ARTHUR DE FARIA
(publicado originalmente no site Sul 21)
São muitas as versões sobre como se estabeleceram as fundações da ponte que tornaria Lupicínio um nome nacional a partir do final dos anos 1940.
A mais conhecida diz que seus sambas foram levados para o Rio de Janeiro da maneira mais informal possível: popularíssimos nas casas mais suspeitas das cercanias do cais do porto e do bairro da Azenha – como o cabaré Galo, na rua Cabo Rocha (hoje Professor Freitas e Castro) –, cativavam os corações solitários dos marinheiros longe de casa. Estes, por sua vez, quando reembarcavam, pediam essas canções pras orquestras dos navios, que eram obrigadas então a aprendê-las. E aí, simples assim, marinheiros e músicos voltavam aos lares – e bares – com os versos na ponta da língua. Muito estimulados pela clássica suspeita de cornitude que brota na cabeça de todo viajante.
Cá entre nós: não parece bastante improvável que simples marinheiros pudessem eleger o repertório das orquestras dos navios – que, aliás, tocavam para os passageiros e não para eles?
Mas ok. Ainda seguindo nessa versão, em 1938 Se Acaso Você Chegasse teria… chegado até a RCA-Victor. E agrada tanto que o pessoal a registra numa editora, mesmo sem saber ainda quem era o autor. Escrevem então para seus representantes do sul a ver se alguém matava a charada. A resposta vem logo, afinal ele já começava a ficar conhecido: Lupicínio Rodrigues. Veja só: era o parceiro daquelas duas músicas que Alcides Gonçalves havia gravado na mesma companhia, apenas três anos antes.
Lupicínio sempre defendeu esta versão e ainda aumentava o feito dizendo que teve grande dificuldade em provar que a música era dele, já que ninguém acreditava que um samba tipicamente carioca como aquele tivesse sido feito por um gaúcho. Também declarou numa entrevista de 1938 para a Revista do Globo que o cantor Leo Villar, dos Anjos do Inferno, teria gravado o samba um ano antes de Cyro, numa “fábrica já desaparecida”, a Carioca.
Só que cavocando um pouco mais fundo, há uma matéria no jornal Folha da Tarde de dois anos antes – três de junho de 1936 –, que descreve o ascendente compositor como alguém com “a attitude ingenua de um poeta antigo” e lhe dá voz para que conte uma estória completamente diferente da que adotaria poucos anos mais tarde:
Quando o “Bando da Lua” esteve aqui, alguém teve a bondade de fazer com que os rapazes cariocas conhecessem algumas de minhas músicas. Immediatamente fui procurado por elles. Os moços quizeram comprar-me os direitos auctoraes de varias de minhas producções. Não acceitei o negocio. Então elles formularam uma segunda proposta: que eu lhes desse parceria nos trabalhos que elles se propunham gravar. Também recusei. Mesmo assim o “Bando da Lua” levou para o Rio os sambas “O navio está apitando” e as marchas “Como é que eu estou” e “Na beira de um rio”.
E há ainda a versão de Alcides Gonçalves, que se irritava bastante com a versão “oficial”:
Que marinheiro, nada! É tudo conversa! Eu é que levei o samba!
E o pesquisador Marcello Campos lhe faz coro:
História da carochinha, lenda urbana. Quem estourou o Lupi foram os artistas e as rádios daqui e do RJ, numa época de muito intercâmbio Buenos Aires-POA-SP-RJ. Isso, entre outros fatores, visto que nada na vida é resultado de uma só causa. (…) A história dos marujos pode ser válida, em parte, como veículo adicional de divulgação. Mas atribuir somente a eles a expansão da obra do Lupi é confiar demais nos fatores tradição oral (as letras chegariam alteradas lá), álcool (bêbados não costumam ter boa memória) e navegação (os navios nem sempre faziam a viagem POA-RJ direto).
Seja lá como for, o fato concreto, que divide a carreira do compositor em antes e depois neste julho de 1938, é a gravação de Se Acaso Você Chegasse para a RCA Victor pelo estreante e suingadíssimo Cyro Monteiro. Um dos raros sambas animados do gaúcho (ainda que a temática, mais uma vez, fosse a da traição) e, como quase toda a obra de Lupi, baseado em fatos reais. Geralmente acontecidos com ele ou com amigos próximos, neste caso ambas as premissas são verdadeiras: Se Acaso Você Chegasse foi a forma encontrada por Lupicínio para comunicar ao amigo e compositor Heitor de Barros um fato já consumado: havia lhe roubado a namorada (na época, claro, ele declarou ter tirado a ideia de uma notícia da coluna policial).
No selo do disco, a canção era assinada não só por ele, mas também por Felisberto Martins. Felisberto era pianista e compositor. Além de diretor artístico da maior rival da RCA-Victor: a Odeon.
Da mesma reportagem de 1938:
– Foi escrito de parceria com alguém?
Lupicínio desvia a conversa. Prefere não falar da parceria do samba que lhe valeu o maior sucesso.
Segundo alguns, Lupi havia topado uma parceria fictícia, como forma de dar um empurrão na sua carreira. Muita gente fazia isso – até cobrões como Pixinguinha, que, por essa época, estava regravando suas músicas que agora, milagrosamente, eram de Pixinguinha e Benedito Lacerda. Felisberto, por sua vez, era parceiro de muita gente bacana, e seus herdeiros garantem que a dupla com Lupicínio era real. O inegável é que, entre as 20 canções assinadas pelos dois, há pelos menos mais duas pepitas: Dona Divergência e Zé Ponte.
Voltando a Se Acaso Você Chegasse, ela é o primeiro sucesso nacional tanto de seu intérprete quanto de seu(s) autor(es). E não só nacional: anos mais tarde, Lupi teria um grande susto ao escutar seu samba num cinema de Porto Alegre, na trilha sonora de um filme hollywoodiano chamado Dançarina Loura (pelo qual, claro, nunca recebeu um tostão).
É nesse momento que a Revista do Globo, na edição de 21 de dezembro de 1938, faz a reportagem de duas páginas com o título Doutor em Samba, onde o chama de “o maioral da Ilhota”, ilustra tudo com fotos de um perfeito dândi mulato (“na aparência é um romântico de 1830, mas sua música é bem o retrato dos dias atuais”), e começa assim:
Lupicínio Rodrigues é pouco conhecido pessoalmente, mas seu nome é murmurado tôdas as noites nos microfones, nas rodas de cafés, nos quartos de estudantes e até mesmo nos meios sociais de Pôrto Alegre. O motivo é bem simples: Lupicínio vive o apogeu de sua glória como sambista, e, fazer samba aqui no sul, conseguindo transpor as fronteiras até à terra carioca, é uma façanha digna do sucesso que Lupicínio Rodrigues conquistou.
Toda a matéria é uma beleza, mas chama atenção uma das suas declarações. Espantado com o fato de que “se fizesse publicidade em torno de seu nome”, ele fala como um músico porto-alegrense de setenta (60, 50, 40, 30, 20, 10?) anos depois:
Será a primeira vez que se faz isso em Pôrto Alegre. Um sambista, no Rio, à primeira composição, já vê o seu nome enchendo as páginas das revistas, ecoando pela rua e, mais do que isso, passa a ganhar dinheiro… Mas aqui, não acontece o mesmo. (…) Os próprios meios radiofônicos da Capital não ajudam o compositor a aparecer.
Animado com o incipiente sucesso e ainda – ainda! – amargando o descorno por Inah, resolve ir tentar a vida na Capital Federal. O ano era o mesmo 1939 em que o parceiro Alcides atacava de crooner no luxuoso Copacabana Palace. Aí, aos 24 anos de idade, o rapaz pega os 200 mil réis de seu salário de bedel referente ao mês de janeiro e, sem avisar ninguém, se manda num navio junto com o amigo Ary Valdez, o Tatuzinho. Ary era cavaquinista, humorista e, mais tarde, marido de Elizeth Cardoso.
A passagem era de terceira classe, fundos. Mas houve um rápido processo de ascensão social: no caminho, o Tatuzinho tocando violão e eu cantando, já me deram logo um camarote. Vim cantando no navio. A viagem levava uma semana e acabou virando uma semana de mordomias. A sorte parecia ter embarcado com eles.
Mas mesmo a terceira classe custava 170 mil réis. Com os 30 mil restantes, se instala numa pensão da Lapa e logo faz amizade com a ala mais malandra e receptiva do primeiro time da MPB da época. Entre outros, dois camaradões – negros como ele – Wilson Baptista e Ataulfo Alves. Ambos já tinham ouvido falar no rapaz, em função de Quando Eu For Bem Velhinho e Se Acaso Você Chegasse. Mas ainda faltava um empurrão de alguém com mais prestígio. Afinal, a turma tinha talento de sobra, mas não era poderosa como a elite branca do showbizz carioca. Essa sim é que lhe poderia abrir caminhos.
Só que esses não se reuniam em botequins da Lapa. O papo era no mítico – e chiquérrimo, e caro – Café Nice. Não era coisa pra chinelão.
Mas um belo dia um amigo turfista o chama. Vai introduzi-lo direto na mesa dos fodões! Sente o drama: Ary Barroso, Haroldo Lobo, Nássara e Francisco Alves, todos cantando uns pros outros suas novidades para o próximo carnaval. Aí, jamais saberemos se tudo se passou ou não como ele conta na entrevista pro Pasquim (edição de 23 de outubro de 1973), mas absolutamente não importa, que a estória é ótima:
Toda a máfia sentada no Café Nice, às seis horas da tarde. Ele chegou comigo pela mão e gritou (…): “Chegou o meu cavalo aqui”. Os caras ficaram tudo me olhando, né?, que negrinho pequenininho! (…) Eu cheguei e disse: “Olha, esse cara tá brincando”. O Haroldo Lobo me olhando, o Nássara me olhando, o Chico me olhando. (…) Eu já tinha uma porção de músicas gravadas, mas ninguém me conhecia (…) Sentei na mesa, pedi um cafezinho. (…) Os caras botavam um níquel no bolso pra bater, outros batiam na caixa de fósforo, outros na parede, e eu tô escutando. Diz um pra mim: “Ô gaúcho, canta um negócio teu aí”. Eu digo: “Eu não sei cantar essas músicas que vocês estão cantando.” E ele: “Não, canta qualquer coisa aí”. Aí eu: Você sabe o que é ter um amor, meu senhor, ter loucura por uma mulher…
Aí o Chico começou, psft, psft, assim cuspindo: “Canta outra aí”. E eu mandei: Quem há de dizer que quem vocês estão vendo naquela mesa a beber… Aí o Chico, psft, psft: “Isso é teu, moleque? Isso é teu!?” Eu sei que quando eu cantei a quarta música, o Chico me chamou lá pro canto, (…) me botou num Buick vermelho que tinha e me levou prum (…) clube de pife que tinha aqui no Flamengo: “Pft, cê não dá isso pra ninguém. Não dá isso pra ninguém. Vou gravar tudo”.
A confiar na versão, Chico não teria lembrado do mulatinho franzino que conhecera sete anos antes, em Porto Alegre (e que recebera elogios de Noel Rosa, lembram?). A versão também se abala um pouco com o fato de que Quem Há de Dizer foi composta por Lupi e Alcides Gonçalves só em 1948, uma década depois.
Bom, o fato é que promessa é dívida.
Quem espera sempre alcança.
E mais vale um pássaro na mão do que dois voando.
Mesmo que fosse uma promessa do cantor mais importante do Brasil naquele momento, não dava pra ficar esperando indefinidamente por Francisco Alves. Os meses vão passando e nada se concretiza – só novos amores, novas desilusões e novas amizades – com outros dos artistas mais importantes do momento: Orestes Barbosa, Geraldo Pereira e Kid Pepe. Como lembraria em 1973: a gente começava às cinco da tarde no Café Nice. De lá descíamos para a Cinelândia, depois a Lapa. O fim da noite – já dia – era na Taberna da Glória.
Seja lá de onde fosse que ele tirava dinheiro (nunca se soube), o fato é que um dia a fonte secou.
Sem remédio, lá se foi Lupicínio de volta a Porto Alegre.
Pra nunca mais sair.
***
Pra ouvir a mítica gravação original de “Se Acaso Você Chegasse“.
Mas eu, pessoalmente, adooooro essa versão, também clássica, da Elza Soares.
Aqui, o próprio Lupi cantando “Nervos de Aço” e dando mais uma versão pra estória. Imagine-se na mesa do Nice.
(continua)