O líder do governo Bolsonaro no Senado, Fernando Bezerra Coelho (MDB-PE), fez uma inovação, em seu substitutivo da Medida Provisória nº 870 (MP 870), que trata da reorganização dos ministérios e secretarias da Presidência da República.
Coelho inseriu, no meio do texto, apresentado na terça-feira (07/05), um dispositivo que proíbe a Receita Federal de compartilhar informações com outros órgãos, mesmo que detecte crimes ou indícios de crimes.
Hoje, quando isso acontece, a Receita envia o caso para o Ministério Público Federal (MPF) – e este procede à investigação, e, se for o caso, à denúncia perante à Justiça.
O líder do governo quer impedir que isso aconteça. Se aprovado o seu substitutivo, a Receita só poderia enviar dados ao MPF se houvesse uma ordem judicial anterior. Como a Justiça poderia emitir uma ordem sem saber que a Receita detectou alguma coisa, é um problema que o senador não quer resolver, nem existe para ele.
Aliás, esse é o centro de sua proposta: impedir a própria investigação dos casos de corrupção detectados pela Receita Federal.
Evidentemente, a cada caso encontrado, a Receita teria de entrar com uma ação na Justiça, para que esta autorizasse o envio dos dados ao MPF.
Como se pode perceber, algo muito prático – e muito barato… Além de alertar os criminosos para a investigação.
É óbvio, como diz Geraldo Seixas, presidente do Sindicato Nacional dos Analistas Tributários da Receita Federal do Brasil (Sindireceita), qual é o objetivo desse jabuti em cima da árvore, no substitutivo de uma MP que não trata disso:
“A emenda (…) reduz o poder de atuação da Receita Federal do Brasil e compromete as ações de combate à corrupção e o enfrentamento a crimes como caixa dois, evasão de divisas, lavagem de dinheiro e outros. Sob a justificativa de promover maior segurança jurídica e preservar as garantias constitucionais da intimidade e do sigilo de dados, a referida emenda, na prática, impede que operações de combate à corrupção possam ser executadas a partir de informações que venham a ser descobertas em ações fiscais empreendidas pela Receita Federal. Se essas alterações (…) já estivessem em vigor, operações como a Lava Jato jamais teriam a dimensão que todos reconhecem” (v. Relatório da MP 870 fragiliza Receita e enfraquece combate à corrupção no Brasil, OESP 10/05/2019).
Obviamente, não é um acaso que essa tentativa use um modo especialmente sorrateiro – o de ser plantada no meio de um projeto (aliás, de uma lei) que não trata desse assunto.
DEVER
O entendimento atual do Supremo Tribunal Federal (STF), reafirmado em um julgamento relativamente recente, é que a Receita pode compartilhar informações com o Ministério Público, sem necessidade de ordem judicial, devido à Lei Complementar nº 105, de 2001, que foi considerada constitucional (cf. STF, Recurso Extraordinário nº 601.314, 24/02/2016).
Na verdade, a lei obriga os auditores da Receita a encaminhar os casos suspeitos ou francamente criminosos para o Ministério Público, sem ordem judicial anterior. Nas palavras da procuradora geral da República, Raquel Dodge: “Mais que uma faculdade, há o dever do agente público de comunicar a prática de um crime de que tenha conhecimento, às autoridades competentes” (cf. Memorial da Procuradoria-Geral da República ao STF, RE nº 1055941, 21/03/2019, p. 9, grifo no original).
O STF e a PGR consideram que a comunicação ao Ministério Público, pela Receita, dos casos suspeitos, não é uma quebra de sigilo, mas uma transferência desse sigilo para o MP.
Além disso, mesmo que fosse considerada uma quebra:
“… no sistema constitucional brasileiro, não há direitos ou garantias que se revistam de caráter absoluto, já que razões de relevante interesse público, ou exigências derivadas do princípio de convivência das liberdades legitimam, ainda que excepcionalmente, órgãos estatais, a adotar medidas restritivas das prerrogativas individuais ou coletivas, desde que respeitados os termos estabelecidos na própria Constituição. O sigilo bancário, o sigilo fiscal e o sigilo sobre os registros telefônicos, portanto, não são oponíveis como direitos absolutos em nosso sistema jurídico. Admite-se que a privacidade seja limitada em prol do interesse público de punição dos ilícitos penais, em benefício de toda a sociedade. O direito individual cede lugar – sob condições definidas em lei – ao interesse público, na persecução penal, cujo dever de zelar é do Estado” (cf. PGR, Memorial, p. 4; v., também, o artigo de uma juíza e uma procuradora, Adriana Alves dos Santos Cruz e Tânia Nigri, O sigilo bancário e os limites da representação fiscal para fins penais).
Porém, após a revelação de que Gilmar Mendes estava entre as 134 pessoas suspeitas de fraude tributária, relacionadas pela Equipe Especial de Programação de Combate a Fraudes Tributárias (EEP Fraude), da Receita Federal, houve alguns peristaltismos no sentido de mudar esse entendimento.
Não se conseguiu – mas a decisão sobre um pedido para que o STF declarasse, outra vez, a legalidade do envio de dados da Receita ao MP, foi adiada pelo presidente do Tribunal (v. Toffoli adia julgamento sobre entrega de dados da Receita ao MPF, Conjur, 21/03/2019).
A emenda do líder do governo Bolsonaro corresponde, inteiramente, ao ponto de vista expresso pelo sr. Gilmar Mendes em algumas entrevistas.
E, por coincidência – certamente por coincidência -, ao ponto de vista de todos os corruptos do país.
O atual senador Jarbas Vasconcelos disse uma vez que Fernando Bezerra Coelho “tem uma história marcada por adesismo de ocasião”.
Realmente, de ministro de Dilma a líder do governo Bolsonaro, a ele nem um pequeno pulo foi necessário – e ninguém estranhou que isso acontecesse.
Entretanto, Coelho foi denunciado, pelo Ministério Público Federal, por receber R$ 41,5 milhões em propina da Queiroz Galvão, OAS e Camargo Corrêa.
Salvou-o a então famosa segunda turma do STF, que recusou a denúncia, por três votos a dois, no dia 11de dezembro de 2018.
Votaram em favor de Coelho: Ricardo Lewandowski, Dias Toffoli e Gilmar Mendes.
Votaram pelo recebimento da denúncia contra Coelho, os ministros Edson Fachin e Celso de Mello.
C.L.