ARTHUR DE FARIA
(publicado originalmente no site Sul 21)
Na coluna anterior, Lupi tinha ido tentar a vida no Rio. Não rolou como ele esperava. Voltou e…
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…Creiam: o emprego de bedel seguia lá, esperando por ele!
Ainda bem, porque até agora nada de Francisco Alves cumprir a promessa de gravar suas canções. Acabou furado por Orlando Silva. É quando a coisa começa a andar. Mesmo considerando a gravação de Se Acaso Você Chegasse, é com Orlando, O Cantor das Multidões, que Lupicínio surge efetivamente como um compositor nacional. O ano é 1945, e a música é o samba Brasa (no mesmo ano, mas praticamente restrito a São Paulo, há também o sucessinho de Que Baixo! − grande gravação de Caco Velho da música escrita pelos dois).
Dois anos depois, Orlando repete a dose, com uma daquelas velhas canções compostas lá em Santa Maria: Zé Ponte. Aí estamos em 1947, e o Quarteto Quitandinha (futuro Quitandinha Serenaders, de quem já falamos aqui) leva ao disco a pérola santamariense.
Composta em 1934, Felicidade é definida no rótulo do disco como baião-shotts, tal a falta de intimidade da indústria com a música regional do Sul. O já então velho xote era conhecido no Rio Grande do Sul, mas o pessoal achava que era folclore. Lupi mesmo presenciou Ary Valdez apresentando assim o xote – como de autoria desconhecida -, antes de tocá-lo num show. Na plateia, o compositor nem se deu ao trabalho de desmentir.
Mas, a partir da gravação do Quitandinha, ela passa a ser creditada a seu verdadeiro autor. E ajuda muito o grupo, em ascensão, interpretá-la num filme da Atlântida, onde cantam num trem que ia do sul para o Rio de Janeiro (pra lembrar: o Quitandinha era 75% gaúcho. Faziam parte de sua formação Alberto Ruschel, Chico Pacheco e Luiz Telles. João Gilberto terá uma rápida passagem pelo grupo e o velho delírio de grandeza gaúcho já publicou até em jornal que João estaria no coro da gravação de Felicidade. Impossível: em 1947 nem no Rio o baiano estava).
As três canções registradas por Orlando e o Quitandinha foram a senha para que Chico Alves sentisse o cutuco e resolvesse fazer alguma coisa com as canções que seguiam guardadas para ele. É quando leva ao disco uma insuperável versão da terceira das obras-primas lupicínicas compostas graças ao descorno por Inah: Nervos de Aço.
Começava finalmente a fase áurea de Lupicínio, marcando ali sua certidão de nascimento no mainstream da música brasileira. Xotes da Felicidade e Nervos de Aço: o ano termina com nosso mulatinho transformado em revelação nacional.
E se até ali o que era conhecido de sua obra eram canções sem grandes novidades estéticas, Nervos de Aço vem como prova inequívoca de que havia um novo, diferente e talentoso compositor na praça. Nem tão novo: já tinha 33 anos. Mas, pelo menos, já estava, malandramente, aposentado do emprego de bedel − por uma curiosa tuberculose que nunca mais apareceu (ele dizia que tinha sido uma aposentadoria por amor, referindo-se a, claro, Inah).
O sucesso vinha em boa hora, já que agora ele tinha de cuidar dos irmãos (não se esqueçam quantos eram): o pai tinha acabado de falecer. Agora ele era o homem da casa.
Mas que fase! Com seu nome se espalhando como febre eruptiva, chega a ser publicado um anúncio num jornal na Bahia pedindo uma empregada que não cantasse Nervos de Aço. Pra aproveitar a boa maré, abre a primeira das suas tantas casas noturnas: a churrascaria Jardim da Saudade – mais conhecida como o Galpão do Lupi. E, interessadíssimo no tema, torna-se representante regional da Sbacem (Sociedade Brasileira de Autores, Compositores e Escritores de Música), função que exerceria pelos 28 anos seguintes.
Com o sucesso de Nervos de Aço, Chico Alves finalmente se dá conta que tinha uma mina de ouro abandonada. Passa a gravar gol após gol. Entre os maiores sucessos nacionais de 1948 estão suas arrepiantes versões para Quem Há de Dizer e Esses Moços – esta, escrita por Lupi para convencer o amigo e futuro parceiro Hamilton Chaves a não se casar, o que lhe granjearia, merecidamente, a eterna antipatia da esposa do amigo. Em 1950, Cadeira Vazia e Maria Rosa repetem a dose. Canções novas, feitas em parceria com Alcides Gonçalves, e mostradas a ele por Lupicínio em uma das excursões de Chico a Porto Alegre para cantar no rádio.
A partir daí, os sambas-canção de nosso amigo se tornam pièces du résistance de gente que vai de Sílvio Caldas a onze entre dez cantoras da época. Vingança, gravada em 1951 por Linda Baptista, é não só sua consagração definitiva de compositor como vira uma praga. E internacional, já que é sucesso também em sua versão em espanhol, perfeitamente adaptada ao ritmo do tango por Alberto Marino, e gravada quatro anos antes em Buenos Aires (o que reforça a tese de que tudo que não é carioca em Lupi, é portenho demais).
A desgraceira narrada ali era tanta que não teriam sido poucos os amantes infelizes a cortar pulsos ao som da canção. Não é pra menos: o teor roça o das pragas bíblicas − ainda que se tenha de ressaltar, mais uma vez, a espantosa coloquialidade do texto: uma carta, um discurso quase em prosa, absolutamente cotidiano:
Eu gostei tanto quando me contaram que lhe encontraram chorando e bebendo na mesa de um bar… E que quando os amigos do peito por mim perguntaram um soluço cortou sua voz, não lhe deixou falar… Mas, eu gostei tanto (tanto!), quando me contaram, que tive mesmo que fazer esforço pra ninguém notar.
O remorso talvez seja a causa do seu desespero. Você deve estar bem consciente do que praticou: me fazer passar essa vergonha com um companheiro (e a vergonha é a herança maior que meu pai me deixou)!
Mas enquanto houver força em meu peito eu não quero mais nada: só vingança, vingança, vingança aos santos clamar!
Você há de rolar como as pedras, que rolam na estrada sem ter nunca um cantinho de seu pra poder descansar…
Ainda nesse clima místico, arruma encrenca com o Departamento de Fiscalização dos Serviços de Diversões Públicas, que censura seu samba-canção Ex-Filha de Maria.
Motivo: os primeiros versos da canção são uma citação da velha canção católica Queremos Deus:
Da nossa fé, ó Virgem
O brado abençoai
Mais do que plágio, blasfêmia!
Mesmo motivo da censura ao seu samba Adão, que, no Estado Novo, havia sido vetado (assim como a irônica Sou Brasileiro – mas essa por motivos políticos).
Não importa. Porque nesse momento, e pelos 10 anos seguintes, Lupicínio será um dos compositores de maior sucesso e prestígio em todo o Brasil. Segue o desfile de hits: Linda Baptista ataca novamente, com Volta. Sua irmã Dircinha, com não menor desespero, lança e imortaliza outra hiperbólica pérola da coloquialidade: Nunca.
Nunca! Nem que o mundo caia sobre mim!! Nem se Deus mandar!!! Nem mesmo assim as pazes contigo eu farei! Nunca!!! Quando a gente perde a ilusão deve sepultar o coração, como eu sepultei!
Saudade, diga a essa moça, por favor, como foi sincero o meu amor, quanto eu a adorei tempos atrás. Saudade, não se esqueça também de dizer que é você quem me faz adormecer… pra que eu viva em paz.
Pois essas duas canções-carta, tão imbuídas do espírito daqueles passionais anos de grossas infidelidades e casamentos de aparência, pasme, foram endereçadas à mesma mulher!
Ele finalmente aliviara pro lado de Inah, e tinha agora uma nova musa de cornitude:
a mulher que me inspirou Vingança viveu comigo seis anos e depois terminou namorando um garoto que era meu empregado. (…) Eu estava num restaurante, (…) uns amigos chegaram e me disseram: encontramos a Carioca (…) num fogo tremendo. Começou a chorar e perguntar por ti. O que que houve, vocês estão brigados? (…) Na mesma hora comecei, saiu: Gostei tanto, tanto, quando me contaram… (…) Em cada lugar que chegava ela botava fotografia minha, cabritas (para os pais-de-santo intercederem por ela junto aos deuses e orixás), aquele negócio todo pra fazer as pazes. Aí eu fiz: Nunca, nem que o mundo caia sobre mim, nem se Deus mandar…
Nesse momento, a lógica o levaria a tentar novamente o Rio de Janeiro, desta vez pra ficar. Era o que haviam feito absolutamente todos os compositores de renome nacional naquele momento, mineiros como Ataulfo Alves e Ary Barroso ou baianos como Caymmi e Assis Valente. Mas ele manda a lógica às favas e consegue ser o único artista brasileiro em décadas a ter efetivo renome nacional sem morar no Rio. Até tem eventuais passagens pela Capital Federal − e também São Paulo −, onde cai na boemia ao lado de velhos e novos amigos. Mas segue vivendo na sua cidade natal, sempre cercado de sua inseparável turma de boêmios: o cantor Johnson, o compositor e colega de Sbacem Hamilton Chaves, o cantor e compositor carioca Rubens Santos, o jornalista e compositor Demosthenes Gonzalez e mais uns poucos.
Demosthenes foi um eterno divulgador não só da obra como das grandes tiradas do amigo. Como o seguinte diálogo, travado quando voltavam do velório de um suicida, conhecido de ambos:
− Ô Lupi, nunca pensaste em te matar?
− Não só pensei, Demosthenes, como me matei várias vezes…
Rubens, carioca de São João de Meriti, radicou-se em Porto Alegre por volta de 1941, compôs cerca de 40 canções com Lupicínio e foi tanto empregado como sócio do parceiro em pelo menos cinco bares e/ou restaurantes. É autor de algumas das melhores tiradas relativas ao amigo, daquelas que só os anos de amizade permitiriam que não acabasse em briga. Primeiro o apelidou de Casas Pernambucanas, cadeia de lojas cujo slogan era: uma filial em cada bairro. Depois, irritado com a constante chegada de Lupi rodeado de mulheres para comer e beber de graça no Batelão, sociedade de ambos, tascou:
− Ô Lupicínio, você parece o São Francisco.
− Mas que bonito, meu camaradinha! É porque eu vivo cercado de passarinhos?
− Não, Lupicínio, não é o santo, é o rio! Porque você vive cercado é de piranhas…
O detalhe é que, nesse meio tempo, Lupicínio havia finalmente abandonado a vida de solteiro. Ou melhor: de viúvo! Sim! Pois houve um casamento meteórico, absolutamente lupicínico: a moça se chamava Juraci, tivera uma filha com ele, e estava no leito de morte. Num penúltimo suspiro, pede que os dois se casem, para legalizar a situação da pequena. Boa alma e sem nada a perder, Lupi aceita e, em poucos dias, passa por três estados civis: solteiro, casado e viúvo.
A criança, que se chama Tereza, passa a viver com ele, e vai junto quando, em 1953, Lupi se casa com a mãe de um novo rebento, batizado Lupicínio Rodrigues Filho. A nova moça se chamava Cerenita e, creiam, ele a tinha conhecido quase bebê. Aonde? Na mesma Santa Maria de Inah. Tem coisa mais Lupicínio?!?
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Pra ouvir a gravação original de “Brasa“, com Orlandão em grande forma.
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Aqui, a original de “Nervos de Aço“. Chico Viola, assombroso.
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Sensacional versão de “Quem Há de Dizer“, com o Arrigo Barnabé, que acaba de lançar o seu show de Lupi em DVD (mas não são essas imagens).
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E, claro, tem a versão do Jamelão. Mas te prepara que é aquele clima hiperbólico…
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“Esses moços” numa delícia de versão, do próprio Lupi.
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Não tem tamanho o quanto eu gosto de “Cadeira Vazia” com o Chico Alves. Que gênio era esse homem cantando…
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Agora, “Maria Rosa” é mesmo com o Paulinho da Viola (desculpa aí, Elis).
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Grande versão a de “Vingança“, com a Linda Baptista e um time da pesada: Fafá Lemos no violino, Carolina Cardoso de Menezes no piano, Garoto no violão.
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A elegantérrima versão de “Nunca”, com a Zizi Possi. Minha dica: ouça sem ver o vídeo. Depois com o vídeo. É de se mijar de rir.
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Por fim, um espetáculo de som e imagem: Gal Costa no show Índia, cantando “Volta”.
(continua)