Há muito tempo não havia, no Brasil, uma união tão grande – e tão resoluta – quanto aquela formada, nos últimos dias, pelo repúdio às declarações de Bolsonaro sobre o assassinato de Fernando Santa Cruz, pai do presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Felipe Santa Cruz.
Certamente, não é, ainda, uma unanimidade, até porque toda sociedade – pelo menos na época em que vivemos – tem a sua banda podre.
Mas a extensão e a profundidade do repúdio foi imensa – talvez porque, como disse a vice-governadora de Pernambuco e presidente nacional do PCdoB, Luciana Santos, “Jair Bolsonaro não é só da ditadura, ele é dos porões da ditadura”.
Na quarta-feira (31/07), quando o presidente da OAB entrou com uma interpelação no Supremo Tribunal Federal (STF) para que Bolsonaro explique suas declarações, nada menos que 12 ex-presidentes da OAB assinaram, também, a ação.
Marcelo Lavenère, que foi presidente da OAB durante o impeachment de Collor – do qual foi, com Barbosa Lima Sobrinho, um dos subscritores – disse, então, algo que reflete esse clima: “Esses 12 ex-presidentes nunca se juntaram. Havia divergências sobre ditadura, Lula, Fernando Henrique… É a primeira vez na história da OAB que a totalidade de seus ex-presidentes se juntam para interpelar o presidente por falta de ética, vergonha e humanidade”.
Segundo a opinião – ou o sentimento – de Lavenère, as declarações de Bolsonaro foram “uma agressão à OAB, não foi só a uma pessoa física, mas enquanto entidade”.
E avaliou: “Vejo uma situação muito parecida com a evolução que o Collor teve. Sendo que com Collor eram coisas muito mais amenas e menos graves do que o presidente Bolsonaro está fazendo. Quando isso começar a contaminar os órgãos de comunicação – o que já começou – vai perder o apoio da opinião pública e o caminho será um só: a queda”.
Bolsonaro escarneceu do “desaparecimento” do pai de Felipe Santa Cruz (“Um dia se o presidente da OAB quiser saber como é que o pai dele desapareceu no período militar, eu conto para ele. Ele não vai querer ouvir a verdade. Eu conto para ele”).
Horas depois, acrescentou, a essa indignidade, outra: a de que Fernando Santa Cruz fora assassinado por seus companheiros, que lutavam também contra a ditadura – e, bem entendido, tratava-se da ditadura do AI-5, um regime terrorista e sem lei, baseado no medo, na tortura, no assassinato.
O caso de Fernando é conhecido da OAB muito antes que seu filho se tornasse advogado. Em 28 de maio de 1974, três meses após o seu desaparecimento, o Conselho Federal da Ordem discutiu o caso de Fernando – e não havia dúvida alguma, como jamais houve depois, de que fora preso pelos órgãos de repressão da ditadura (v. HP 01/08/2019, Censura sobre prisão de pai do presidente da OAB mostra como Bolsonaro mente).
A prisão de Fernando foi denunciada por um dos maiores advogados da História do país, Francisco de Assis Serrano Neves, na época, membro do Conselho da OAB.
Felipe Santa Cruz, quando isso aconteceu, tinha dois anos de idade.
Seu pai foi assassinado durante a “Operação Cacau”, cujo objetivo era exterminar a Ação Popular, a organização de que Fernando Santa Cruz fazia parte (existe um relatório do Centro de Informações do Exército – CIE – sobre a operação, enviado ao Serviço Nacional de Informações, SNI, mas, nele, Fernando não é mencionado).
Nessa operação de extermínio foram – além de Fernando Santa Cruz e seu amigo Eduardo Collier Filho – assassinados:
– o presidente da União Nacional dos Estudantes (UNE), Honestino Guimarães;
– o ex-deputado Paulo Stuart Wright;
– o ex-presidente do Diretório Acadêmico da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Pernambuco, Umberto Câmara Neto;
– o ex-presidente do Centro Acadêmico da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais, João Carlos da Mata Machado;
– e o ex-vice-presidente da União Nacional dos Estudantes (UNE) Gildo Lacerda.
A ditadura censurou, na época, todas as notícias referentes às prisões e assassinatos.
São essas e outras coisas, que pareciam, em parte – somente em parte – esquecidas, que as declarações de Bolsonaro fizeram eclodir.
O que fez com que esse desequilibrado aparecesse sob a luz da verdade para milhões de pessoas, para milhões de brasileiros: trata-se de um covarde e de um mentiroso.
Em Recife, na sexta-feira(02/08), o irmão de Fernando, Marcelo Santa Cruz, lembrou a longa procura, ainda sob a ditadura: “os órgãos de segurança debochavam de nós e nos davam informações falsas”, mas, disse ele, “em 45 anos de busca por meu irmão, nunca vi uma crueldade como esta declaração feita pelo presidente”.
“Bolsonaro pode até discordar de Fernando ou Felipe, mas não pode dizer esse tipo de coisa para atingir a criança que perdeu o pai aos 2 anos de idade”, disse Marcelo.
Na quinta-feira (1º), o ministro do STF Luís Roberto Barroso deu um prazo de 15 dias para que Bolsonaro explique suas declarações.