Morreu neste domingo, aos 75 anos, a pioneira na luta contra a segregação escolar, Linda Brown. Em 1951, seu pai foi o principal autor no processo conhecido como “Brown versus Conselho de Educação”, que desafiou o segregacionismo norte-americano sob o imoral lema de “separados, mas iguais”.
A ação aconteceu depois que, na cidade de Topeka, no estado do Kansas, ele tentou matricular sua filha de 9 anos em uma escola proibida para negros, situada ao lado de sua casa. Quatro anos mais tarde, em 17 de maio de 1954, veio a histórica sentença da Suprema Corte dos EUA, que, por unanimidade, decidiu que a segregação escolar era contrária à 14º Emenda da Constituição.
“Linda fez parte dessa juventude heróica que, junto a sua família, lutou bravamente contra a segregação racial nas escolas públicas”, afirmou na segunda, em uma nota sobre o óbito, Sherrilyn Ifill, presidente da histórica Associação Nacional para o Progresso das Pessoas de Cor (NAACP, nas siglas em inglês), fundada em 1909, entidade que junto com a família Brown, organizou o processo coletivo contra a segregação nas escolas.
O processo foi um marco na luta pelos direitos civis e igualdade nos EUA, e a decisão favorável foi recebida com entusiasmo. Para Martin Luther King, a notícia foi uma “alvorada alegre para colocar fim na longa noite de segregação forçada”.
A história de Linda teve início em 1951, quando ela cursava a terceira série em uma escola fundamental para negros, a Monroe Elementary School, há cerca de três quilômetros da sua casa. “Ela queria ir para a escola com suas amigas, mas as escolas primárias de Topeka foram segregadas”, lembra sua mãe, Leola Brown. “Um dia o pai dela disse que tentaria fazer algo a respeito” e nesse sentido prometeu “dar o seu melhor”.
Foi assim que o reverendo Oliver Leon Brown, em setembro de 1950, pegou sua filha e a levou até a escola primaria ao lado de sua casa, a escola Sumner, para exigir que o diretor aceitasse a matrícula de sua filha. Ao relatar algumas de suas lembranças desse dia, no documentário “Eyes on the Prize”, Linda afirma que podia ouvir a discussão vinda do escritório do diretor mesmo enquanto aguardava no saguão da escola. “Sabia que algo estava deixando meu pai muito tenso”. Terminada a conversa, ambos voltaram caminhando para casa. “Eu podia sentir a tensão na mão dele, ele estava muito contrariado”.
Linda comenta que muitas vezes seu pai chegava em casa e encontrava sua mãe chorando. “Isso ocorria porque eu caminhava, assim como fez minha mãe durante anos, para pegar o ônibus escolar” até a escola. “Recordo-me das duras caminhadas e do frio intenso que chegava a congelar minhas lagrimas no rosto”, relatou Linda a uma plateia durante uma palestra na Universidade de Michigan.
“Essas eram as circunstâncias que tanto irritavam nossos pais. ‘Por que temos que dizer aos nossos filhos que por serem negros não lhes é permitido estudar próximo de casa?’, perguntou meu pai”. Para ela, está era uma pergunta que estava no coração de todos os negros. “Os negros sentiam que já havia passado da hora de matricular seus filhos em escolas mais próximas”.
Após diversas recusas da direção, Oliver Brown e outros pais decidiram, em fevereiro de 1951, com o apoio da NAACP de Topeka, entrar com uma ação conjunta contra o distrito na Justiça Federal. Ainda em julho, três juízes decidiram pela manutenção da segregação das escolas. Em 1952, o caso foi recursado à Suprema Corte, e ao unir no mesmo processo diversos casos, entre os mais conhecidos, os casos de Delaware, Kansas, Carolina do Sul, Virgínia e em Washington, que é a capital do país, o processo ganhou notoriedade e passou a ser conhecido como o caso “Brown versus Conselho de Educação”.
Contra o estado de segregação advogou Thurgood Marshall, que era o conselheiro-chefe do Fundo de Defesa Legal e Educação da NAACP. E mesmo ocorrendo distante da cidade de Topeka, e apesar da dificuldade de comunicação, o julgamento foi acompanhado em detalhe pela família Brown. “Nós vivíamos na calmaria do olho do furacão, observando a tempestade ao nosso redor e nos perguntando quando isso iria acabar”, afirma Linda ao ressaltar que seu pai e sua família nunca desanimaram, mesmo sem saber “quão longo seria o processo”.
No dia 17 de maio de 1954, a Suprema Corte anunciou a decisão de forma unânime: a segregação nas escolas violava a Constituição. Em sua decisão, os juízes afirmam que “separar as crianças negras de outras de idade e qualificações semelhantes, unicamente por sua raça, causa um sentimento de inferioridade em relação à posição na comunidade, o que pode afetar seus corações e mentes de uma maneira improvável de ser revertida”. Na decisão, ainda constava que a segregação era uma prática que violava a cláusula de “proteção igualitária”, prevista na 14º Emenda da Constituição.
Em entrevista à rede PBS, em 1985, durante as comemorações do 30º aniversário da sentença, Linda avaliou que a decisão teve “um impacto em todas as facetas na vida dos negros ao longo de todo o país. Eu penso que isso significou, para os nossos jovens, a eliminação desse sentimento de cidadãos de segunda classe. Acho que possibilitou que os sonhos, as esperanças e as aspirações dos nossos jovens chegassem mais longe nos dias de hoje”.
Ao comentar sobre suas recordações envolvendo a decisão, Linda disse que os olhos de seu pai estavam “cheios de lágrimas” quando ela chegou em casa, ao voltar da escola. Uma grande onda de “resistência” se deu em todo o país, a exemplo da Virginia, lembra ela, aonde o governador chegou a fechar as escolas para impedir a integração das crianças. Porém, em sua cidade, Linda conta que “nem eu, nem minha família sofremos o abuso e o conflito racial que aconteceu em tantas partes do país. Meu pai acreditava firmemente que Deus faria as pessoas fazerem a coisa certa”.
Com a decisão, a história de Linda e de sua família ganhou repercussão nacional e internacional. “Foi durante esse período que eu herdei muito do reconhecimento do meu pai”, que morreu pouco depois, aos 42 anos, em 1961. “Mal sabia ele que anos depois, quando saiu do banco de testemunhas, entraria para as páginas da História”.
No ano seguinte ao da decisão, no dia 1º de dezembro de 1955, a costureira, e também negra, Rosa Parks, se recusou a ceder seu lugar para um homem branco, conforme obrigavam as leis segregacionistas de Montgomery, capital do Alabama. Sua atitude deu início ao boicote dos ônibus na cidade, marcando uma onda de manifestações nacionais que colocaram fim a segregação, a exemplo da “Marcha sobre Washington por trabalho e Liberdade”, que reuniu centenas de milhares de negros e brancos, sob a direção de Martin Luther King.
Linda Brown é um símbolo da luta por direitos, e inspira movimentos como o “Black Lives Matter”, que ganhou relevância a partir de 2014, ao mobilizar milhares de pessoas contra a discriminação que faz os negros amargarem diversos abusos, sobretudo das forças policiais, a exemplo do assassinato de Michael Brown na cidade de Ferguson, e de Eric Garner, em Nova Iorque o recente assassinato de Stephon Clark, pela polícia de Sacramento com 20 tiros.
A segregação nos EUA foi legalizada em 1896, no caso que ficou conhecido como “Plessy versus Ferguson”, onde a Suprema Corte decidiu que segregar os negros nos estados do sul não constituía violação a Constituição dos EUA. A decisão foi um revés contra os esforços liderados pelo presidente Abraham Lincoln, que vencera uma guerra civil, a Guerra de Secessão, para colocar fim a escravidão e avançar na luta por igualdade.
GABRIEL CRUZ