A carta abaixo foi publicada pelo Correio Paulistano, em sua edição de 10 de novembro de 1871.
Seu autor, Luiz Gama, era o principal líder abolicionista e republicano, além de grão-mestre da Loja Maçônica América, que reuniu figuras como Antonio Carlos Ribeiro de Andrada, Martim Francisco de Andrada Filho, Salvador Furtado de Mendonça, Ruy Barbosa, Américo Brasiliense, Joaquim Nabuco, Saldanha Marinho, Américo de Campos, Júlio Ribeiro, Bernardino de Campos, Rangel Pestana, Rodrigo Otávio, Ferreira de Menezes, Antunes Maciel, Paula Souza, Prudente de Moraes e Pinheiro Machado.
Espantosamente, esses homens, todos brancos, em geral abolicionistas e republicanos, aceitavam como natural a liderança de Luiz Gama, negro e ex-escravo.
Foi, então, que Luiz Gama e a Loja América foram acusados de comunistas. O motivo? Sua posição a favor da abolição da escravatura no Brasil. Tratava-se de um terrível atentado à propriedade privada. Logo, os adeptos da causa só poderiam ser comunistas – e comunistas da pior espécie…
No dia de hoje, 13 de maio, em que se comemora o 134º aniversário da Abolição, a republicação da carta de Luiz Gama é apenas uma pequena homenagem. (C.L.)
Carta ao Correio Paulistano
Ilustre sr. redator,
Permitir-me há que, por um pouco, eu abuse da vossa reconhecida benevolência.
Sei que algumas pessoas desta cidade, aproveitando caridosamente o ensejo do movimento acadêmico, mandaram dizer para a Corte, e para o interior da província, que isto por aqui, ao peso de enormes calamidades, ardia entre desastres temerosos, e desolações horríveis, atestados por agentes da INTERNACIONAL!… e que eu que não por certo faltar à sinistra balbúrdia, estava capitaneando uma tremenda insurreição de escravos!…
Parece, à primeira vista, que tudo isto não passou de simples manejo de boatos humorísticos, propalados por histriônicos de suíça, no intuito de promoverem o riso dos parvalhões seletos; e de certo os ânimos joviais muito terão folgado com estes chorrilhos de mentiras extravagantes.
Preciso é, porém, não perder de vista em toda esta calculada urdidura, o malévolo espírito de intriga política, tão ardilosa quanto oportunamente manejado; pois é digno da mais sisuda observação, que ao passo que se anunciava o incêndio do edifício da academia jurídica, as barricadas pelas ruas, o encontro das canoas bélicas no Tamanduateí e a sanguinolenta insurreição dos escravos, insinuava-se com a mais requintada perfídia, em cartas endereçadas a pessoas consideradas – que a Loja América não é estranha à resistência acadêmica, e que esta loja maçônica trabalha sob os influxos de agentes da Internacional!… E tudo isto é calculadamente dito para obstar adesões ao partido republicano cujo desenvolvimento começa de incomodar os graves servidores do rei, e deste modo explica-se a cuidada hipocrisia da imprensa monarquista, que não cessa de propalar – que o partido republicano compõe-se de “comunistas, de abolicionistas, de internacionalistas” e muitas outras associações “irreligiosas” e perigosíssimas.
Não quero que meu humilde nome sirva de móvel a especuladores impudicos, nem alimentar, com o meu modesto silêncio, a indecisão de alguns espíritos timoratos, para os quais são industriosamente escritas semelhantes balelas.
Sou agente da Loja América em questões de manumissão, e, com o eficaz apoio dela, tenho promovido muitas ações em favor de pessoas livres, ilegalmente mantidas em cativeiro. A isto somente e à promoção das subscrições filantrópicas em proveito dos que pretendem alforriar-se tem-se limitado todo o meu empenho em prol da emancipação; nem outra há sido a nobre missão da Loja América.
Protesto sinceramente, não só para fazer calar os meus caluniadores políticos, como aos inimigos da Loja América, que não sou nem serei jamais agente ou promotor de insurreições, porque de tais desordens ou conturbações sociais não poderá provir o menor benefício à mísera escravatura, e muito menos ao partido republicano, a que pertenço, cuja missão consiste, entre nós, em esclarecer o país.
Se algum dia, porém, os respeitáveis juízes do Brasil esquecidos do respeito que devem à lei, e dos imprescindíveis deveres, que contraíram perante a moral e a nação, corrompidas pela venalidade ou pela ação deletéria do poder, abandonando a causa sacrossanta do direito, e, por uma inexplicável aberração, faltarem com a devida justiça aos infelizes que sofrem escravidão indébita, eu, por minha própria conta, sem impetrar o auxílio de pessoa alguma, e sob minha única responsabilidade, aconselharei e promoverei, não a insurreição, que é um crime, mas a “resistência”, que é uma virtude cívica, como a sanção necessária para pôr preceito aos salteadores fidalgos, aos contrabandistas impuros, aos juízes prevaricadores e aos falsos impudicos detentores.
Esta é a verdade que profiro sem rebuço, e que jamais incomodará aos homens de bem.
Sou vosso respeitador e amigo,
S. Paulo, 9 de novembro de 1871
Luiz Gama
(Extraído de Lições de Resistência. Artigos de Luiz Gama na imprensa de São Paulo e do Rio de Janeiro. Organização, introdução e notas Ligia Fonseca Ferreira. Edições do SESC, 2020.)