Em homenagem a Martin Luther King, nascido em 15 de janeiro de 1929, publicamos trechos do discurso, “Beyond Vietnam: it is time to break the silence” (“Para Além do Vietnã: é hora de quebrar o silêncio), pronunciamento que marcou o aprofundamento da compreensão do líder da luta dos direitos civis nos Estados Unidos a respeito das mazelas da sociedade norte-americana, da relação do enfrentamento destas com a superação do racismo e dos rumos para a saída do fosso moral no qual a sociedade estava atolada.
O discurso aconteceu na igreja Riverside Church, em Nova Iorque, com a presença de mais de 3.000 pessoas. Ali, o Dr. King, como seus admiradores o chamavam, condenou a Guerra do Vietnã, declarando: “Minha consciência não me deixa outra alternativa”. Ele descreveu o efeito deletério da invasão ao país do Sudeste Asiático sobre o povo norte-americano, principalmente os pobres e também sobre os camponeses e o povo vietnamita em geral. Ali e nos dias que se seguiram até seu assassinato um ano depois, em 4 de abril de 1968, Martin Luther King passou a insistir que era uma necessidade moralmente imperativa para os Estados Unidos parar a Guerra de forma unilateral.
A repulsa à guerra, já fora exposta pelo Dr. King em março de 1965, quando ele declarou que “milhões de dólares podem ser gastos todos os dias para manter soldados no Vietnã do Sul, mas os Estados Unidos alegam que não têm como proteger os direitos dos negros em Selma” (9 de março de 1965).
Em 29 de agosto, o Dr. King afirmou a jornalistas, no programa Face the Nation, que, como pastor ele tinha a obrigação de deixar claro sua “profunda preocupação acerca da necessidade da paz em nosso mundo e para a sobrevivência da Humanidade; tenho que continuar a me posicionar sobre o assunto”.
No sermão que denominou “O Não-Conformista Transformado”, em janeiro de 1966, ele declarou sua oposição pessoal à Guerra do Vietnã, como uma agressão norte-americana aos acordos de Genebra de 1954 nos quais os signatários se comprometiam com o direito dos povos à autodeterminação.
Já no começo de 1967 ele, mais uma vez, avançou suas posições contra a guerra quando, em Chicago declarou que “o poder norte-americano deveria estar dirigido a serviço da paz e dos seres humanos e não contra as pessoas indefesas”.
Apesar de todas estas declarações, foi naquele 4 de abril que Martin Luther King afirmou seu ingresso declarado às fileiras dos que lutavam contra a agressão ao Vietnã. Para uma igreja superlotada, em um evento convocado pela entidade denominada “Clérigos e leigos preocupados com o Vietnã”, na presença de acadêmicos e líderes religiosos, o Dr. King pôs o dedo na ferida denunciando a devastação do Vietnã “pela arrogância ocidental”, destacando que os Estados Unidos se posicionam “do lado dos ricos, dos seguros, enquanto criam um inferno para os pobres”. Ali ele voltou a dizer que o primeiro passo na direção certa seria uma declaração de cessar-fogo unilateral.
Mas ele foi além, denunciando que a Guerra do Vietnã era, na verdade, o mais premente sintoma do colonialismo norte-americano exercido mundialmente e clamou que o país devia promover “uma revolução pacífica, o que é impossível com a recusa em abrir mão dos privilégios e dos prazeres” obtidos com a drenagem dos demais países e repetiu que seria preciso uma “revolução radical de valores” enfatizando que o amor e a justiça devem prevalecer sobre os interesses econômicos excludentes e egoístas.
A resposta ao pronunciamento de Matin Luther King veio de imediato e, de muitas formas, negativa. Não lhe pouparam críticas os editoriais do Washington Post, que se referiu ao discurso como “A Tragédia”, em 6 de abril, e o New York Times, que publicou o editorial “O erro de Dr. King”, no dia 7. Aliás, como já apontara no mesmo discurso, agora vilipendiado pela mídia predominante nos Estados Unidos, quando afirmara: “Há algo errado com esta imprensa!”
Até mesmo a conhecida organização de luta contra o racismo que afligia os negros norte-americanos, a NAACP (sigla para Associação Nacional para o Avanço das Pessoas de Cor), preferiu se distanciar das corajosas posições do Dr. King, acusando-o de ligar “valores disparatados, ao fundir direitos civis e Vietnã”.
Mas, apesar destas críticas, ele não recuou e continuou sua denúncia à agressão ao Vietnã, “tanto do ponto de vista moral, quanto do econômico”.
Poucos dias depois, do ato na Riverside Church, no dia 15 de abril de 1967, participou de uma marcha, que encabeçou ladeado por destacadas lideranças norte-americanas, entre as quais, o Dr. Benjamin Spock (o mais destacado pediatra dos EUA, com livro sobre o assunto com 50 milhões de cópias e traduzido para 40 idiomas) e o líder católico e ativista do movimento sindical, monsenhor Charles Owen Rice. Na marcha, que reuniu 500 mil pessoas diante do prédio das Nações Unidas, em repúdio à agressão do país asiático, King declarou: “Se o solo da América se tornar totalmente envenenado, em pelo menos parte da autópsia, deve estar escrito Vietnã”.
Segue uma tradução do pronunciamento “Para Além do Vietnã”, também chamado de “Por uma verdadeira Revolução” (extraída em grande parte de um trabalho de Artur Renzo):
Este é um dia sombrio para nossa nação. Quando as autoridades de mais alto nível usam de todos os métodos para silenciar as divergências.
Mas alguma coisa está acontecendo e as pessoas não vão ficar caladas. A verdade precisa ser dita. Sim, nós precisamos nos levantar e precisamos falar. Nos dois últimos anos em que tenho me movido para quebrar a traição do silêncio e falar através de meu próprio coração em chamas, quando eu tenho clamado pela renúncia à destruição do Vietnã, estou convencido de que nós, como nação, devemos passar por uma revolução radical de valores.
Precisamos agir rapidamente — é preciso urgentemente dar início à transição de uma sociedade orientada para “coisas” a uma sociedade orientada por pessoas. Enquanto máquinas e computadores, o imperativo do lucro e os direitos da propriedade forem considerados mais importantes que as pessoas, o grande tripé “racismo, materialismo e militarismo” jamais poderá ser superado.
Uma verdadeira revolução de valores logo provocará o questionamento da justeza e da retidão de muitas das nossas políticas, passadas e presentes. Por um lado, somos convocados a fazer o papel do Bom Samaritano na beira da estrada da vida, mas esse será apenas o ato inicial. Um dia precisaremos perceber que toda a estrada de Jericó deve ser transformada para que homens e mulheres não sejam constantemente açoitados e roubados ao tocarem suas jornadas na estrada da vida. Verdadeira compaixão é mais do que dar um trocado a um pedinte. Ela cumpre compreender que uma estrutura que produz pedintes precisa ser reestruturada por completo.
Uma verdadeira revolução de valores irá logo ver com inquietude o flagrante contraste entre pobreza e riqueza com justa indignação. Ela voltará seus olhos para o outro lado dos mares e verá capitalistas do oeste investindo enormes quantias de dinheiro na Ásia, na África e na América do Sul, para então extrair o lucro sem nenhuma preocupação com a melhoria social desses lugares, e dizer, “Isto não é justo“. Ela irá olhar para nossa aliança com a elite proprietária da América do Sul e dizer, “Isto não é justo“. A arrogância ocidental de sentir que tem tudo a ensinar aos outros e nada a aprender com eles não é justa.
Uma verdadeira revolução irá enfrentar a ordem mundial e dizer da guerra: “Esta forma de resolver as diferenças não é justa“. Essa história de queimar seres humanos com napalm, de encherem os lares de nossa nação com órfãos e viúvas, de injetar o veneno do ódio nas veias das pessoas, de trazer homens de volta para casa de campos de batalha sangrentos física e psicologicamente debilitados, não pode ser reconciliada com sabedoria, justiça e amor. Uma nação que continua, ano após ano, a gastar mais recursos com defesa militar do que com programas de melhoria social se aproxima de sua morte espiritual.
Os Estados Unidos da América, a mais rica e poderosa nação do mundo, pode muito bem tomar a dianteira nessa revolução de valores. Não há nada exceto uma trágica pulsão de morte, a nos prevenir de reorganizar nossas prioridades, para que a busca da paz tenha precedência sobre a busca da guerra.
Fontes: Instituto de Pesquisas Dr. Martin Luther King Jr. da Universidade de Stanford e Artur Renzo, editor do Blog Boitempo
A íntegra do discurso de Luther King, legendado por João Lacerda, está no link https://www.youtube.com/watch?v=rWOe5-J2OQI&t=680s