Relíquia quase desconhecida de Mauro Bolognini será exibida na próxima segunda-feira (13), no Cine-Teatro Denoy de Oliveira
LUÍSA LOPES
“Libera, Amore mio!” (1975) não está entre as obras mais populares de Mauro Bolognini. O diretor é mais conhecido por filmes que criticam os costumes da sociedade burguesa italiana, sempre cercada de provincianismo e hipocrisia religiosa, como em “O Belo Antônio”.
Já “Libera, Amore Mio”, sabe-se lá o por quê, acabou sendo considerado secundário na filmografia do diretor. Um dos motivos pode ser o fato de ter sofrido com a censura, que atrasou seu lançamento em dois anos. Ainda assim, nota-se a comovente atuação de Claudia Cardinale no papel de uma anarquista apaixonada e Adolfo Celi no papel de seu pai. Além disso, há a colaboração de Nicola Badalucco (roteirista de “Deuses Malditos”, de Luchino Visconti) e a trilha musical de Ennio Morricone.
É um belo filme sobre uma época de opressão e medo, mas também sobre a coragem de muitas pessoas – nesse filme, em especial, a coragem de uma mãe que decidiu não se submeter, mesmo que isso lhe causasse problemas.
Quando Mauro Bolognini decidiu filmar “Libera…”, a Itália passava pelos chamados “anos de chumbo”, uma convulsão política que levava o país a extremos. De ambos os lados – direita e esquerda – atentados terroristas irrompiam e o governo da Democracia Cristã dominava a guerra de narrativas na imprensa. A nostalgia ao regime fascista começava a se fortalecer nas classes dominantes.
Exemplo desse momento é o assassinato de Aldo Moro em 1978, que até hoje não está muito bem solucionado. O líder da Democracia Cristã havia sido sequestrado pelas Brigadas Vermelhas e assassinado após 55 dias em cativeiro. Posteriormente, investigações apontaram a participação de grupos estrangeiros, em especial da Inglaterra e dos EUA, em nome da OTAN. A intenção seria influenciar a opinião pública contra os comunistas e manter o quadro de tensão no país.
Diante desse quadro de nascimento de um neo-fascismo na década de 70, é um pouco mais fácil entender a filmografia italiana da época, um tanto mais obscura em espírito do que em outros momentos. É nessa época que o cinema político italiano atinge seu auge, com filmes como “Investigação sobre um cidadão acima de qualquer suspeita” (Elio Petri, 1970), “O Conformista” (Bernardo Bertolucci, 1970), “O Caso Mattei” (Francesco Rosi, 1972) e “Cadáveres Ilustres” (Francesco Rosi, 1976). Outros, que não entram na classificação de cinema político, carregam o mesmo nível de acidez e/ou pessimismo: “Telefones Brancos” (Dino Risi, 1976), “1900” (Bernardo Bertolucci, 1976), “O Jardim dos Finzi Contini” (Vittorio de Sica, 1970) e até mesmo o clássico “Nós Que nos Amávamos Tanto” (Ettore Scola, 1974).
Foram tempos difíceis.
“Libera, Amore Mio” se passa durante os anos 30, quando o fascismo ainda é novidade e nem todo mundo o via como uma grande ameaça. É claro que, desde a década anterior, o fascismo ascendeu com violência, mas havia uma esperança de melhoria nas condições de vida geral. É interessante como a maioria dos filmes italianos tratam esse primeiro momento de forma cômica, quase uma grande piada na qual os fascistas eram gente sobretudo cafona e meio estúpida. A grande virada no entendimento da realidade na cinematografia se dá, em diversos filmes (por exemplo “Anos Difíceis”, de Luigi Zampa), no momento em que é declarada a guerra. E não porque o fascismo só se torna uma ameaça a partir desse momento, mas sim porque é quando boa parte da população percebe que é muito tarde para voltar atrás.
Na história, vemos Libera Amore Anarchia (sim, esse é o nome dela) ainda criança assistindo à prisão de seu pai anarquista. Ele acaba exilado na ilha de Ustica, onde passa boa parte de sua vida. Libera cresce, se casa com Matteo e se torna mãe de duas crianças. No começo, sua resistência ao fascismo não passa de uma série de pequenas explosões cômicas que irritam seu marido. Libera procura demonstrar sua resistência política em sua vida doméstica e na criação de seus filhos, que estudam na escola fascista. Seu comportamento ofende a sociedade fascista, geralmente baseada no silenciamento e na subordinação da mulher italiana. À medida que o filme passa, vemos a situação apertar e as provocações da personagem principal fazem sua família ser expulsa de pelo menos duas cidades. Um retrato cômico, porém angustiante, de uma família tentando sobreviver aos longos anos de uma sociedade fascista. Libera não conseguiria se contentar com o papel de dona de casa enquanto sua nação era oprimida.
O sentimento de apreensão fica mais claro quando a personagem abriga em sua casa, a pedido de seu pai, um fugitivo partigiano chamado Sandro Poggi. Depois disso, Libera é presa e acaba exilada junto com o pai na ilha de Ustica. Matteo segue criando seus filhos e trocando cartas apaixonadas com sua esposa. Libera amadurece e se torna mais séria à medida que o cerco fascista se fecha, próximo ao início da guerra. Ao conviver com membros da resistência partigiana, entende que a luta não é feita de forma individual. É como se ganhasse a consciência de que seu comportamento impulsivo era, afinal, infrutífero.
As cenas finais do filme, que termina alguns dias após a libertação da Itália, apontam para uma revisão necessária: com a entrada do exército aliado na Itália, com o auxílio da resistência partigiana, muitos adeptos do fascismo se assimilaram à “nova ordem” democrática sem precisar responder pelos seus próprios crimes. Em “Telefones Brancos”, a personagem de Agostina Belli, Marcella, comenta sobre o mesmo período: “De um dia para o outro 40 milhões de italianos se deram conta, com orgulho, de que sempre tinham sido antifascistas.” Talvez, falando desta forma, pareça um pouco de rancor da parte de Dino Risi considerar que, de uma só vez, todos os italianos mudaram de lado, mas é preciso dar um desconto a quem viveu e se prestou a fazer uma análise sobre este período. O fato é que os italianos, diferente dos alemães, nunca fizeram um acerto de contas após o final da 2ª Guerra. Não houve “julgamento em Nuremberg”, ou uma investigação aos oficiais fascistas. Isso talvez tenha sido crucial para o que aconteceu posteriormente, nos anos de chumbo. Há ainda o lembrete do personagem Sandro sobre como combater o fascismo em sua verdadeira origem: “Viu só? Você disse ‘derrubar Mussolini’. Mas lembre-se que não é só isso. O fascismo verdadeiro e perigoso é o dos poderosos, dos especuladores, dos patrões. Se esconde também por trás da democracia. São eles quem financiam o fascismo.”
Em “Libera, Amore Mio!”, Bolognini procura encarar os fantasmas de seu povo e lembrá-los de sua história recente para que essa nunca mais se repita. E o recado é claro: negar a própria história significa que aquilo que um dia eles foram pode ser aquilo que um dia voltariam a ser.
SERVIÇO
Filme: “Libera, Amore Mio!”, de Mauro Bolognini
Duração: 112 minutos
Quando: 13/03 (segunda-feira)
Que horas: pontualmente às 19 horas
Quanto: entrada franca
Onde: Rua Rui Barbosa, 323 – Bela Vista (Sede Central da UMES SP)