ARTHUR DE FARIA
(publicado originalmente no site Sul 21)
E chegamos ao último dos irmãos Gonçalves: Oscar Gonçalves. Que foi um bom cantor, mas viveu à sombra do irmão mais famoso. Nos anos 1930, ele e Alcides se alternavam à frente da Orquestra Rojabá (fundada, anos antes, como Royal Jazz Band). Em 1948, vai para a Difusora, assumindo como crooner dos dois grupos da casa, em ambos ao lado de Antoninho: o já citado regional e a orquestra, que era a versão amansada d’Os Malucos do Ritmo. Nos anos 1950, liderava a Orquestra Herbert Gehr e seguiu na ativa até meados da década de 60, como cantor do American Boate, uma das casas noturnas mais chiques da história do ramo em Porto Alegre. Morreu em 30 de junho de 1979.
Mas estávamos em Alcides. Eterno inquieto, o cara não esquentava lugar. Em 1936, como se viu, foi ao Rio gravar pela RCA Victor o disco com suas parcerias com Lupicínio, que acaba fazendo mais sucesso em Porto Alegre do que na cidade maravilhosa. Voltou contando que também dera uma palhinha na inauguração da Rádio Nacional, mas nunca ninguém conseguiu confirmar o fato. De qualquer forma, chega do Rio cheio de moral, recontratado pela Farroupilha e definido pela Folha da Tarde como o melhor cantor de sambas e marchas da cidade. Começa a fazer nome também como compositor.
Em 1937 está na estrada de novo: Curitiba e São Paulo – onde canta com a Orquestra de Luiz Argente e é uma das atrações da inauguração da Rádio Tupy, interpretando só sambas e valsas de autores gaúchos (ele, inclusive).
Volta novamente a Porto Alegre, pra cantar no Cassino e novamente na Farroupilha, mas é quando acontece a longa e emocionante temporada Argentina da orquestra de Paulo Coelho (vale reler um trecho do capítulo de Paulo): a temporada o exige tanto que termina em pane vocal, o que o faz trabalhar por quase meio ano só como pianista e violonista, recuperando-se de uma operação nas cordas vocais. A sorte é que, como havia definido Radamés Gnattali com aquela sua verve particular, Alcides como pianista tocava tudo errado… mas bonito. Tanto que, anos mais tarde, seria o titular do instrumento em casas importantes da noite da cidade – como a boate Marabá.
É por esses anos que se dá conta do óbvio time à disposição e resolve montar Os Irmãos Gonçalves: ele, Antoninho, Oscar, Juvenal e Walter (depois, Osmar). O grupo – todos grandes músicos – toca por todo o estado, Argentina e Uruguai por quase dois anos.
Aí estamos em 1939. E a orquestra argentina Santa Paula Serenaders, que o havia conhecido na sua temporada paulista, chama o cara pra ser o pianista em uma excursão por toda a América do Sul. Finda a turnê, estaciona no Rio de Janeiro, novamente como crooner. Desta feita, da reputada orquestra de Simon Bountman, nada menos que uma das atrações do Copacabana Palace. Traz Walter Gonçalves pra assumir a bateria do grupo e segue tentando uma chance na Rádio Nacional.
Finalmente a chance aparece: mas ele vai ter de viajar de novo. Desta vez para Buenos Aires. Vai ser, mais uma vez ao lado da conterrânea e amiga Horacina Corrêa, o cantor da orquestra montada por Radamés Gnattali para transmitir o programa Hora do Brasil num convênio entre a Rádio Nacional e a Rádio Municipal de Buenos Aires. Sucesso total e convites para apresentações até no Teatro Colón – o mais importante da Argentina –, com direito a 5 estrelas na crítica da revista Synthonia e acompanhamento do próprio Radamés, então estrela de primeira grandeza do rádio brasileiro.
Volta maaaaais uma vez para Porto Alegre, e mais uma vez para Paulo Coelho. Só que pouco tempo depois Paulo morre, no auge da popularidade. Adivinha? Pé na estrada outra vez: agora contratado pela Rádio Educadora de São Paulo. Dali, pro Rio, onde, finalmente, ganha um horário fixo na Rádio Nacional, a maior vitrine existente no país: três participações semanais, em horário nobre. Grava um que outro disco e estamos em 1942. Aos 34 anos, Alcides está no ponto máximo da carreira.
Se não chegou ao primeiro time dos cantores cariocas, conseguiu uma razoável projeção, num estilo que misturava o jeito de cantar da dupla mais insólita dos anos 1920 e 30: seus amigos Mário Reis e Francisco Alves. Chega a compor em parceria com alguns ban-ban-bans do balacobaco, como Ataulfo Alves e começa a escutar suas parcerias com Lupicínio ganharem o país na voz dos maiores intérpretes.
Hoje, Lupicínio Rodrigues é um nome infinitamente maior que Alcides Gonçalves. Mas nas décadas de 1930 e 40, a vida trepidante de Alcides estava muito além da de Lupi – que, além de tudo, seis anos mais jovem – poderia sonhar, cochilando, quase anônimo, na portaria da Faculdade de Direito.
Só que o cara não esquentava lugar mesmo. Logo está em Porto Alegre pela enésima vez, assinando um de seus últimos contratos radiofônicos, desta vez com a Rádio Difusora – a partir de 1945, não teria mais compromisso com nenhuma emissora, só como convidado.
Acaba se estabelecendo como cantor ou pianista em casas noturnas, retomando também os Irmãos Gonçalves no seu plano de invasão dos Estados Unidos – como se viu, abortado às vésperas do embarque da turma.
Só então olha em volta e vê que retomar a parceria com Lupicínio pode ser um bom caminho. Estamos em 1948 e, logo de saída, emplacam Quem Há de Dizer na voz do artista mais popular do país, Francisco Alves. Gravadas no ano seguinte e lançadas em 1950, vêm em seguida Maria Rosa e Cadeira Vazia – esta, segundo o pesquisador Marcello Campos, mostrada a Chico num apartamento de solteiro num hotel da Jerônimo Coelho, centro de Porto Alegre.
Foi a semente da discórdia.
Quando saiu o disco, estava lá no selo: “Cadeira Vazia (Lupicínio Rodrigues)”. Nada de Alcides Gonçalves.
Bah.
A partir dali, Alcides carregaria uma crescente mágoa por não lhe darem o devido valor nas parcerias com Lupicínio. O fato da sua carreira entrar em lenta decadência coincidentemente ao mesmo tempo em que a do parceiro ascendia só piorou o clima. Nunca mais compuseram juntos. A maldade dessa gente é uma arte, e muitos se dedicaram com afinco a botar areia no relacionamento dos dois – mesmo depois da morte de ambos, deixando a parte do malvadão geralmente para Lupicínio.
Até que Marcello Campos, biógrafo de Alcides (Minha Seresta – Vida e Obra de Alcides Gonçalves, Editora da Cidade, 2011), resolveu se debruçar sobre o assunto. E, hoje, garante: Lupi mesquinho e interessado em passar a perna no companheiro? Pura teoria conspiratória. Na tentativa de contornar a situação, ele presenteou o companheiro ofendido com uma coautoria fictícia no samba-canção Castigo, gesto aceito e que rendeu alguns dividendos ao “dublê”. Também protocolou ofício à editora musical Cembra reforçando o pedido para que se redobrasse o cuidado com os devidos créditos nas citações de Cadeira Vazia. No mesmo documento, recomendou que o seu chapa recebesse metade de todos os direitos autorais arrecadados até então com a obra. Também dedicou aos diretores de rádio, televisão e espetáculos uma de suas colunas semanais Roteiro de um Boêmio no jornal Última Hora, em 1963, solicitando que intercedessem para que os títulos das obras não ignorassem os nomes de seus criadores.
Há outro dado a ser levado em conta: na época em que a Odeon fez a trapalhada com Alcides, as gravadoras já exigiam que a obra seguisse para o estúdio registrada e acompanhada da respectiva partitura antes de gerar o fonograma. Isso tudo, sem contar que Lupicínio sempre batalhou pela causa, sendo inclusive responsável pela abertura da filial da Sociedade Brasileira de Autores, Compositores e Escritores e Editores de Música (Sbacem) em Porto Alegre.
Não que os dois fossem exatamente graaaaaaaandes amigos, mas conviviam muito bem e sabiam que eram “da pá virada” quando decidiam trocar figurinhas.
Mas nem a consciência do poder da dupla, nem a parceria oferecida em Castigo servem pra que voltem a compor juntos.
Pior para ambos. Afinal, quem analisa suas oito canções facilmente dá conta da importância das melodias e harmonias de Alcides para as letras lupicínicas – e vice-versa. Foram muitas vezes comparados a Noel Rosa e Vadico, e faz sentido: ambas as duplas não tiveram uma imensa quantidade de produção, mas despertaram o que havia de melhor em cada um dos autores. Olha o catálogo de Lupi e Alcides: Cadeira Vazia, Maria Rosa, Triste História, Quem Há de Dizer, Pergunta a Meus Tamancos… Grande parte do melhor de Lupicínio. O melhor entre as 75 composições de Alcides. Em apenas oito músicas. Pra comparar, Rubens Santos tem pelo menos 33 parcerias com Lupicínio. Felisberto Martins, pelo menos 20.
Na década de 1950 Alcides se casa, tem um filho e vai embora de novo, agora pro Paraná – onde vai dirigir uma rádio, cantar em boates, plantar café e beneficiar soja. Tem a sua Minhas Valsas Serão Sempre Iguais gravada por Orlando Silva em 1961, acaba retornando mais uma vez a Porto Alegre, mas a fama nunca mais lhe abre os braços. Ainda chega a ganhar o 1º Festival Sul-Brasileiro da Canção, em 1967, com o samba-canção Minha Seresta, mas só vai lançar seu primeiro LP em 1977 – coincidentemente ou não, logo depois de entrar para a maçonaria. Por ironia do destino, começava a ser redescoberto… graças a repopularização de Lupicínio.
O referido disco, elogiadíssimo, se chama Cadeira Vazia e sai pela série Destaque da gravadora Continental, ao lado de discos de bambas da velha guarda como o velho parceiro Radamés, Elizeth Cardoso, João de Barro, Vicente Celestino… No acompanhamento, só os melhores da cidade: Plauto Cruz na flauta, Lúcio do Cavaquinho, Jessé Silva no violão e Valtinho do Pandeiro (e mais um organista não identificado). Das 12 músicas, cinco são parcerias com Lupi: Cadeira Vazia, Pergunta a Meus Tamancos, Quem Há de Dizer, Castigo e Maria Rosa.
Ainda há um segundo e último LP, de 1981: Pra Ela, produção independente bancada por Flávio Pinto Soares, parceiro em quase todas as músicas, produção aparentemente simplória – se você for julgar pela capa – mas sonoramente luxuosa, com direito até a orquestra de cordas e sopros – arranjada e regida por Alfred Hülsberg.
Cantava ainda na noite, em bailes e eventos saudosistas, mas vai se retirando lentamente de cena, dedicando-se (de verdade) aos empregos públicos que o mantinham desde o final dos anos 60 e, moderadamente, à boemia. Nem os impecáveis ternos de linho branco seguia usando. Em compensação, seu gênio, de instável, foi se tornando cada vez mais irritadiço, rancoroso e sujeito a surpreendentes surtos de violência – como quando quase pôs abaixo, a pedradas, a casa de um amigo, simplesmente por ter caído numa vala do pátio e sujado sua roupa (pior: fez isso mais de uma vez).
Morreu em nove de janeiro de 1987, depois de nove anos de luta contra um câncer no intestino.
Em 2011, o jornalista Marcello Campos lançou a fundamental biografia Minha Seresta – Vida e Obra de Alcides Gonçalves, pela série Porto Alegre Revisitada, da Editora da Cidade.
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Na próxima, a gente volta pro assunto principal do capítulo, Lupicínio.
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Tem várias raridades do Alcides e toda a turma aqui.
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Cadeira Vazia com a Elis, gata, magnífica, ensaiando a música pela primeira vez. Tem uns probleminhas de som, mas vale pra ver como o pessoal trabalhava (e se divertia). E ainda por cima começando acompanhada só pelo Alemão Olmir Stocker, gaúcho de quem ainda muito falaremos.
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Aqui a interpretação já madura, e com apresentação do próprio Lupi. Mas ainda acho a anterior melhor. Tudo me parece melhor (até o figurino, rererere). Mas segue vendo, que tem “Esses Moços”, também contado pelo Lupicínio e cantado magistralmente pelo, ora vejam!, Gil (se bem que um lexotan pro Rildo Hora teria ido bem).
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Magnífico, né? Mas azar, eu ainda acho insuperável a versão original, primeiríssima.
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Aqui, Maria Rosa, interpretada por Deus… digo, Paulinho da Viola.
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Castigo tem uma versão com o Caetano, mas acho que essa tem de se puxar na testosterona. E mais testosterona que o Nelson Gonçalves, tou pra ver.
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Se bem que dá pra fazer o avesso do avesso, como fez o Arrigo. Me choquei na primeira vez que ouvi essa versão (e tava gostando do show), mas na segunda vez, pirei. Vem comigo.
(continua)