Um dos livros mais importantes, daqueles publicados nos últimos anos, é “Com a Palavra, Luiz Gama”, que recomendamos calorosamente aos nossos leitores.
Trata-se de uma reunião primorosa (o leitor verá que não é exagerado esse adjetivo, nem afetado, neste caso, o seu uso) – uma coletânea ou antologia – do que de melhor produziu o grande Luiz Gama, organizada pela professora Ligia Fonseca Ferreira, com impecável apresentação gráfica (v. “Com a Palavra, Luiz Gama: poemas, artigos, cartas, máximas”, Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2011).
Quanto trabalho este livro não nos teria economizado, se o conhecêssemos antes! Pois é uma trabalheira infinda recuperar os textos de Gama, nos jornais da época em que ele os escreveu. Ou àqueles de seus inúmeros discípulos – que incluem Lúcio de Mendonça, Raul Pompeia, Rui Barbosa e toda uma geração de republicanos, abolicionistas, democratas e patriotas brasileiros.
Nos 190 anos de seu nascimento em Salvador, Bahia, apresentamos aqui uma raridade recuperada por Ligia Fonseca Ferreira através do historiador José Murilo de Carvalho: o texto de Luiz Gama sobre Tiradentes, que revela tanto sobre o herói mineiro quanto sobre o herói baiano que desenha o perfil daquele.
Reproduzimos a nota de Ligia Fonseca Ferreira:
“Publicado num periódico da Corte [Rio de Janeiro], este artigo, certamente encomendado ao autor, a que ninguém antes havia se referido, testemunha a prestigiosa voz entre os artífices da República de um Luiz Gama que faleceria dali a alguns meses. Sobre este texto, escreve José Murilo de Carvalho: ‘Havia poderosa simbologia na luta entre Pedro I e Tiradentes. Sua expressão mais forte talvez esteja em artigo do abolicionista e republicano Luiz Gama, publicado no primeiro número do jornal comemorativo do 21 de abril editado pelo Clube Tiradentes (1882). O título do artigo, ‘À forca, o Cristo da multidão’, é uma referência direta ao poema de Castro Alves. Luiz Gama leva ainda mais longe o paralelo entre Tiradentes e o Cristo. A forca é equiparada à cruz, o Rio de Janeiro a Jerusalém, o Calvário ao Rocio. À transformação da forca em altar, acrescenta a transmutação do monumento a Pedro I em patíbulo imperial. Em vez da forca, tornada altar da pátria, construíram um monumento. Em vez da tragédia do martírio, exibiram a comédia da estátua’. Cf. “Tiradentes, um herói para a República”, in: A formação das almas. O imaginário da República no Brasil, op. cit., p. 60-62. Nossos agradecimentos a José Murilo de Carvalho por nos ter comunicado o texto integral deste artigo.”
O poema de Castro Alves a que o historiador se refere, como fonte do título de Luiz Gama (“À forca, o Cristo da multidão”), são versos da peça “Gonzaga ou a Revolução de Minas”:
Ei-lo, o gigante da praça,
O Cristo da multidão,
É Tiradentes quem passa,
Deixem passar o Titão.
Em uma nota final, a organizadora do livro é ainda mais específica quanto à situação que cercava Gama, e demais republicanos abolicionistas, na segunda metade do século XIX.
No ano de 1862, em que a Independência do Brasil fazia 40 anos, a monarquia resolveu construir uma estátua equestre de Pedro I.
O problema foi o lugar escolhido: o Largo do Rocio, onde, em 1792, Tiradentes fora enforcado por decisão de Maria, a Louca, a avó de Pedro I (e bisavó do então imperador, Pedro II).
“O evento [a inauguração da estátua de Pedro I] esteve na origem de um conflito político em torno da figura do ‘mártir da independência’ que opunha liberais radicais (partido de onde sairão os republicanos) a monarquistas. Como ressalta Luiz Gama, dois símbolos se entrechocam, na medida em que se tenta apagar do Rocio a memória de Tiradentes ali construindo um monumento em homenagem ao neto da rainha que ordenou a execução do ‘inconfidente’. O líder da revolução liberal de 1842 em Minas Gerais, Teófilo Otôni, qualificara a estátua de d. Pedro I de ‘mentira de bronze’, expressão depois retomada como uma espécie de ‘grito de guerra’ pelos adeptos da república que se recusavam a associar o nome de d. Pedro I ao processo de independência e viam naquela homenagem uma tentativa disfarçada de reforçar a monarquia num plano fortemente simbólico.”
A estátua de Pedro I ainda está, até hoje, no mesmo lugar. O que mudou foi o nome da praça onde ela foi erguida – o Largo do Rocio é hoje a Praça Tiradentes.
Abaixo, o texto de Luiz Gama.
C.L.
À forca o Cristo da multidão
LUIZ GAMA
Por entre as sombras e as convulsões agitadas da noite imensa dos séculos, ergueu-se, ao Norte da América, um grupo de Gigantes.
À frente deles Washington, pensativo como Arquimedes, com a ponta do gládio sagrado, embebida no sangue das batalhas, inscreve no mapa das Nações os Estados Unidos; e Franklin, o moderno Teramenes, arrebatando um raio ao sol, com lúcidas estrelas, grava no infinito a eterna legenda da Liberdade.
Uma misteriosa evolução faz o fatal clarão repercutir ao Sul; despertaram os filhos do Brasil: em Minas organizou-se a Inconfidência.
Esta associação revolucionária constituía um Apostolado completo. Havia um Cristo naquele conjunto de regeneradores; um Pedro, vacilante; um Judas inexcedível; a Ordem foi salva pela fé; a fé consolidou-se pelo martírio do Mestre.
O dia 21 de abril de 1792 designa o fatal acontecimento, o mais memorável que registra a história da América Meridional.
As ruas que conduziam ao Calvário regurgitavam de magnificência; assemelhavam-se às festas da Páscoa na Judeia.
Era imenso o concurso, um bulício de cabeças como as ondas inquietas do oceano.
A tropa imponente, unida, compacta, atestava com soberba exuberância, o luxo do poderio, do mando, a fátua vaidade do despotismo deslumbrado.
Nas janelas dos preparados edifícios ostentava-se, com opulência, o sexo gentil; rebrilhavam as sedas, o ouro e os diamantes: os primores d’arte desafiavam as obras-primas da natureza.
A religião, com estudada humildade, dava-se em piedade forçada; nos templos reboavam festivos cânticos.
Sobre o patíbulo, à guisa de uma sombra, estava um frade de pé; com um braço elevado indicava a eternidade. Acurvou-se um pouco; abraçou o penitente, beijou-lhe a corda que, à feição de colar, adornava-lhe o pescoço; orvalhou-a de lágrimas; com a mão direita, que tinha pelas costas, apertou a do algoz: ambos eram amigos velhos, costumavam ter destes encontros, estavam tintas de sangue…
O sacerdote perorou por meia hora; foi uma estrangulação moral de trinta minutos, lenta como um capricho de inquisidor. Quando a vítima foi entregue ao carrasco, restava apenas a morte física.
– “Tu contra o teu rei, nem os olhos levantarás”.
Foram estas as palavras preambulares do pregador!
Teu rei?!
E o que é o rei senão a feitura do povo?
Quê?! Valerá mais o jarro que o oleiro?
Nos confrontos da Teologia com o direito são vulgares estes santos absurdos da ortodoxia.
A soberania popular, excetuando-se O NOVENTA E TRÊS, é uma miséria política, sob a régia forma de um escárnio sacramental.
A meia hora do dia, como hoje, há 90 anos, expirou aquele que, neste país, primeiro propusera a libertação dos escravos, e a proclamação da República. Foi julgado réu de lesa-majestade, mataram-no, mas Tiradentes morto, como o sol no ocaso, mostra-se ao universo, tão grande como em sua aurora.
A musa da história tem a sua lógica invariável e seu modo peculiar de traduzir e registrar os acontecimentos.
O altar, as aras sacrossantas do martírio, aquele monumento mandado levantar pelo vice-rei, pelos magistrados – pelos fiéis servos da rainha – foi substituído por um patíbulo imperial, modelado em bronze; em vez da forca, uma estátua.
Desapareceu Joaquim José da Silva Xavier, para ser lembrado; surgiu Pedro Primeiro, o esquecido.
Mudaram-se os tempos.
A tragédia perdeu sua época, a comédia entrou em voga, o lugar do mártir está ocupado pela figura do cômico, é um arlequim sobre um túmulo, é um escárnio, é uma indecência, é uma solenidade chinesa do Paço de São Cristóvão!…
O éreo corcel, ousado como seu amo, atira brutalmente as patas sobre as cabeças dos miseráveis grandes, dos grandes miseráveis, e dos miseráveis, que ainda existem sem qualificação.
Os brasileiros e o povo hebreu tiveram dois inspirados precursores de sua regeneração.
O Rio de Janeiro, como Jerusalém, teve o seu Gólgota; dois grandes pedestais, levantados por a natureza, para dois Redentores.
Dois Cristos exigiam dois mundos.
Um divinizou a cruz, o outro a forca.
A cruz é o emblema da Cristandade, a forca o será da Liberdade.
O martirológio mostra dois pontos culminantes: o Calvário e o Largo do Rocio.
Concidadãos: descubramo-nos, ajoelhemo-nos.
O altar é a pátria; a pátria está no cadafalso.
Rendamos culto a Tiradentes.
São Paulo, 21 de março de 1882.
Matéria relacionada: