CARLOS LOPES
(HP, 13/07/2016)
Uma vez, ao fim de uma história em quadrinhos, fui pego (é isso: pego) por um poema na contracapa da revista:
“Eu nasci/ pra viver numa casa avarandada,/ cheia de samambaias,/ num subúrbio qualquer da Leopoldina,/ ali por Brás de Pina/ ou Vigário Geral./ Ser funcionário dos Correios,/ quiçá do Telégrafo Nacional./ Usar o velho fraque/ e cultivar um bruto cavanhaque,/ que dá certo ar conselheiral./ Ter sempre a mão/ minha muda/ de arruda/ e, na parede Cosme e Damião -/ os santinhos da minha devoção.// Ter, como esposa, uma senhora gorda,/ tipo da simpatia,/ falando brasileiro,/ e cozinhando o trivial./ Acreditar na homeopatia/ e chamar-me Amaral,/ Francisco Severino do Amaral./ Saiu tudo ao contrário./ Mas não faz mal…”
Bem, eu morava em um subúrbio da Leopoldina, no Rio. Talvez por isso, me pareceu tão impactante o poema, que era uma propaganda do livro “Poesias de Luiz Peixoto”, que Adolfo Aizen, dono da Editora Brasil-América (EBAL) – a maior editora de quadrinhos do país, antes de 1964 – conseguira, por fim, publicar, depois de anos insistindo com seu amigo, o poeta Luiz Peixoto, exatamente no fatídico ano que marcaria o escangalhamento do país (e o início do fim da EBAL, sem condições, depois do golpe de Estado, de concorrer com a Rio Gráfica, pertencente a Roberto Marinho e ao grupo que se expandiria em torno da TV Globo).
Mas quem era (ou quem é) Luiz Peixoto?
Bem, leitor, eis um dos poemas de Luiz Peixoto:
“Maria,/ o teu nome principia/ na palma da minha mão/ e cabe bem direitinho/ dentro do meu coração,/ Maria!// Maria,/ de olhos claros, cor do dia,/ como os de Nosso Senhor./ Eu, de vê-los tão de perto,/ fiquei ceguinho de amor,/ Maria!// No dia, minha querida,/ em que, juntinhos na vida,/ nós dois nos quisermos bem,/ à noite em nosso cantinho,/ Hei de chamar-te, baixinho,/ – não hás de ouvir mais ninguém -/ Maria!// Maria/ era o nome que eu dizia/ quando aprendi a falar,/ nome da minha avozinha,/ lá das bandas de além-mar./ E quando eu casar contigo,/ tu hás de ver que perigo/ que isso vai ser, ai meu Deus!/ Vai nascer, todos os dias,/ uma porção de Marias/ de olhinhos da cor dos teus,/ Maria!”
Interessante é a história desse poema:
“Luís Peixoto torna-se, em 1932, diretor da Rádio Clube do Brasil, com Roquete Pinto. Nesse ano, a 29 de abril, sobe à cena a revista Frente Única, de Luís e Ary Pavão (‘fraca’, segundo o crítico Mário Nunes: este afirma que ‘o que não presta supera o pouco bom’). Com Batista Júnior, foi empresário da Companhia de Burletas, no João Caetano. Em meados do ano, nasce uma das mais famosas músicas brasileiras de todos os tempos: o samba-canção Maria, música de Ary Barroso, letra de Luís Peixoto. Este, que trabalhava na montagem de uma peça luso-brasileira, Me Deixa, Ioiô, dele e de Freire Júnior, telefonara para Ary, no Recreio, e encomendara-lhe um bonito samba-canção, para ser incluído na trilha sonora. Ary lembrou-se logo de um samba cujo tema era a Bahia, e que fizera para uma revista de Afonso de Carvalho: “Bahia/ Cheguei hoje da Bahia/ Trouxe uma figa de Guiné/ Eu com ela faço fé/ Eu com ela faço fé/ Bahia”. Levou a composição a Luís, mas este, após dizer-lhe que a música era, de fato, uma beleza, não pensou duas vezes em dar sua opinião sobre a letra: ‘uma porcaria’. ‘Essa história de eu com ela faço fé é uma droga, Ary!’. Disse, então, que ia aproveitar a música em um dos quadros da peça, mas, com uma nova letra. E fez imediatamente os versos eternos de Maria, ao que consta, inspirado pela estrela portuguesa da Companhia Amarante-Lina Demoel, a bela Maria Sampaio” (cf. Ary Vasconcelos, “A Nova Música da República Velha”, 1985, p. 250).
Vejamos a história de outra das letras de Luiz Peixoto – desta vez, composta para o primeiro samba-canção da música brasileira. Relata Ary Vasconcelos:
“Foi ainda em 1928 que, pretendendo um bom número musical para a revista Miss Brasil, dele [Luís Peixoto] e de Marques Porto, procurou, para tanto, o compositor Henrique Vogeler. Este, que não fora feliz com as letras que tanto Cândido Costa (Linda Flor), como Freire Júnior (Meiga Flor) haviam colocado em uma melodia em que acreditava muito, sentou-se ao piano e tocou esse primeiro samba-canção no ritmo verdadeiro, pedindo a Peixoto que nele colocasse versos à altura da melodia e do novo gênero que concebera. O poeta, apoiando-se na tampa do piano, fez, na hora, a letra definitiva para Linda Flor/Meiga Flor, transformando-a em Ai, Ioiô (Iaiá): “Ai, ioiô/ Eu nasci pra sofrê. ..”, etc. Araci Cortes, a super-estrela de Miss Brasil – revista que estreou a 20 de dezembro de 1928 no Teatro Recreio – obteve, com Ai, Ioiô, um triunfo memorável, sendo obrigada a cantar, nessa noite, quatro vezes o samba-canção. A mesma Araci gravaria Ai, Ioiô em disco Parlophon (12.926-A), de sucesso fulminante, ao ser lançado em março de 1929.
“1929 é um ano cheio, para Luís Peixoto. A partir de março, com o disco de Araci Cortes – no qual consta, como co-autor, Marques Porto, que, já vimos, em nada colaborou nem na música, nem na letra, como, aliás, o próprio Luís Peixoto me confirmou, certa ocasião – Ai, Ioiô torna-se um sucesso nacional”.
A letra original, publicada por Peixoto, é a seguinte:
“Ai, Ioiô,/ eu nasci pra sofrê./ Fui oiá pra você,/ meus oinho fechô!/ E, quando os óio eu abri,/ quis gritá, quis fugi,/ mas você,/ eu não sei por quê,/ você me chamô!// Ai, Ioiô,/ tenha pena de mim,/ meu Sinhô do Bonfim/ pode inté se zangá./ Se ele um dia, soubé/ que você é que é/ o Ioiô de Iaiá!// Chorei toda noite/ e pensei/ nos beijo de amô/ que te dei./ Ioiô meu benzinho,/ do meu coração,/ me leva pra casa,/ me sorta mais não!”
PAÍS
Em “Ai, Ioiô” aparece uma característica de boa parte da poesia de Peixoto – e de outros poetas da época: o uso de uma linguagem coloquial, fora dos padrões ditos cultos. O poema de abertura de seu único livro é um exemplo (Carmen Miranda gravaria uma versão um pouco diferente, musicada por Almirante):
“Diz que esses branco de agora/ tem raiva dos preto inté…/ Pois óia, que é bom é preto:/ preto é o diamante, o café/ Preto é o oiá de Maria,/ esposa de São José./ Preta é a tinta que escreve/ e dá valô aos papé./ Preto foi São Benedito,/ que os branco faz tanta fé./ Preto é o carvão que dá fogo/ e sai pelas chuminé/ prá dá trabaio pros home/ assustentá as muié./ Preta é a jabuticaba,/ muito mais doce que o mé./ As pena do cisne é preta,/ pena de amô também é./ Mas a vingança dos preto,/ deixa falá quem quisé,/ é que Deus fez eles branco,/ mas foi nas sola dos pé!”
Um parágrafo do livro de Ary de Vasconcelos sintetiza bem o espírito da obra de Peixoto:
“Várias são as marcas da poesia de Luís Peixoto, mas é, certamente, a brasilidade, a mais pronunciada. É o perfume brasileiro autêntico o que nela se respira. Esse amor profundo pelo Brasil como que embebe todo o seu estro. Não é, porém, um amor abstrato e vão, voltado para o elogio pomposo e balofo da Natureza nossa, mas, acima de tudo, um carinho imenso pelo povo, pelos seus componentes mais desfavorecidos socialmente. Ao negro e ao mulato, faz correr sua melhor ternura. Muito antes de descobrirem, nos Estados Unidos, que ‘black is beautiful’, ele já provava, por a + b, que ‘o que é bão é preto’ (Preto e Branco). E confessa que trocaria toda a sua brancura para tornar-se o Mulato de Qualidade: ‘O que eu dava, mulato/ cheiroso, limpo e pachola,/ para ter a tua escola’. E se faz o elogio do mulato, o que não dirá, então, da mulata, da Mulata da Minha Terra? Para louvá-la, considera-se até demasiado pequeno, e, por isso, sonha ‘sê maió que o céu, que a terra’, ‘maió que os óio espantado/ de dez saci pererê’, ‘sê fuzileiro navá/ pra te batê continença’. Ah, ver a mulata ‘num samba, toda bonita/ com teu vestido de chita/ todo enfeitado de fita,/ de fita verde-amarela — / as cô mais linda que há,/ as cô da nossa bandera,/ da bandera brasileira,/ bandera véia de guerra,/ bandeira na-ci-o-ná!’. A estrangeirificação do Brasil, hoje em processo acelerado, ele já a temia e estigmatizava no poema Abissínia, em que faz da ‘preta Abissínia’ o símbolo da Bahia, melhor, do próprio Brasil, que então existia e hoje precisa ser restaurado: ‘Não deixes, pretinha,/ por preço nenhum,/ o americano/ te civilizar!’” (p. 255).
Ary Barroso, além de “Maria”, musicou, de Peixoto, “Pensando nessa cabocla”, “Longe de você”, “Na batucada da vida” e “Estela”. Almirante, a já citada “Preto e branco”, e Tito Madi, “Eu vou pra beira do mar”.
Custódio Mesquita musicou “Casa de sopapo”, José Maria de Abreu, “Bailarico” e “Na paz do senhor” – e Henrique Vogeler, naturalmente, “Ai, Ioiô”.
Mas foi o maestro Hekel Tavares o maior dos parceiros de Luiz Peixoto: “Mãe de terreiro”, “Cantiga de eito”, “Pai João”, “Festa”, “Tenho uma raiva de você…”, “Maria Rosa”, “Azulão”, “Casa de caboclo”, “Felicidade”, “Bateram na minha porta”, “No nosso tempo de colégio”, “Dedo mindinho”, “Oração do guerreiro”, “Faz isso comigo, não”, “Cantiga de Nossa Senhora”, “Era aquilo só”, “Na minha terra tem”, “Sussuarana”, “Estrela pequenina”, “Me deu uma vontade de chorar”.
“CABOCLISMO”
É correto localizar as raízes da estética de Luiz Peixoto – como poeta, letrista, comediógrafo, pintor, escultor – na República Velha. Há, na verdade, um movimento cultural identificado com o país e o povo brasileiro, anterior a 1930, que ainda precisa ser melhor estudado.
Monteiro Lobato, que fez parte desse movimento, não gostava, nele, de seu lado caipira, encarnado por Cornélio Pires.
Luiz Peixoto, nascido em Niterói, é mais urbano que Cornélio – no entanto, até as cidades, no período anterior à industrialização do país, têm muito de rural. A própria expressão “partido alto”, que futuramente será a designação de um tipo específico de samba, é retirada do eito, nas plantações de cana.
Há, é verdade, um certo “caboclismo” – mas nem todo ele é falso. Muito menos, nem todo ele é desprezível como arte. E nem todo ele segue a regra, enunciada por Afrânio Peixoto em um momento especialmente infeliz, de que a literatura (e, por extensão, toda a arte) deveria ser “o sorriso da sociedade”.
Ao planejarmos este artigo, pensamos em esboçar um perfil mais extenso da obra e da vida de Luiz Peixoto. Mas seria muito para um artigo de jornal. Preferimos, então, colocar alguns elementos que permitam aos leitores mais jovens interessar-se por essa contribuição, hoje tão esquecida, até mesmo quando se conhecem “Maria” e “Ai, Ioiô”.
Portanto, para exemplificar o ruralismo a que acima nos referimos, terminamos com um dos seus melhores poemas, “Pensando nessa cabocla”, que, musicado por Ary Barroso, Sílvio Caldas gravou, em 1935, com o título “Por causa dessa cabocla”:
“À tarde,/ quando de volta da serra,/ com os pés sujinhos de terra,/ passa a caboca a cantar./ As flores/ vão pra beira do caminho,/ pra ver aquele jeitinho/ que ela tem de caminhar.// E quando/ ela na rede adormece/ e o seio moreno esquece/ de na camisa ocultar,/ as rolas,/ as rolas também morenas,/ cobrem-lhe o colo de penas/ pra ele se agasalhar.// Na noite/ dos seus cabelos, os grampos/ são feitos de pirilampos/ que a estrelas querem chegar./ E as águas/ dos rios que vão passando/ fitam seus olhos, pensando/ que já chegaram ao mar.// Com ela,/ dorme toda a natureza,/ emudece a correnteza,/ dorme o céu todo apagado./ Somente/ com o nome dela na boca,/ pensando nessa caboca,/ fica um caboco acordado…”.
Boa tarde Sr. Carlos Lopes,
ótimo artigo, obrigada!
gostaria de saber, por gentileza, o nome do livro de Ary Vasconcelos, citado em seu artigo, no qual ele traça características da obra de L. Peixoto.
Atenciosamente, Bárbara.
O livro chama-se “A Nova Música da República Velha”, leitora. E obrigado por suas generosas palavras (Carlos Lopes).
Muito obrigada pela pronta resposta! Sou musicista e estou pesquisando a obra da compositora Eugênia Bracher Lobo, que musicou o poema Minha Terra de Luiz Peixoto. Felizmente, encontrei seu artigo disponível. Um abraço.
Também fui tocado pelo mesmo poema, publicado em um livro didático na 5ª série escolar. Tinha 10 anos e nunca o esqueci, justamente por ser tão brasileiro e carioca.
Trabalhei, até me aposentar, como bibliotecário formado (pela hoje UNIRIO) como diretor, por 10 anos , da Biblioteca do Museu Nacional de Belas Artes, Rio de Janeiro, onde, certa vez doaram inúmeras fotografias em P&B de personagens e grupos de pessoas de relevo no campo das artes. Havia, dentre eleas, uma de um grupo onde tb estava o nosso Luiz Peixoto. Devem estar hj em dia no Arquivo do MNBA ou mesmo na Biblioreca, não sei ao certo. Resolvi deixar aqui esta informação, já que Luiz Peixoto merece nossa atenção, sendo que, há menos de 15 anos, foi lançada em livro uma biografia dele, em alentado número de páginas, e creio que háum exemplar na mesma Biblioteca do MNBA. É conferir!
Resido atualmente em Niteroi (Nictheroy, rs) há 5 anos, depois de viver na cidade do Rio de Janeiro durante 46 anos, sendo que da última vez foi no Leme, após ter morado em Copacabana, Ipanema, Leblon e Laranjeiras. Trabalhei, há uns 35 anos atrás, com Antonio Houaiss e Chico Barbosa, ambos da Academia Brasileira de Letras, quando eram ligados à empresa editora Encyclopaedia Britannica, à rua S. José, onde tb era bibliotecário o degas aqui (rs) durante 6 anos, antes de ir para o Serviço Público Federal (Ministério da Cultura), desde 1984. Aposentei-me em 2009.