Primeira mulher negra homenageada pela universidade, cantora e deputada dedicou honraria às mulheres negras do Brasil e destacou luta contra racismo e desigualdade
Em cerimônia que reuniu acadêmicos, estudantes, parlamentares e representantes do movimento negro e da cultura afro-brasileira, a cantora, compositora e deputada estadual por São Paulo Leci Brandão (PCdoB) recebeu, nesta segunda-feira (08/12), o título de Doutora Honoris Causa concedido pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar).
A honraria é destinada a personalidades que contribuem para o desenvolvimento e a difusão do conhecimento e que realizam ações com impacto social e político, especialmente nos campos da educação, dos direitos humanos, da igualdade e da inclusão. Ao abrir a solenidade, a responsável pelo cerimonial destacou que o reconhecimento se deve ao trabalho desenvolvido por Leci ao longo de décadas em prol da cultura brasileira e do desenvolvimento social, político e econômico do país.
Leci tornou-se a primeira mulher negra a receber o título na história da UFSCar. Antes dela, foram homenageados nomes como a psicóloga Carolina Maria de Jesus Bori, o escritor Raduan Nassar e o educador Dermeval Saviani.
A proposta de outorga do título foi construída coletivamente a partir da mobilização do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros (NEAB) da UFSCar e de docentes de diferentes áreas, incluindo os Departamentos de Ciências Sociais, Letras, Educação, Artes e Comunicação, além de pesquisadores dos programas de pós-graduação em Antropologia Social e Ciência Política da instituição.
“Saúdo esta Casa do Conhecimento por nos permitir celebrar a vida e a obra magistral de Leci Brandão”, afirmou o professor Robson Pereira da Silva, do Departamento de Ciências Sociais. Ele destacou que, ao mesmo tempo em que homenageia a artista, a solenidade dialoga com debates contemporâneos importantes, como a tramitação da PEC 27/2024. De acordo com Robson, o parecer da proposta — relatado pelo deputado federal Orlando Silva — já foi aprovado na Comissão de Constituição e Justiça e segue para o plenário da Câmara, com a missão de incluir na Constituição o capítulo da promoção da igualdade racial e o Fundo Nacional de Reparação Econômica. “É um esforço institucional para enfrentar uma ferida aberta há séculos: a escravidão que sustentou a riqueza de poucos, moldou as desigualdades estruturais do país e cujos efeitos persistem até hoje”, afirmou.
O vice-diretor do Centro de Educação e Ciências Humanas (CECH) e professor do Departamento de Artes e Comunicação (DAC), Adelcio Camilo Machado, destacou a trajetória musical de Leci, primeira mulher a integrar a Ala de Compositores da Mangueira, em 1972 — um marco em um ambiente historicamente masculino. Com mais de quatro décadas de carreira, ela consolidou uma obra em que arte e política se entrelaçam, abordando temas como racismo, machismo, feminismo negro e homo/lesbofobia, e valorizando a cultura afro-brasileira e periférica.
A vice-reitora da UFSCar, Maria de Jesus Dutra dos Reis, relembrou sua própria relação com a música da homenageada. “Conheci a força transformadora das canções de Leci Brandão ainda nos anos 1980, quando estava na universidade. Suas letras despertaram em mim consciência política e senso crítico, que me acompanham até hoje”, relatou.
Ao assumir a palavra, a homenageada saudou os orixás e o público presente e agradeceu a Deus pela força, resistência e pela esperança que a acompanham em sua trajetória. Também agradeceu a importante homenagem e enfatizou que o NEAB/UFScar “atua na capacitação da Lei 10.639/03 (que tornou obrigatório o ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana nos currículos das escolas de ensino fundamental e médio, públicas e privadas), um marco político da nossa luta que deve estar em todos os lugares”.
A artista também fez um resgate de sua trajetória, lembrando desafios e conquistas de uma vida marcada pelas dificuldades enfrentadas por uma mulher preta, pobre e comunista no Brasil. Destacou a música como ferramenta permanente de denúncia e mobilização: “Até hoje, é através da música que expresso minha indignação. Já cantei a liberdade, denunciei discriminações, a LGBTfobia, o racismo, o racismo religioso e tantas outras injustiças”.
Leci saudou ainda a Segunda Marcha das Mulheres Negras por Reparação e Bem Viver, realizada em novembro último em Brasília, e mencionou a decisão recente do Supremo Tribunal Federal (STF) que reconhece a existência de racismo estrutural no país. Esse reconhecimento é mais um passo que nos faz lembrar que continuamos em marcha”, mas “que nossos passos vêm de longe e que devemos continuar em marcha”, defendeu
A deputada também mencionou o período em que esteve hospitalizada, em agosto, e celebrou o fato de estar presente na cerimônia o que reforça a certeza de que “ainda estou aqui, com minhas camaradas e meus camaradas — e agora, com muita honra: Doutora Honoris Causa!”, disse, emocionada.
Ao encerrar sua fala, dedicou o título às mulheres negras do Brasil: “Recebo este título com alegria, orgulho e humildade, como um gesto também à história de cada uma de nós. Àquelas que não puderam sentar em bancos de universidade, mas que se insurgiram; às que, mesmo excluídas, ousaram criar e reinventar o mundo; às que, apesar da violência, teimam em realizar futuros possíveis”.
Leci saudou ainda a deputada estadual Paula, da Bancada Feminista do PSOL, e o deputado federal Orlando Silva (PCdoB-SP), “culpado”, segundo ela, por seu ingresso na política. Estiveram presentes também os vereadores Guilherme Bianco (PCdoB, Araraquara), Larissa Camargo (PCdoB, São Carlos), Raquel Auxiliadora (PT, São Carlos) e o vice-prefeito de São Carlos, José Leifrançoso.
“Que coisa mais linda foi a entrega do título de Doutora Honoris Causa para a madrinha Leci Brandão”, celebrou o vereador Guilherme Bianco. “É uma honra lutar ao lado de Leci e ver, ao vivo, essa mulher fazer história tantas vezes. Obrigado por tanto, Leci!”, completou.
Encerrando a cerimônia, a reitora da UFSCar, Ana Beatriz Oliveira, destacou que a concessão do título celebra também “a força ancestral, a lucidez política e a capacidade transformadora das mulheres negras, que moldam a história do Brasil mesmo quando a sociedade insiste em lhes oferecer menos do que merecem”. A reitora acrescentou que o reconhecimento carrega simbolismos importantes, como o resgate da cultura popular brasileira. “Desejo que mais pessoas tenham acesso à sua contribuição e reconheçam em Leci não apenas a artista e a parlamentar exemplar, mas uma líder que inspira coragem, afirma identidades e abre caminhos onde antes só havia barreiras”, finalizou.











