Após 18 dias de mobilizações, a Confederação de Nacionalidades Indígenas do Equador (Conaie) pôs fim aos gigantescos protestos que paralisaram o país, nesta quinta-feira (30), conquistando um acordo com o governo. Em entrevista ao HP, a vice-presidenta da Conaie, Zenaide Yazacama, denuncia o governo de Lasso por graves violações aos direitos humanos – como assassinatos e prisões arbitrárias – e convoca os equatorianos a se manterem vigilantes nos próximos três meses. O prazo foi dado pelos indígenas para que também haja avanços na área do crédito agrícola, educação e saúde
LEONARDO WEXELL SEVERO
Leonardo Severo – Faça uma breve avaliação do movimento que paralisou o Equador e quase levou o governo de Guillermo Lasso ao impeachment
Zenaide Yazacama – Após 18 dias de uma jornada de mobilizações em que nossos irmãos e irmãs indígenas vieram de diferentes lugares do país como a Amazônia, Serra e Costa equatoriana, e de vários lugares muito distintos, enfrentando situações bastante críticas como a brutal repressão do governo por meio da força pública. Graças a Deus sobrevivemos e nos mantivemos firmes, apesar de termos sido submetidos às mais diferentes formas de violações dos direitos humanos. Rechaçamos o desrespeito aos nossos direitos e pedimos paz para o Equador.
Na segunda-feira (27) havíamos conseguido uma primeira aproximação, um diálogo com o governo nacional e avançado bastante, deixando para a terça-feira (28), às 9 horas, para encerrá-lo, mas não foi assim. O governo anunciou o rompimento do diálogo com o movimento indígena. Nossa mobilização foi pacífica e pudemos demonstrar que agimos com muita capacidade, cautela e serenidade. Na quarta-feira (29) fomos avisados que a reunião ficaria para esta quinta-feira (30), quando finalmente encerramos a jornada.
Em dois dos dez pontos propostos, a Conaie conseguiu o seu objetivo. Mais adiante serão realizadas mesas de trabalho para dar continuidade ao processo de negociação junto aos respectivos ministérios.
L.S. – Dentro dos dez pontos, quais os que vê como fundamentais? A Conaie fala que foram conquistas da ordem de cerca de um bilhão de dólares do orçamento para a área social
Z.Y. – Na questão dos combustíveis havíamos solicitado que não houvesse mais aumentos, com uma redução de US$ 0,40 por galão [3,78 litros] e o congelamento do diesel em US$ 1,50 e a gasolina extra em US$ 2,10. Porém, lamentavelmente, isso não ocorreu. O governo colocou travas e baixou em US$ 0,15 o galão, o que não condiz com a necessidade dos produtores. [O valor do galão do diesel ficou em US$ 1,75 e da gasolina em US$ 2,40].
Em relação ao alívio econômico, o tema da moratória das dívidas vencidas foi solicitado para que houvesse medidas não apenas do ponto de vista do banco estatal, mas também dos privados, já que muitos de nós somos agricultores, camponeses que contraíram dívidas com eles. São pessoas que solicitaram créditos e que, por ficarem sem trabalho, não têm condições de pagar. São, portanto, temas fundamentais que dizem respeito a todos os cidadãos equatorianos: como garantir um preço justo aos produtos do campo e os direitos dos trabalhadores, com uma política de investimento público para frear a precarização.
Há muito tempo também estamos alertando contra a ampliação da fronteira extrativa, pela exploração da mineração nos territórios indígenas e uma reparação integral pelos impactos ambientais causados.
L.S. – Vocês têm alertado que o extrativismo é um problema bastante sério nas suas terras. Como é que se dá sua exploração?
Z.Y. – Este problema é grande, sendo a maior parte de responsabilidade de empresas transnacionais. Outra parte é gerido por uma pequena elite, que só favorece um percentual ínfimo dos equatorianos. O que está claro é que nós somos cuidadosos com a natureza, enquanto a atividade petrolífera, há mais de 50 anos em nossos territórios, só nos tem trazido mais pobreza. A riqueza se concentra nas cidades, com a elite. Esta é uma reclamação justa e os indígenas da Amazônia equatoriana vêm lutando para proteger o meio ambiente, para fazer com que se respeite e pare com a contaminação. Ao defender a natureza estamos defendendo os direitos coletivos, os direitos humanos.
L.S. – O enriquecimento de uma casta tem se transformado na miséria de milhões de equatorianos. Qual é a relação do salário mínimo com a cesta básica?
Z.Y. – Nossa economia é dolarizada e está tudo muito difícil. O valor da cesta básica ultrapassa o valor do salário mínimo, que é de US$ 408. Não há como sobreviver. Subiram os preços de todos os bens de primeira necessidade e o bolso dos trabalhadores não alcança, nem de longe, para atender as suas necessidades. Quem dirá os povos e nacionalidades que trabalham para ganhar um dólar por dia. Não há como levar sequer o pão diário para suas casas.
Por isso a reivindicação que fazemos é, em nome de todos nós. Porque o governo não tem sabido controlar os preços, que dispararam. Enquanto os alimentos que produzimos, como mandioca, banana, batata, cebola, e tudo o que é dos camponeses não é reajustado em nada. O intermediário vende a um preço mais elevado ao comerciante, que sobem os preços sem qualquer critério e de forma exagerada, repassando aos consumidores. Por isso defendemos que o governo controle os preços, para que a população tenha acesso aos produtos.
L.S. – Ao mesmo tempo em que falava que vocês não queriam dialogar, o governo prendeu o presidente da Conaie, Leonidas Iza, para depois ter que liberá-lo
Z.Y. – Desde o primeiro dia enfrentamos as ameaças de repressão e perseguição por parte do governo contra os dirigentes, mas isso só nos fortaleceu ainda mais. As pessoas se mobilizaram com mais força. Como vice-presidenta, com o total respaldo de nossa gente, assumi o mandato conferido e denunciei o ódio e a discriminação governamental. Este ódio contra os indígenas esteve visível na forma como o governo se apresentou em cadeia nacional, tratando de desconhecer nosso companheiro dirigente. É lamentável tudo o que tenha se passado, com assassinatos e prisões de manifestantes, e espero que vocês possam investigar e fazer chegar a verdade ao povo brasileiro.
Queremos viver em um país desenvolvido, reativar a economia e, ao contrário disso, o governo Lasso está nos tratando como animais, dito que somos violentos, e feito sangrar povos pacíficos que acreditam que o diálogo é o melhor caminho. Vale lembrar que, desde o começo das negociações, já se passaram cerca de oito meses até finalmente chegarmos a esse acordo, com toda desconfiança. Temos de seguir vigilantes e dar continuidade ao processo a fim de que seja cumprido em toda a sua plenitude.
Vi as capas dos principais jornais equatorianos que atuam, descaradamente, como instrumento de repercussão do presidente Lasso. O que fazer?
Alguns meios de comunicação fazem parte da equipe de governo e outros, por pertencerem à oligarquia, simplesmente buscam deslegitimar e criminalizar o movimento indígena, daí o nosso mais veemente rechaço. O que temos visto, e enfrentado, é uma onda de violência sem precedentes, uma discriminação que sinto como mulher e como indígena.
Agora que suspendemos a mobilização o fundamental é manter o povo vigilante para o cumprimento do acordo. Como representantes indígenas é isso o que vamos exigir. Não permitiremos que 18 dias de luta sejam em vão. Foram noites dormindo ao relento, passando frio, adoecendo, com irmãs de luta ao lado de seus filhos, outras que necessitaram deixar os filhos em suas casas, uma jornada dura que precisa ser respeitada. É preciso que cada um dos pontos acordados seja implementado a fim de aliviar a grave situação econômica vivida, com melhoras para a saúde e a educação das nossas famílias e com decretos para defender a vida.