ARTHUR DE FARIA
(publicado originalmente em Sul 21)
A maré andava tão boa que, apesar de desacreditadíssimo por seus amigos com relação a seus dotes vocais, Lupi surpreende a todos sendo contratado como… cantor! Estávamos em 1951 e há muitos e muitos anos isso não acontecia.
Primeiro foi a Rádio Farroupilha, que acertou um ano de contrato para Roteiro de um Boêmio, programa semanal com a seguinte ideia: o compositor cantando e contando suas músicas. Deu tão certo que, terminado o ano, a gravadora Star – futura Copacabana – o chamou para um álbum com quatro discos de 78 rpm, batizado com o mesmo nome. Ali, acompanhado pelo trio do pianista Simonetti (piano, violino, contrabaixo) e, ainda que prejudicado pela qualidade técnica, que não é das melhores, se fazia conhecer o melhor intérprete de sua obra: um insuspeito ele mesmo. Cool e sutil, tava mais do que nunca revelado o intérprete herdeiro direto de Mário Reis. Ou, se o amigo preferir – tenho lá minhas ressalvas –, um bossa-novista avant la lettre.
Avant, sim. E tanto que, para a maior parte de seus colegas de boemia, era simplesmente ridículo ele levar sua própria voz ao disco. Logo agora, que vinha sendo gravado por cantores espetaculares – e impecavelmente técnicos – como Francisco Alves ou Orlando Silva. Pra quê?! A única exceção entre os incrédulos: Hamilton Chaves. E com um importante esclarecimento: Tu não é cantor, rapaz. Põe na tua cabeça! Tu é intérprete, tu está além da época. Neste país subdesenvolvido, cantor é quem tem voz operística.
Mas não foram só os discos que partiram da popularidade do programa na Farroupilha. Terminado o contrato, a Rádio Record de São Paulo o leva para uma rápida temporada da mesma ideia, agora sob o nome Diários de Lupicínio Rodrigues. Pouco antes ele tinha sido sondado para apresentações na cidade, na prestigiada boate Oásis. Juntou a fome e a vontade de comer e, depois de um tempão sem sair da cidade, lá se foi ele, originalmente, pra ficar umas poucas semanas.
Só que a temporada na Oásis foi consagradora: dois meses em cartaz – há quem fale em cinco –, sempre com casa cheia. E isso, num palco acostumado a receber Sílvio Caldas, Francisco Alves, Dorival Caymmi… Tudo foi tão surpreendente que, a partir daí, e até o fim da vida, Lupicínio passou a considerar esse como o maior momento de sua carreira. A partir de então, ficaria finalmente claro que o compositor era, também, cantor. Estranho aos padrões dos anos 1940 e 50, mas cantor. O que não é de espantar pra quem está lendo este texto e lembra que o cara começou a vida justamente como crooner. Mas corriam então os anos Mario Reis. Já neste meio de século o clima já não estava nada favorável a cantores de fala mansa (o próprio Mário Reis tinha se retirado dos palcos, e a geração de Dick Farney e Lucio Alves recém começava a aparecer).
É nesse momento que, como ele decidira não deixar Porto Alegre, a montanha passa a ir a Maomé. São tantos cantores e compositores procurando Lupi para músicas ou parcerias que a cidade chega a ser chamada (no Rio!) de “A Capital do Samba-Canção”. Toda a nova geração surgida ou popularizada nos anos 1950 gravaria Lupicínio: de Luiz Gonzaga e Carmélia Alves a Lúcio Alves, passando por Nelson Gonçalves, Roberto Silva, Jorge Goulart, Marlene, Linda e Dircinha Baptista, Nora Ney e Ângela Maria (estas com direito a arranjos do então desconhecido Tom Jobim).
É quando Lupicínio compõe uma das músicas pela qual seria para sempre lembrado por muita gente: o Hino do Cinquentenário de seu time – Grêmio Football Porto-Alegrense. Cuja letra começa glosando o mote de uma greve dos transportes ocorrida naquele momento: até a pé nós iremos, para o que der e vier, mas o certo é que nós estaremos com o Grêmio onde o Grêmio estiver. O que era pra ser um tema da hora, só pra comemorar aqueles primeiros 50 anos, acabou desbancando o hino oficial do clube, do qual ninguém mais lembra. Afinal, hino escrito por Lupicínio, naquele momento, era um luxo que uma torcida jamais dispensaria.
Seus últimos grandes momentos se dão junto com os estertores da década, graças à popularização do LP. Com o novo formato, começa a tornar-se comum uma prática até então rara: regravar canções já lançadas. Nos tempos do 78 rpm, o mais comum era dizer-se: Carinhoso, música de Pixinguinha e João de Barro, criação de Orlando Silva. E aí, pronto: ninguém arriscava recriar…
Pois Ângela Maria – então explodindo –, ousa dar sua versão para o imenso sucesso de Francisco Alves, Cadeira Vazia. Mesma coisa com Elza Soares, que arrebenta com Se Acaso Você Chegasse, ainda mais suingada do que Cyro Monteiro (curiosamente a canção foi a estreia de ambos).
Pra fechar, Jamelão. O vozeirão passava por Porto Alegre como crooner da Orquestra de Severino Araújo quando decide conhecer pessoalmente o compositor de tantas das canções que ele interpretava nos dancings. Ficam amicíssimos, e o carioca começa a emplacar sucesso após sucesso: Ela Disse-me Assim, Quem Há de Dizer… A partir daí, se autonomeia uma espécie de intérprete oficial de Lupi, mantendo o cargo até sua morte, em 2008, aos 95 anos de idade.
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Tá tudo muito bem, tá tudo muito bom, mas aí entram os Anos 60.
As sucessivas explosões de, pela ordem, Bossa Nova, Jovem Guarda, MPB politizada e Tropicália enterra viva quase toda a geração de Lupi. Eles eram o ‘velho’ – cada vez mais opostos ao ‘novo’ que surgia a cada semana. E se Ary Barroso e Dorival Caymmi se salvavam – tanto pela modernidade quanto pela temática pouco datada da maior parte de sua obra –, Lupicínio era por demais emblemático do Brasil anos de 1940/50 para escapar. Reunia à perfeição praticamente todas as patologias que jovens e adultos jovens dos anos de 1960 queriam, mais do que tudo, esquecer.
Chega a lançar um LP pela Copacabana e a assinar uma coluna semanal – basicamente de memórias de suas melhores canções – no jornal gaúcho Última Hora (publicadas entre fevereiro de 1963 e 64, e reunidas em livro muitos anos mais tarde).
Durante uma década inteira aconteceu pouco mais que isso…
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A ducha fria definitiva de realidade é de 1967, quando ele inscreve a saudosista No Tempo da Vovó no II Festival Internacional da Canção, o FIC. Não é nem classificado. O clima estava mais para prodígios como Chico Buarque ou estreantes como Milton Nascimento e Gutemberg Guarabyra. Quem prestaria atenção num cara que, além ser o emblema do velho (e tinha pouco mais que 50 anos!), ainda me vem falar no tempo da vovó?!?!?
Só que justamente nesse mesmo 1967 – ano também em que explode a Tropicália –, o poeta, teórico e mentor do movimento concretista Augusto de Campos escreve um artigo surpreendente sobre Lupicínio. Augusto, Haroldo de Campos e Décio Pignatari (o Trio Parada Dura da poesia concreta) o haviam conhecido numa histórica noitada porto-alegrense. Passaram riquíssimas horas a seu lado no Clube dos Cozinheiros, restaurante de Rubens Santos e Lupi, onde o último dava canja… nas panelas (eu acho que cozinho melhor do que componho, do que canto…). Ao longo da noite, os três foram ficando cada vez mais embasbacados com a inexistente fronteira entre o sublime e o grotesco da obra de um compositor no qual nunca haviam prestado atenção. De quebra, ainda tiveram uma aula magna de um doutor honoris causa, PhD em diferenças entre dores-de-cotovelo municipais, estaduais e federais – as últimas invariavelmente resultando em música.
O artigo escrito por Augusto se chama Lupicínio Esquecido?, e já abre puxando orelhas:
Tempo houve em que se falava de Lupicínio Rodrigues como “o ídolo de sua terra natal”, o Rio Grande do Sul. A impressão que tenho, hoje, é de que o compositor anda meio marginalizado, incompreendido até em sua própria terra e esquecido fora dela.
Lá pelas tantas, tenta explicar esse esquecimento baseado na audição de seus discos como intérprete, onde Lupi é, como já comentamos, o oposto do que se considerava então uma “grande voz”:
A Velha Guarda não tem como incorporá-lo, a não ser na base do samba rasgado de Se Acaso Você Chegasse, e as gerações mais novas, intelectuais e sofisticadas, não sabem como situar o aparente anti-intelectualismo das composições de Lupicínio e parecem não ter se dado conta do que e de como ele canta.
Segue traçando paralelos entre Lupi e ninguém menos que a trinca William Shakespeare, João Gilberto e Nelson Rodrigues (outro então amaldiçoado). E conclui, enfático e profético, chamando a atenção para o injusto esquecimento a que tinham relegado a Lupi os meios musicais de São Paulo, do Rio e de Porto Alegre – os gaúchos, em especial, que às vezes parecem consentir na omissão de que é vítima o seu maior valor em música popular.
Exceto por alguns tropicalistas e curiosos, naquele momento ninguém dá muita pelota pro artigo. Mas seu insight vai se provar totalmente verdadeiro, num futuro bem próximo.
O artigo de Augusto de Campos acaba no primeiro grande livro moderno escrito sobre música popular brasileira. O imperdível “Balanço da Bossa – E Outras Bossas”. Lupi está nas “Outras Bossas”, bien sûr…
Em 1968 Lupi tenta novamente um festival – a I Bienal do Samba. Chega até a se classificar, mas não emplaca na final. Em 1969, sua última experiência no gênero é no Festival de MPB da TV Record – em sua quinta, última e desprestigiada edição. Isaurinha Garcia, outro ícone da mesma geração, defende Primavera (dele e Hamilton Chaves), que chega às 12 finalistas, mas não ganha nada. Também pudera: o vencedor é o revolucionário Sinal Fechado, de Paulinho da Viola.
Perfeito: o sinal parecia definitivamente fechado.
E não era só ele: para o fotógrafo Ricardo Chaves, filho de Hamilton Chaves (em depoimento dado em 1994), aquele cara era só um amigo de seu pai, que tinha escrito uma esquecida canção para ele décadas antes. Chaves tinha 23 anos de idade e cinco de profissão quando Lupicínio morreu. Hoje, aos 61, ele comenta: O pior que é isso mesmo. Morro de culpa e arrependimento de não ter aproveitado essa relativa intimidade para produzir um puta ensaio fotográfico sobre o Lupi. Lamento profundamente não ter sido minimamente lúcido para “saber” quem era O CARA. A ficha começou a cair quando, fotografando o enterro do poeta/compositor, vi, pela primeira vez, meu pai chorando. Com irreversível atraso, percebi que ELE deveria ser mais importante do que eu supunha.
A tal canção, só pra lembrar, era nada menos que Esses Moços.
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Na próxima edição, Lupi redescoberto. E graças ao João Gilberto (ai!, até rimou).
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Aqui uma matéria beeeem Jornal do Almoço sobre o Hino do Grêmio.
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Já ouviu a gravação da Elza pra “Se Acaso Você Chegasse”? Ouve de novo.
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E a primeira versão do Jamelão para “Ela Disse-me Assim”?
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UAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAU! As imagens de Isaurinha Garcia no festival da Record cantando “Primavera“. Repito: U-A-U. Youtube, eu te amo.
[NOTA DO HP: Como o vídeo com Isaurinha Garcia foi retirado do Youtube, fornecemos, aqui, um link para a versão de Núbia Lafayette.]
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E já que estamos em raridades absolutas, Lupi e Jessé Silva compondo instantaneamente um puta samba bacana (e inédito!) no programa Flávio Cavalcanti, beeem no comecinho dos anos 70.
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Continua aqui.
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A futura Copacabana o chamou para um álbum com quatro discos de 78 rpm, batizado com o mesmo nome.
(Na próxima edição, a sétima parte de “A fenomenologia da cornitude“, décimo capítulo de “Uma História da Música de Porto Alegre“, do compositor e jornalista Arthur de Faria.)