico não depende do arcabouço macroeconômico adotado, é claro e irrefutável: as contas públicas estão em desequilíbrio crescente e a relação dívida/PIB vai continuar a crescer e superar os 100% em poucos anos. Já o desenho das políticas a serem adotadas para sair da situação em que nos encontramos é completamente diferente caso se adote a visão macroeconômica convencional ou um novo paradigma. O velho consenso exige o corte a despesas, a venda de ativos estatais, a reforma da Previdência e o aumento dos impostos, para reverter o déficit público e estabilizar a relação dívida/PIB. É o roteiro do governo Bolsonaro sob a liderança do ministro Paulo Guedes. A partir de um novo paradigma, compreende-se que o equívoco vem de longe.
A inflação brasileira tem origem na pressão excessiva sobre a capacidade instalada, durante as três décadas de 1950 a 1980 de esforço desenvolvimentista. Foi agravada pelo choque do petróleo na primeira metade da década de 1970, quando adquiriu uma dinâmica própria, alimentada pela indexação e pelas expectativas desancoradas. Altas taxas de inflação crônica têm uma forte inércia, não podem ser revertidas apenas através do controle da demanda agregada, com objetivo de provocar desemprego e capacidade ociosa. Para quebrar a inércia é preciso um mecanismo de coordenação das expectativas. No Plano Real, esse mecanismo foi a URV, uma unidade de conta sem existência física, corrigida diariamente pela inflação corrente. A URV foi uma unidade de conta oficial virtual, com poder aquisitivo estável, uma moeda plena na acepção Cartalista, que viabilizou estabilização da inflação brasileira. Quando a URV foi introduzida, a economia não crescia, havia desemprego e capacidade ociosa. A causa da inflação não era mais o gasto público nem o excesso de demanda. Quando se compreende que o governo emissor não tem restrição financeira, fica claro que não havia necessidade de equilibrar as contas públicas para garantir a estabilidade da moeda. A criação do Fundo de Estabilização Social e posteriormente a aprovação da Lei de Responsabilidade Fiscal, apenas satisfizeram as exigências do consenso macroeconômico e financeiro da época.
Como se acreditava na necessidade de equilíbrio financeiro do governo, para garantir a consolidação da estabilização, a carga tributária foi sistematicamente elevada. Chegou a 36% da renda, comparável às das mais altas entre as economias desenvolvidas. Durante os governos do PT, opção demagógica pelo aumento dos gastos com pessoal e por grandes obras, turbinadas pela corrupção e sem qualquer avaliação de custo e benefícios, combinada com a ortodoxia do Banco Central, aprofundou o desequilíbrio das contas públicas. O quadro foi agravado pela rápida queda do crescimento demográfico e do aumento da expectativa de vida, que tornou a Previdência crescentemente deficitária.
Uma vez feita a transição da URV para o Real, teria sido necessário manter uma âncora coordenadora das expectativas. Retrospectivamente, o correto teria sido adotar um regime de metas inflacionárias, para balizar as expectativas, que só veio a ser adotado no segundo governo FHC. A opção à época foi por dispensar um mecanismo coordenador das expectativas e confiar nas políticas monetária e fiscal contracionistas. Optou-se por combinar uma política de altíssimas taxas de juros com a austeridade fiscal. O resultado foram mais de duas décadas de crescimento desprezível, colapso dos investimentos públicos, uma infraestrutura subdimensionada e anacrônica, Estados e municípios estrangulados, incapazes de prover os serviços básicos de segurança, saneamento, saúde e educação. Mas como não vale a pena chorar sobre o leite derramado, passemos a políticas a serem adotadas para sair da armadilha em que nos encontramos, com base no novo arcabouço conceitual macroeconômico.
Reformas voltadas para o futuro
Comecemos pela questão que ocupa as manchetes, a reforma da Previdência. Sim, é preciso uma reforma da Previdência, não porque ela seja deficitária, mas porque ela é corporativista e injusta e porque o aumento da expectativa de vida exige a revisão da idade mínima. O déficit do sistema previdenciário, como todo déficit público, não precisa ser eliminado se a taxa de juros for inferior à taxa de crescimento. Como estamos com alto desemprego, significativamente abaixo da plena utilização da capacidade instalada e com expectativas de inflação ancoradas, o objetivo primordial das “reformas” deve ser estimular o investimento e a produtividade.
Em paralelo à reforma da Previdência, deve-se fazer uma profunda reforma fiscal segundo os preceitos das finanças funcionais de Abba Lerner. O objetivo da reforma tributária não deve ser maximizar a arrecadação, mas sim o de simplificar, desburocratizar, reduzir o custo de cumprir as obrigações tributárias, para estimular os investimentos e facilitar a inciativa privada. Enquanto não houver pressão excessiva sobre a oferta e sinais de desequilíbrio externo, a carga tributária deve ser significativamente menor.
A taxa básica de juros deveria ser reduzida, acompanhada do anúncio de que, a partir de agora, seria sempre fixada abaixo da taxa nominal de crescimento da renda. Simultaneamente, deveria-se promover a modernização do sistema monetário, substituindo as LFTs e as chamadas Operações Compromissadas, que hoje representam metade da dívida pública, por depósitos remunerados no Banco Central. Adicionalmente, seria dado acesso direto ao público, não apenas aos bancos comerciais, às reservas remuneradas no Banco Central. A modernização do sistema, com redução de custos e grandes ganhos de eficiência no sistema de pagamentos, passaria ainda pela criação de uma moeda digital do Banco Central, que abriria o caminho para um governo digital e desburocratizado.
Para garantir a eficiência dos investimentos e o ganho de produtividade, deveria-se promover uma abertura comercial programada para integrar definitivamente a economia brasileira na economia mundial. O prazo de transição para a completa abertura comercial deveria ser pré-anunciado e de no máximo cinco anos.
Por fim, mas não menos importante, seria fundamental criar mecanismos eficientes, idealmente através da contratação de agências privadas independentes, para avaliação de custos e benefícios dos gastos públicos em todas as esferas do setor público. A política fiscal é da mais alta relevância para o bom funcionamento da economia e para o bem-estar da sociedade. Compreender que o governo não tem restrição financeira não implica compactuar com um Estado inchado, ineficiente e patrimonialista, que perde de vista os interesses do país. Ao contrário, redobra a responsabilidade e a exigência de mecanismos de controle e avaliação sobre a qualidade, os custos e os benefícios, dos serviços e dos investimentos públicos.
Estas linhas gerais de políticas, sugeridas pelo novo paradigma macroeconômico, correm o risco de desagradar a gregos e troianos. Não se encaixam, nem no populismo estatista da esquerda, nem no dogmatismo fiscalista da direita. Como observou, de maneira premonitória, Abba Lerner, em seu ensaio de 1943, os princípios das Finanças Funcionais são igualmente aplicáveis numa sociedade comunista, como numa sociedade fascista, como numa sociedade capitalista democrática. A diferença é que se os defensores do capitalismo democrático não os compreenderem e adotarem, não terão chance contra aqueles que vierem a adotá-los. No primeiro ensaio de “Juros, Moeda e Ortodoxia”, sustento que, durante o século XX, o liberalismo econômico perdeu a batalha pelos corações e pelas mentes dos brasileiros. Embora a história tenha mostrado que seus defensores, desde Eugênio Gudin, estavam certos sobre os riscos do capitalismo de Estado, do corporativismo, do patrimonialismo e do fechamento da economia à competição, foram derrotados porque adotaram um dogmatismo monetário quantitativista equivocado. Tentaram combater a inflação promovendo um aperto da liquidez. O resultado foi sempre o mesmo: recessão, desemprego e crise bancária. Expulsos do comando da economia pela reação da sociedade, seus defensores recolhiam-se para lamentar a demagogia dos políticos e a irracionalidade da população. Quase sete décadas depois de Gudin, os liberais voltam a comandar a economia. O apego a um fiscalismo dogmático e a um quantitativismo anacrônico pode levá-los, mais uma vez, a voltar para casa mais cedo do que se imagina.
* André Lara Resende é economista
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