
ARTHUR DE FARIA
(publicado originalmente em Sul 21)
Há uma boa lista de intérpretes que dedicou discos inteiros à obra de Lupicínio. Além dos já citados, há desde Francisco Egydio, em 1962, até Noite Ilustrada, em 2003 – passando por Jamelão (1972 e 1987), Rubens Santos (1980 e 1984), Berê (1992), Joanna (1994), Wilson Paim (1998) e até o violinista Jerzy Milewski, com versões instrumentais, em 1996.
Sua vida e obra também inspiraram dois curtas-metragens: Lupi: Profissão Boêmio (1983), dirigido por David Quintans, e Amigo Lupi (1992), de Beto Rodrigues. O filme de Beto, especialmente, é um impressionante acervo de imagens, depoimentos e música que, em apenas 17 minutos, reúne grande parte da turma. Sendo que de Johnson, Túlio Piva e Demosthenes Gonzalez são muito provavelmente os últimos registros (Túlio morreu em 1993, Demosthenes, em 2000). E há também Lourdes Rodrigues, Zilah Machado, Jayme Lubianca e até Cláudio Levitan (que tinha dirigido o Coompor Canta Lupi). Infelizmente, nenhum dos curtas são encontráveis, nem na internet, nem na vida real.
Mas nada disso, no entanto, se compara à surpresa do crescente envolvimento do vanguardista Arrigo Barnabé com a obra de Lupicínio:
Passei a me interessar muito quando ouvi os 2 LPs que o Jamelão gravou com a orquestra Tabajara. Eu ficava cantando junto e fazendo uma interpretação arriguiana em cima do que o Jamelão cantava, com aqueles meus exageros que viraram marca depois quando gravei Clara Crocodilo em 1980. Isso (…) em 1974, na casa da Eliete Negreiros. Quando o Itamar [Assunção] gravou Ataulfo (Alves), eu pensei: se eu fosse fazer alguma coisa assim, de escolher um autor, seria Lupicínio. (…) Em 1998 fui convidado (…) para participar de um show em Porto Alegre, onde teria que interpretar 4 cancões do Lupicínio. (…) Depois, (…) uma homenagem ao Lupicínio, em 2001 ou 2002, no SESC Vila Mariana, com outros cantores – entre os quais, o Jamelão. (…) Em 2009 eu resolvi montar o show. Procurei então o Rubens[Amatto], da Casa de Francisca, e disse que queria fazer lá. Ele falou: – Animal!!! Foi assim…
O que começou despretensioso, montado para os 40 lugares da Casa de Francisca, em São Paulo, acabou virando algo muito maior. Batizado de Caixa de Ódio, e encenado com grande teatralidade num registro de vai da ironia à entrega, em 2012 já tinha tido mais de uma centena de apresentações – algumas delas em Porto Alegre – e resultara num DVD e num especial de TV, feitos em parceria com o Canal Brasil. Mas não só. O veterano cineasta paulista Maurice Capovilla acabou chamando Arrigo para protagonizar o longa Nervos de Aço, também uma parceria com o Canal Brasil. No roteiro, ele é o cabeça de uma banda que prepara um espetáculo sobre Lupi e vive na carne alguns dos seus dramas. Muito em função do papel da cantora gaúcha Ana Paula Lunardi, que provoca um triângulo amoroso muito lupicínico. A previsão de estreia é em 2013.

Criador e Criatura Arrigo e sua Caixa de Ódio
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Nas últimas décadas de vida Lupi era quase um segredo (res)guardado da sociedade porto-alegrense por seus músicos boêmios… Pro grosso da população, até pouco antes de sua morte o sujeito era, no máximo, uma figura folclórica: o mulatinho doce, de voz mansa e bigode fora de moda, dono de casas noturnas e restaurantes onde se apresentava informalmente, junto com o eterno amigo Rubens Santos. Algumas, como o lendário Batelão, até bem sucedidas, mas não o suficiente para mudar o conceito sobre seu dono.
Outros sabiam de seu emprego como procurador do Serviço de Defesa do Direito Autoral ou de fiscal da Sbacem (o que exerceu por 28 anos). E que também era o autor do Hino do Grêmio e alguns velhos sucessos de tempos passados.

O Jardim da Saudade, como suas outras casas noturnas, resistiram como seus últimos palcos, onde, mais do que cantar, pregava canções aos seus apóstolos
Mas como encarar como uma estrela um sujeito que cumpria religiosamente a mesma rotina, de segunda a sexta? Está lá, numa das suas saborosas crônicas reunidas no Foi Assim:
Eu acordo mais ou menos às 10 horas da manhã, dou comida pras minhas galinhas, pros meus passarinhos (…) A mulher vai me procurar no fundo do quintal (…) pra me dar café. Aí, depois, (…) eu faço a comida. Aí, então, eu durmo até as três, quatro horas da tarde. (…) Levanto, tomo meu banho, me arrumo, e vou a Sbacem. Aí saio do escritório às sete horas e continuo a noite até as quatro da manhã. (…) Tem que passar de boteco em boteco, aquelas igrejinhas todas.
Curiosamente, seu alvará de soltura valia só até as cinco da manhã. Se chegasse depois disso, a briga era certa – e, segundo alguns, quem apanhava era ele. Folgava no sábado e domingo, quando era totalmente família, de bombachas e chinelas. E ainda mantinha, sem fazer nenhum alarde disso, um asilo para pobres.
Um sujeito tão ultrapassado que tinha inclusive a peculiar moral dos boêmios, e com peito suficiente para formulá-la com rara clareza na crônica Boêmio deve casar?:
Se fizermos a média, vamos ver que os boêmios solteiros raramente atingem os 40 anos, enquanto os casados morrem de velhos, isto quando tiverem a sorte de encontrar no casamento a sua segunda mãe, pois nossas esposas devem substituir nossas mães. A elas cabe a função de nos fazer chazinho de marcela e nossa sopinha quando estivermos de ressaca, e também nos passar uma carraspana quando estivermos abusando. Mas isto deve ser feito com carinho como fazia nossa mãezinha, e não com brigas, pois não é com brigas ou gritos que se prende um coração.
Ainda está por ser escrita a tese que ligue Freud e Édipo a Teixeirinha, Vicente Celestino e Lupicínio…
E sente a maravilha da conclusão da crônica:
As esposas devem se sentir felizes quando seus maridos voltam de suas noitadas, porque sua volta é a maior prova de amor que um homem pode dar. Depois de ver tantas mulheres, nenhuma o prendeu e ele retorna feliz para dormir nos braços daquela que ele escolheu para ser sua eterna companheira.

Lupi e a Santa Cerenita. Dormindo com um barulho desses
Imagina um cara desses em tempos hippies, pós-tropicalistas, divididos entre a vanguarda, o desbunde, a resistência à ditadura e o ufanismo do governo Médici…
Fica pro fim a quase inacreditável canção Homenagem, lançada em 1961, ao vivo, no Cine Imperial lotado, e com a presença de toda sua família. O mote de ambos – canção e festividade – era a comemoração de seus 25 anos de carreira, considerando-se o início como as primeiras gravações de suas músicas, por Alcides Gonçalves. Note que, a essa época, Lupi estava casado há 12 anos, e já tinha comemorado os primeiros dez com um outro samba, chamado Exemplo.
Em Homenagem, numa surpreendente inversão, a patroa legítima é que vira a outra. E quem é homenageada é Relinda, a dona de uma casa de tolerância que também vinha a ser a mãe de Analu, a recém-citada filha que o pessoal só conheceu no velório do pai:
Eu agradeço essas homenagens que vocês me fazem, pelas bobagens e coisas bonitas que dizem que eu fiz. Receber os presentes, isto eu não tenho coragem: vão entregá-los a quem de direito deve ser feliz.
Levem estas flores àquela que, agora, deve estar chorando por não poder estar neste momento aqui, junto de mim, pra receber estas honras que a outra está desfrutando.
O nosso amor clandestino é que obriga vivermos assim.
Levem estas flores e digam pra ela ficar me esperando que, no que termine a festa, eu irei abraçar meu amor. Pois, apesar de não sermos casados, é quem me inspira, está sempre ao meu lado, me acompanhando nas horas difíceis, nas horas de dor.
O jornalista Paulo Santana, citando Hamilton Chaves, tem uma teoria sobre esse nível de provocação:
Ele tinha uma doentia necessidade psíquica de brigar com suas namoradas. Ele provocava-as, ele enciumava-as. Ele sempre criava um triângulo amoroso, estimulava-o, divulgava-o para as duas mulheres que eram objeto do seu amor – e finalmente deliciava-se com as erupções dos dois vulcões à sua volta.
Santana também replica outra história de Hamilton: Chaves contou que certa vez foi levá-lo até a casa de uma das suas namoradas, na Avenida Carlos Barbosa. Ficou esperando Lupicínio no carro. Como demorasse, entrou na casa e viu uma cena incrível: a mulher tinha enfiado o cano do revólver na boca de Lupicínio, que em vez de defender-se ou pedir clemência, tinha os olhos brilhantes de orgulho e as feições dominadas por um fulgor de felicidade.
Só que, vai entender, este mesmo sujeito não demonstrava nenhum estranhamento em encontrar Caetano Veloso de batom e figurino desbundado, como contou o próprio na revista brasiliense Bric-a-Brac, em 1991:
Pintava a boca com batom vermelho, vermelhíssimo, e o cabelo grandão. Ficava meio Gal. Saí do show para encontrar o Lupicínio. Fui com esse batom vermelho. Usava um bolerinho de cetim, uma calça justíssima, bem baixa, uns tamancos… (…) não teve nenhum clima de machismo e nem teve nenhuma reação de choque ou de espanto. Absolutamente nada. Ficou na dele. Cheguei e disse: “Estou chegando do show e nem tive tempo de ir ao hotel”. Ele abriu os braços: “Oh, Caetano, que alegria, senta aqui”. Muito doce. Fiquei impressionado com o estilo dele. Aquelas letra de corno gaúcho… (risos).
Falando em depoimentos, não há que encerrar sem antes incluir este, encantador e esclarecedor, de Jerônimo Jardim, em 2012:
Eu morava em Bagé. No exercício da advocacia, às vezes vinha à Porto Alegre. Quando isso acontecia, aproveitava para dar “canja” nos bares que o Lupi mantinha com o Rubens Santos. (…) Quando ele era proprietário do Batelão e eu começava a aparecer com boas colocações em festivais, certa noite ele me convidou para sair de seu lotado bar. O convite foi mais ou menos esse: “Guri, vamos ver as gurias por aí?”. Saímos em seu carrão de fabricação americana. Ele não era de muita conversa, ao menos comigo. Fomos em dois bares lotados de música ao vivo. Ele era recebido com deferências. Nas rádios, suas músicas não mais tocavam. Eram consideradas cafonas, “dor de cotovelo”. Mas nas noites boêmias, nunca deixaram de reinar. No primeiro bar que chegamos, nossa mesa logo se encheu de mulheres aduladoras. Ele foi convidado a cantar. A seguir me chamou ao palco. Generosamente me promoveu. No segundo bar, tudo se repetiu. Foi uma noite inesquecível, passada em companhia do maior compositor gaúcho de todos os tempos. (…) A última lembrança que guardo dele foi a tensão em seu velório no Estádio do Grêmio, vivida pela família que temia o aparecimento das incontáveis admiradoras que conquistou.
Pra concluir, só um bordão reincidente de nosso perfilado: se está de saia, e não é padre nem escocês, eu vou conferir.
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Lupi teve gravadas 150 canções. Só Vingança, segundo o (confiável) site www.memoriamusical.com.br, tem 79 gravações diferentes no Brasil – o filho Lupinho fala em qui-nhen-tas versões, o que a faria bater Garota de Ipanema, uma das músicas mais regravadas da história.
Já o número total de composições, conforme quem conta, varia entre 300 e 600. Incontestáveis são as duzentas registradas na SBACEM – 88 delas, as registradas nos tempos dos 78 rpm, estão minuciosamente elencadas pelos pesquisadores Nirez e Jairo Severiano.
Certamente muitas delas foram perdidas para sempre – ou resistem na memória dos últimos velhos boêmios gaúchos que com ele conviveram, como o Professor Darcy. Muito desse acervo oral se foi com a morte de Rubens Santos e Johnson, arquivos ambulantes de sua obra.
O fato é que, nascido no Rio de Janeiro dos anos 1920, o samba-canção chegou à sua forma máxima a partir de Lupicínio – só mais tarde Cartola e Nelson Cavaquinho também elaborariam obras-primas do gênero. Não por acaso, foi a ele que Lupi se entregou com a maior dedicação – ainda que também tenha composto samba-choro, guarânia, marcha de carnaval e até alguma coisa de música regional gaúcha.
Luiz Tatit, no livro O Cancionista:
Em alguns minutos, um samba-canção pode despertar no ouvinte um grau de emoção comparável à narrativa de um filme de duas horas ou mesmo de um romance que exija meses de leitura. (…) Esta é a questão para um cancionista: fazer com que a experiência relatada pareça ter sido realmente vivida. (…) Lupicínio foi dos mais hábeis e audaciosos compositores engajados à mensagem passional. Hábil pela rapidez em construir uma situação locutiva convincente e audacioso por operar na tangente do falso sentimento, aprumando com as melodias os excessos do texto.
Mas é pouco provável que Lupicínio se orgulhasse de uma grande sacada teórica como essa (aliás, terá ele lido o ensaio de Augusto de Campos?).
Do que ele gostava mesmo era dizer que jamais escreveu uma letra que não contasse uma história verídica. Todas eram diários, cartas, crônicas. Para ele, aquilo era um vício cotidiano que transformava em grande arte e ainda lhe dava um dinheirinho:
Tive muitas namoradas na minha vida. Umas me fizeram bem, outras me fizeram mal. As que me fizeram mal foram as que mais dinheiro me deram, porque as que me fizeram bem eu esqueci. (…)
Meu primeiro automóvel foi comprado com o dinheiro de um samba feito para uma mulher… Minha casa foi adquirida com o dinheiro de um samba que fiz para outra, também por causa de uma traição…
Imbuído da mais castiça falsa modéstia, o autor de duas dúzias de clássicos da música brasileira talvez encerrasse assim este texto:
Eu não sou músico, não sou compositor, não sou cantor, não sou nada. Eu sou é boêmio.
Seja feita a sua vontade.
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Nosso terceiro soundcloud é, basicamente, lupicínico. Com muitas raridades. > http://soundcloud.com/musicadeportoalegre3.