CARLOS LOPES
(HP, 13 a 25/05/2016)
A relação entre Machado de Assis e a luta pela abolição da escravatura tem sido um tema constante, em geral polvilhado de equívocos e – mesmo – preconceitos, em nossa história literária. Como escreveu o próprio Machado, em uma de suas matérias jornalísticas que antecederam o 13 de Maio, “há muito burro neste mundo” (Gazeta de Notícias, 11/05/1888).
A principal contribuição de Machado para a Abolição esteve, naturalmente, em ser Machado de Assis – ou seja, em ser um mulato que, dentro de uma sociedade escravagista, foi o maior escritor brasileiro de sua época, e, muito provavelmente, até os tempos de hoje, de toda a História do Brasil.
Mas essa não foi a única.
Já nos referimos, em outra oportunidade, ao elogio de Machado a uma peça teatral, Mãe, de José de Alencar, manifestamente abolicionista. Porém, estávamos ali mais interessados nas contradições de Alencar (que, como político, estava muito longe do abolicionismo) que na atitude de Machado – que, como se sabe, não era branco – diante da mesma questão (v. “O nascimento da República e os jabutis em cima das árvores-12”, HP 27/02/2015).
Talvez, a esse respeito, a obra poética de Machado mereça uma reavaliação. Recentemente, ao reler “Americanas”, livro de poemas de 1875, deparamos com alguns trechos que não são, literariamente, desprezíveis. Por exemplo, o quarteto inicial do poema que Machado dedica a José Bonifácio (“De tantos olhos que o brilhante lume/ Viram do sol amortecer no ocaso,/ Quantos verão nas orlas do horizonte/ Resplandecer a aurora?”).
No mesmo livro está o poema “Sabina”, sobre uma violência da escravidão especialmente cruel: “Sabina era mucama da fazenda;/ Vinte anos tinha; e na província toda/ Não havia mestiça mais à moda,/ Com suas roupas de cambraia e renda.”.
Sabina, que não vive na senzala, mas na casa-grande, não percebe – ou percebe difusamente, confusamente – a sua própria condição de escrava, e se apaixona pelo filho de seus senhores. Nos versos de Machado: “e ela seguia/ Ao sabor dessas horas mal furtadas/ Ao cativeiro e à solidão, sem vê-lo/ O fundo abismo tenebroso e largo/ Que a separa do eleito de seus sonhos,/ Nem pressentir a brevidade e a morte!”.
Sabina engravida do rapaz, que viaja – e, depois, volta já casado. Ela decide suicidar-se. À beira do rio em que pretendia afogar-se, no entanto, o pensamento de que isso seria matar também o filho faz com que desista: “Ali ficou. Viu-a jazer a lua/ Largo espaço da noite ao pé das águas,/ E ouviu-lhe o vento os trêmulos suspiros;/ Nenhum deles, contudo, o disse à aurora.”
CRÍTICA
Algo bastante peculiar, embora não inédito, é que os adversários literários de Machado, em especial Sílvio Romero, tenham visto em sua obra um caráter “mestiço” (ou seja, mulato) e nacional, que boa parte dos amigos pessoais de Machado não conseguiram ver – ou evitavam ver.
É bem conhecido o artigo de José Veríssimo, o crítico mais próximo de Machado, quando da sua morte:
“São tanto mais de admirar e até de maravilhar essas qualidades de medida, de tato, de bom gosto, em suma de elegância, na vida e na arte de Machado de Assis, que elas são justamente as mais alheias ao nosso gênio nacional e, muito particularmente, aos mestiços como ele. Mulato, foi de fato um grego da melhor época, pelo seu profundo senso de beleza, pela harmonia de sua vida, pela euritmia da sua obra.”
Mais conhecida ainda é a carta que, depois desse artigo, outro amigo de Machado, Joaquim Nabuco, enviou a José Veríssimo:
“… ele foi de fato, um grego da melhor época. Eu não teria chamado Machado de Assis de mulato (…). O Machado para mim era um branco e creio que por tal se tornava; quando houvesse sangue estranho isso nada alterava a sua perfeita caracterização caucásica. Eu pelo menos só via nele o grego.”
Essa não era a opinião de Sílvio Romero.
Em seu livro “Machado de Assis: estudo comparativo de literatura brasileira”, publicado em 1897, Romero dedica-se a demonstrar que Tobias Barreto – seu mestre e mentor na “Escola do Recife” – é mais importante para a literatura nacional do que Machado de Assis.
Hoje, não há necessidade de refutar a tese de Sílvio Romero. A realidade já se encarregou dessa tarefa. É necessário apenas, no que vem a seguir, observar que Romero, ao levantar características étnicas, não o fez como forma de ataque a Machado – até porque Tobias Barreto também era mulato. Não deixam de ser interessantes alguns juízos que ele emite sobre Machado:
“Machado de Assis pode e deve ser também apreciado pelo critério nacionalista. Não o poeta, porque, a não ser em suas pálidas Americanas, este nos desdenhou de todo; sim o romancista e o contista; porque estes dignaram-se de olhar, uma vez por outra, para nós. Em que pese ao Sr. José Veríssimo, o nisus central e ativo de Machado de Assis é de brasileiro, e como tal se revela no caráter essencial de sua obra de mestiço” (Sílvio Romero, op. cit., Laemmert & C – Editores, Rio, 1897, p. 341).
Ou, em outra parte do mesmo livro:
“Ele [Machado] é um dos nossos, um genuíno representante da sub-raça brasileira cruzada, por mais que pareça estranho tocar neste ponto. Sim, Machado de Assis é um brasileiro em regra, um nítido exemplar dessa sub-raça americana que constitui o tipo diferencial de nossa etnografia, e sua obra inteira não desmente a sua fisiologia, nem o peculiar sainete psicológico originado daí.
“Seus romances, seus contos, suas comédias encerram vários tipos brasileiros, genuinamente brasileiros e ele não ficou, ao jeito de muitos dos nossos, na decoração exterior do quadro; mais penetrante do que qualquer desses, foi além, e chegou até a criação de verdadeiros tipos sociais e psicológicos, que são nossos em carne e osso, e essas são as criações fundamentais de uma literatura” (idem, pp. 17 e 18).
Romero usa o termo “sub-raça” como descrição de uma variedade nacional da espécie humana – no pensamento da época, frequentemente esta última era chamada “raça humana” – e não para marcar uma inferioridade. Apesar disso, é inevitável um certo ranço de inferioridade, inerente – embora na maior parte inconsciente – a esse termo.
JUÍZO
Ao leitor pode parecer estranho que o autor das palavras que citamos tivesse um juízo desfavorável da obra de Machado, mas assim é. Por exemplo:
“Machado de Assis não é um satírico; a mais superficial leitura de qualquer de suas obras mostra-o logo às primeiras páginas. Não é um cômico, nem como dizedor de pilhérias, nem como criador de tipos e situações engraçadas e equívocas. Não é também plenamente um misantropo, um detraqué. Não lembra, pois, nem Juvenal, nem Martins Penna, nem Molière, nem de todo Baudelaire, ou Poe, ou Dostoievsky. Não é, finalmente, da raça dos humanitários propagandistas e evangelizadores de povos ao gosto de Tolstoi. É, a meu ver, uma espécie de moralista complacente e doce, eivado de certa dose de contida ironia, como qualidade nativa que de quando em quando costuma enroupar nas vestes de um peculiar humorismo, aprendido nos livros, e a que dá também por vezes uns ares de pessimismo, também aprendido de estranhos.
“O que é seu, o que existe no seu espírito, como qualidades naturais, como bases de seu temperamento, vêm a ser o talento da análise psicológica, uma espontânea simpatia pela dignidade humana, a facilidade de generalizar os fatos e as ideias, o que tudo dá ao complexo de sua obra certo sainete moralizante, que o humour e o pessimismo emprestado não têm força de apagar. Possui, por certo, como disse, uma dose ingênita de ironia; mas esta não pôde nunca extravasar-se tumultuária e envenenadora, por ser sofreada pela timidez fundamental do temperamento do escritor.
“Machado de Assis é bom quando faz a narrativa sóbria, elegante, lírica dos fatos que inventou ou copiou da realidade; é quase mau quando se mete a filósofo pessimista e a sujeito caprichosamente engraçado” (idem, pp. 345, 346 e 347).
CATIVEIRO
Reproduzimos demasiado extensamente as opiniões do sergipano Sílvio Romero, porque – além de ser um autor mais citado do que lido – é um dos dois críticos e historiadores literários de mais influência em nosso país, no período final da vida – e obra – de Machado (o outro é o, já mencionado, paraense José Veríssimo, em quase tudo um oposto perfeito de Romero, que o atacou em um de seus livros mais agressivos: “Zéverissimações ineptas da crítica: repulsas e desabafos” (1909); no entanto, Veríssimo é autor de juízos que permanecem inalterados até hoje: por exemplo, sobre Machado, diz ele em sua “História da Literatura Brasileira”, de 1916, que “é a mais alta expressão do nosso gênio literário, a mais eminente figura da nossa literatura”).
HONRADOS ESCRAVAGISTAS
A capacidade de Machado de criticar a sociedade escravagista através do suposto ponto de vista dos escravagistas é a chave para a explosão literária iniciada com “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, livro que foi publicado em partes – nas palavras do autor: “aos pedaços” – a partir de março de 1880, pela “Revista Brasileira”.
É nesse livro que se encontra o “honrado” Cotrim, cunhado de Brás Cubas, aquele que “como era muito seco de maneiras tinha inimigos, que chegavam a acusá-lo de bárbaro. O único fato alegado neste particular era o de mandar com frequência escravos ao calabouço, donde eles desciam a escorrer sangue; mas, além de que ele só mandava os perversos e os fujões, ocorre que, tendo longamente contrabandeado em escravos, habituara-se de certo modo ao trato um pouco mais duro que esse gênero de negócio requeria, e não se pode honestamente atribuir à índole original de um homem o que é puro efeito de relações sociais. A prova de que o Cotrim tinha sentimentos pios encontrava-se no seu amor aos filhos”, etc.
Esse retrato de um traficante – aliás, um contrabandista – de escravos está no Capítulo CXXIII das “Memórias Póstumas”, intitulado, precisamente, “O verdadeiro Cotrim”. A força do texto, estranhamente (mas, no caso de Machado, pode-se dizer, como habitualmente) está na complacência do narrador, que também é um escravista – aliás, um boa-vida típico da sociedade escravagista, que não acha anomalia a existência mesma de escravos, ou que estes trabalhem para possibilitar o ócio que se confunde com sua própria vida.
Essa “normalidade” da escravidão aos olhos da “melhor” sociedade da época é recorrente em “Memórias Póstumas de Brás Cubas”. E quanto mais “normal” ao narrador, mais aberrante é para o leitor. Talvez o melhor exemplo seja o Capítulo XII (“Um episódio de 1814”).
Neste capítulo, Brás Cubas tem apenas nove anos – ou, melhor, a lembrança do finado Brás Cubas é de um jantar, em homenagem à derrota de Napoleão, em 1814, quando tinha nove anos.
Do início ao fim do capítulo, a “normalidade” da escravidão perpassa o texto, e essa “normalidade” é tanto mais escandalosa quanto mais o assunto principal não é ela, mas a confraria de mediocridades, hipócritas e mentirosos (como o Vilaça, que se gabava de conhecer Bocage e a “senhora Duquesa de Cadaval”), que constituem os convidados dos pais de Brás Cubas na comemoração do encerramento de Napoleão na ilha de Elba. Até mesmo a frase “Meu pai, que seria capaz de me dar o sol, se eu lho exigisse, chamou um escravo para me servir o doce” traz a marca da aberração. Mas vejamos um trecho mais longo:
“De quando em quando um riso jovial, amplo, desabotoado, um riso de família, vinha quebrar a gravidade política do banquete. No meio do interesse grande e comum, agitavam-se também os pequenos e particulares. As moças falavam das modinhas que haviam de cantar ao cravo, e do minuete e do solo inglês; nem faltava matrona que prometesse bailar um oitavado de compasso, só para mostrar como folgara nos seus bons tempos de criança. Um sujeito, ao pé de mim, dava a outro notícia recente dos negros novos, que estavam a vir, segundo cartas que recebera de Luanda, uma carta em que o sobrinho lhe dizia ter já negociado cerca de quarenta cabeças, e outra carta em que… Trazia-as justamente na algibeira, mas não as podia ler naquela ocasião. O que afiançava é que podíamos contar, só nessa viagem, uns cento e vinte negros, pelo menos.”
Esse assunto (o tráfico de escravos, não em geral, mas concretamente) não era indigesto para as camadas dominantes da época, que conseguiam – ao mesmo tempo que tratavam das “cabeças” que iam chegar de Angola – comer bem, coquetear e trocar frivolidades.
GANHO
No romance seguinte de Machado – “Quincas Borba”, que foi publicado em folhetins durante cinco anos, a partir de junho de 1886 até o final de 1891, com várias interrupções, na revista “A Estação” – o problema da escravidão é suscitado por Palha, o aproveitador, marido de Sofia, contra Rubião, herdeiro de Quincas Borba (tanto do tresloucado filósofo quanto do cachorro de mesmo nome). No primeiro encontro dos três:
“Cristiano Palha maldisse o governo, que introduzira na fala do trono uma palavra relativa à propriedade servil; mas, com grande espanto seu, Rubião não acudiu à indignação. Era plano deste vender os escravos que o testador lhe deixara, exceto um pajem; se alguma coisa perdesse, o resto da herança cobriria o desfalque. Demais, a fala do trono, que ele também lera, mandava respeitar a propriedade atual. Que lhe importavam escravos futuros, se os não compraria? O pajem ia ser forro, logo que ele entrasse na posse dos bens. Palha desconversou, e passou à política, às Câmaras, à guerra do Paraguai, tudo assuntos gerais, ao que Rubião atendia, mais ou menos. Sofia escutava apenas; movia tão-somente os olhos, que sabia bonitos, fitando-os ora no marido, ora no interlocutor.”
A oposição entre Rubião – e sua ingenuidade – e Palha – e seu oportunismo – é realçada, nesse início do livro, justamente pela atitude em relação à escravidão. De quebra (ou sutilmente, o que em Machado é mais ou menos a mesma coisa), há uma seta apontada para a hipocrisia imperial na questão abolicionista (“Demais, a fala do trono, que ele também lera, mandava respeitar a propriedade atual.”).
Em “Dom Casmurro”, de 1899, aparece, enfim, uma das faces mais reveladoras do que foi a escravidão no Brasil: os “escravos de ganho” – escravos postos para trabalhar na rua ou em outras casas, que passavam o que ganhavam com seu trabalho para o senhor de escravos, ficando, em geral, com uma pequena parte (o fato de muitos escravos preferirem essa condição, que permitiu a alguns a compra da própria alforria, apenas acentua a aberração, se o leitor nos permite a repetição, infelizmente inevitável, do termo).
Nesse caso, quem põe os escravos “ao ganho” é a própria mãe de Bentinho, personagem central e narrador do romance (um trecho típico de Machado, ao tratar da escravidão: “Minha mãe era boa criatura. Quando lhe morreu o marido, Pedro de Albuquerque Santiago, contava trinta e um anos de idade, e podia voltar para Itaguaí. Não quis; preferiu ficar perto da igreja em que meu pai fora sepultado. Vendeu a fazendola e os escravos, comprou alguns que pôs ao ganho…”).
Quando Escobar visita a casa de Bentinho, faz uma observação sobre os nomes com que os escravos de Dona Glória foram rotulados:
“– Todas as letras do alfabeto, interrompeu Escobar.
“Com efeito, eram diferentes letras, e só então reparei nisto; apontei ainda outros escravos, alguns com os mesmos nomes, distinguindo-se por um apelido, ou da pessoa, como João Fulo, Maria Gorda, ou de nação como Pedro Benguela, Antônio Moçambique…
“– E estão todos aqui em casa? perguntou ele.
“– Não, alguns andam ganhando na rua, outros estão alugados. Não era possível ter todos em casa. Nem são todos os da roça; a maior parte ficou lá.”
Existirá melhor retrato, na literatura brasileira, da condição dos escravos, reduzidos a coisas que não têm a propriedade do próprio nome ou obrigados a ganhar na rua o sustento dos seus senhores?
O BARÃO
Os dois últimos romances de Machado – “Esaú e Jacó”, de 1904, e “Memorial de Aires”, de 1908 – talvez sejam menos importantes para verificar a visão do autor sobre a escravidão (e sua posição no movimento pela libertação dos escravos), pois foram escritos bem depois da Abolição. Mesmo assim, merecem, sob esse ponto de vista, algum relevo, especialmente o último.
O único ponto que une – além da própria aparência, da idade e da beleza da lua e da enseada de Botafogo – os gêmeos da Baronesa de Santos, em “Esaú e Jacó”, é a Abolição. Mas, logo em seguida, os separa novamente:
“Não esqueça dizer que, em 1888, uma questão grave e gravíssima os fez concordar também, ainda que por diversa razão. A data explica o fato: foi a emancipação dos escravos. Estavam então longe um do outro, mas a opinião uniu-os.
“A diferença única entre eles dizia respeito à significação da reforma, que para Pedro era um ato de justiça, e para Paulo era o início da revolução. Ele mesmo o disse, concluindo um discurso em São Paulo, no dia 20 de maio: ‘A abolição é a aurora da liberdade; esperemos o sol; emancipado o preto, resta emancipar o branco’.”
Pode-se dizer, portanto, que é a República que os separa – e não a Abolição – o que é uma descrição acurada do destino dos abolicionistas, logo divididos entre monarquistas (Joaquim Nabuco, André Rebouças) e republicanos (Rui Barbosa, Silva Jardim). Essa contradição iria ser especialmente aguda em José do Patrocínio, antigo republicano, monarquista nos meses que se seguiram à Abolição, depois outra vez reconvertido ao republicanismo.
Já em “Memorial de Aires”, temos a mentalidade escravocrata da época da Abolição em sua mais crua expressão. É o Conselheiro Aires que narra, em seu diário, no dia 10 de abril de 1888, a viagem do barão de Santa-Pia, pai de Fidélia, ao Rio de Janeiro, nas vésperas da Lei Áurea, para visitar seu irmão, o desembargador Campos:
“O motivo da vinda do barão é consultar o desembargador sobre a alforria coletiva e imediata dos escravos de Santa-Pia. Acabo de sabê-lo, e mais isto, que a principal razão da consulta é apenas a redação do ato. Não parecendo ao irmão que este seja acertado, perguntou-lhe o que é que o impelia a isso, uma vez que condenava a ideia atribuída ao governo de decretar a abolição, e obteve esta resposta, não sei se sutil, se profunda, se ambas as coisas ou nada:
“– Quero deixar provado que julgo o ato do governo uma espoliação, por intervir no exercício de um direito que só pertence ao proprietário, e do qual uso com perda minha, porque assim o quero e posso.
“Será a certeza da abolição que impele Santa-Pia a praticar esse ato, anterior de algumas semanas ou meses ao outro? A alguém que lhe fez tal pergunta respondeu Campos que não. ‘Não, disse ele, meu irmão crê na tentativa do governo, mas não no resultado, a não ser o desmantelo que vai lançar às fazendas. O ato que ele resolveu fazer exprime apenas a sinceridade das suas convicções e o seu gênio violento. Ele é capaz de propor a todos os senhores a alforria dos escravos já, e no dia seguinte propor a queda do governo que tentar fazê-lo por lei’.
“Campos teve uma ideia. Lembrou ao irmão que, com a alforria imediata, ele prejudica a filha, herdeira sua. Santa-Pia franziu o sobrolho. Não era a ideia de negar o direito eventual da filha aos escravos; podia ser o desgosto de ver que, ainda em tal situação, e com todo o poder que tinha de dispor dos seus bens, vinha Fidélia perturbar-lhe a ação. Depois de alguns instantes respirou largo, e respondeu que, antes de morto, o que era seu era somente seu. Não podendo dissuadi-lo o desembargador cedeu ao pedido do irmão, e redigiram ambos a carta de alforria.
“Retendo o papel, Santa-Pia disse:
“– Estou certo que poucos deles deixarão a fazenda; a maior parte ficará comigo, ganhando o salário que lhes vou marcar, e alguns até sem nada, – pelo gosto de morrer onde nasceram.”
Dois dias depois, o Conselheiro Aires encontra-se com o barão, e, no dia seguinte, com Fidélia: “Ontem com o pai, hoje com a filha. Com esta tive vontade de dizer mal do pai, tanto foi o bem que ela disse dele, a propósito da alforria dos escravos”.
Bastante interessante, do ponto de vista político, é a observação do Conselheiro Aires de 19 de abril de 1888:
“Lá se foi o barão com a alforria dos escravos na mala. Talvez tenha ouvido alguma coisa da resolução do governo; dizem que, abertas as câmaras, aparecerá um projeto de lei. Venha, que é tempo. Ainda me lembra do que lia lá fora, a nosso respeito, por ocasião da famosa proclamação de Lincoln: ‘Eu, Abraão Lincoln, Presidente dos Estados Unidos da América…’ Mais de um jornal fez alusão nominal ao Brasil, dizendo que restava agora que um povo cristão e último imitasse aquele e acabasse também com os seus escravos. Espero que hoje nos louvem. Ainda que tardiamente, é a liberdade, como queriam a sua os conjurados de Tiradentes.”
Por fim, há, nesse último romance de Machado, uma longa – no contexto do livro – nota no dia 13 de maio, que termina com uma menção a um poema de Heine:
“Ainda bem que acabamos com isto. Era tempo. Embora queimemos todas as leis, decretos e avisos, não poderemos acabar com os atos particulares, escrituras e inventários, nem apagar a instituição da História, ou até da Poesia. A Poesia falará dela, particularmente naqueles versos de Heine, em que o nosso nome está perpétuo. Neles conta o capitão do navio negreiro haver deixado trezentos negros no Rio de Janeiro, onde ‘a Casa Gonçalves Pereira’ lhe pagou cem ducados por peça. Não importa que o poeta corrompa o nome do comprador e lhe chame Gonzales Perreiro; foi a rima ou a sua má pronúncia que o levou a isso. Também não temos ducados, mas aí foi o vendedor que trocou na sua língua o dinheiro do comprador.”
CONTOS
Lúcia Miguel-Pereira, em sua muito justamente afamada biografia de Machado de Assis, chamou a atenção para dois contos que abordam diretamente a escravidão, “O caso da vara”, do livro “Páginas Recolhidas”, de 1899, e “Pai contra mãe”, que está em “Relíquias da Casa Velha”, de 1906.
A biógrafa ressalta que, no segundo deles, ao contrário de certas afirmações – de que ele jamais a teria empregado – Machado usa a palavra “mulata” várias vezes. É verdade. No entanto, não nos parece acertado seu julgamento de que, nesses dois contos, “Machado parece ter querido isolar o caso da mulata Arminda ou da negrinha Lucrécia do problema da escravidão” (Lúcia Miguel-Pereira, “Machado de Assis (Estudo Crítico e Biográfico)”, Companhia Editora Nacional, São Paulo, 1936, p. 257).
Se fosse assim, não se justificaria – nem ao menos esteticamente – que no conto “Pai contra mãe”, onde é personagem a mulata Arminda, haja um introito, com uma descrição dos aparelhos de “disciplinamento” dos escravos, que preenche os cinco parágrafos iniciais:
“A escravidão levou consigo ofícios e aparelhos, como terá sucedido a outras instituições sociais. Não cito alguns aparelhos senão por se ligarem a certo ofício. Um deles era o ferro ao pescoço, outro o ferro ao pé; havia também a máscara de folha-de-flandres. A máscara fazia perder o vício da embriaguez aos escravos, por lhes tapar a boca. Tinha só três buracos, dois para ver, um para respirar, e era fechada atrás da cabeça por um cadeado. Com o vício de beber, perdiam a tentação de furtar, porque geralmente era dos vinténs do senhor que eles tiravam com que matar a sede, e aí ficavam dois pecados extintos, e a sobriedade e a honestidade certas. Era grotesca tal máscara, mas a ordem social e humana nem sempre se alcança sem o grotesco, e alguma vez o cruel. Os funileiros as tinham penduradas, à venda, na porta das lojas. Mas não cuidemos de máscaras.
“O ferro ao pescoço era aplicado aos escravos fujões. Imaginai uma coleira grossa, com a haste grossa também à direita ou à esquerda, até ao alto da cabeça e fechada atrás com chave. Pesava, naturalmente, mas era menos castigo que sinal. Escravo que fugia assim, onde quer que andasse, mostrava um reincidente, e com pouco era pegado.
“Há meio século, os escravos fugiam com frequência. Eram muitos, e nem todos gostavam da escravidão. Sucedia ocasionalmente apanharem pancada, e nem todos gostavam de apanhar pancada. Grande parte era apenas repreendida; havia alguém de casa que servia de padrinho, e o mesmo dono não era mau; além disso, o sentimento da propriedade moderava a ação, porque dinheiro também dói. A fuga repetia-se, entretanto. Casos houve, ainda que raros, em que o escravo de contrabando, apenas comprado no Valongo, deitava a correr, sem conhecer as ruas da cidade. Dos que seguiam para casa, não raro, apenas ladinos, pediam ao senhor que lhes marcasse aluguel, e iam ganhá-lo fora, quitandando.
“Quem perdia um escravo por fuga dava algum dinheiro a quem lho levasse. Punha anúncios nas folhas públicas, com os sinais do fugido, o nome, a roupa, o defeito físico, se o tinha, o bairro por onde andava e a quantia de gratificação. Quando não vinha a quantia, vinha promessa: ‘gratificar-se-á generosamente’, – ou ‘receberá uma boa gratificação’. Muita vez o anúncio trazia em cima ou ao lado uma vinheta, figura de preto, descalço, correndo, vara ao ombro, e na ponta uma trouxa. Protestava-se com todo o rigor da lei contra quem o acoitasse.
“Ora, pegar escravos fugidios era um ofício do tempo. Não seria nobre, mas por ser instrumento da força com que se mantêm a lei e a propriedade, trazia esta outra nobreza implícita das ações reivindicadoras. Ninguém se metia em tal ofício por desfastio ou estudo; a pobreza, a necessidade de uma achega, a inaptidão para outros trabalhos, o acaso, e alguma vez o gosto de servir também, ainda que por outra via, davam o impulso ao homem que se sentia bastante rijo para pôr ordem à desordem.”
O que justifica essa introdução é o fato de que o personagem principal do conto é, precisamente, um caçador urbano (não um capitão-do-mato) de escravos que fugiram. Como quase sempre, Machado escolhe um ângulo inesperado: a tragédia de Arminda é vista através da história de seu caçador, que tem uma situação familiar quase simétrica à de sua vítima – e mais não dizemos para que o leitor possa usufruir (se é que o termo é cabível) plenamente da leitura do conto.
Já o conto “O caso da vara” pertence a outra ordem de narrativas. Ali, o fugitivo é um branco – e Lucrécia é castigada por rir de uma anedota. Sua senhora, que se escangalhou de rir com a mesma anedota, não permite essa liberdade à escrava. O branco é absolvido pela fuga, mas à custa de sua covardia, de tornar-se cúmplice de uma injustiça, mais provavelmente de uma barbaridade.
JORNAL
Lúcia Miguel-Pereira tende a aceitar que Machado era indiferente aos acontecimentos da época – sobretudo a Abolição e a República. Como a própria biógrafa ressalta, essa ideia, em vida de Machado, teve Eça de Queiroz como propagandista. Mas, acrescentamos nós, isso não é, exatamente, um testemunho isento, pois, desde que o crítico literário Machado de Assis, em 1878, arrasara com “O Primo Basílio”, Eça não era propriamente um admirador do escritor brasileiro.
É assim que a declaração de Machado, quando, em 25 de março de 1884, o Ceará libertou os escravos (“O Ceará é uma estrela; é mister que o Brasil seja um sol”), parece “minguada e chocha” à sua biógrafa. No que ela tem alguma razão, mas as declarações grandiloquentes ou altissonantes, realmente, não eram o ramo de Machado.
Entremos na obra jornalística de Machado de Assis.
O que segue é trecho de uma matéria escrita para o “Diário do Rio de Janeiro”, que a publicou em sua edição de 25 de julho de 1864:
Era um leilão de escravos. Na fileira dos infelizes que estavam ali de mistura com os móveis, havia uma pobre criancinha abrindo olhos espantados e ignorantes para todos. Todos foram atraídos pela tenra idade e triste singeleza da pequena. Entre outros, notei um indivíduo que, mais curioso que compadecido, conjeturava a meia voz o preço por que se venderia aquele semovente.
Travamos conversa e fizemos conhecimento; quando ele soube que eu manejava a enxadinha com que agora revolvo estas terras do folhetim, deixou escapar dos lábios uma exclamação:
– “Ah!”
Estava longe de conhecer o que havia neste — Ah! — tão misterioso e tão significativo.
Minutos depois começou o pregão da pequena. O meu indivíduo cobria os lanços, com incrível desespero, a ponto de por fora de combate todos os pretendentes, exceto um que lutou ainda por algum tempo, mas que afinal teve de ceder.
O preço definitivo da desgraçadinha era fabuloso. Só o amor à humanidade podia explicar aquela luta da parte do meu novo conhecimento; não perdi de vista o comprador, convencido de que iria disfarçadamente ao leiloeiro dizer-lhe que a quantia lançada era aplicada à liberdade da infeliz. Pus-me à espreita da virtude.
O comprador não me desiludiu, porque, apenas começava a espreitá-lo, ouvi-lhe dizer alto e bom som:
– “É para a liberdade!”
O último combatente do leilão foi ao filantropo, apertou-lhe as mãos e disse-lhe:
– “Eu tinha a mesma intenção”.
O filantropo voltou-se para mim e pronunciou baixinho as seguintes palavras, acompanhadas de um sorriso:
– “Não vá agora dizer lá na folha que eu pratiquei este ato de caridade”.
É difícil encontrar texto na literatura brasileira, e mesmo mundial, onde, em tão poucas linhas, esteja concentrado o horror da escravidão. Sem deixar escapar a hipocrisia do “filantropo”, ao pedir a um repórter que não publicasse o que, evidentemente, não era possível deixar de publicar.
GLÓRIA
Vejamos outro trecho, também de matéria jornalística, este publicado pela “Ilustração Brasileira”, em 1° de outubro de 1876:
A lei de 28 de setembro [lei do ventre livre] fez agora cinco anos. Deus lhe dê vida e saúde! Esta lei foi um grande passo na nossa vida. Se tivesse vindo uns trinta anos antes estávamos em outras condições.
Mas há 30 anos, não veio a lei, mas vinham ainda escravos, por contrabando, e vendiam-se às escâncaras no Valongo. Além da venda, havia o calabouço. Um homem do meu conhecimento suspira pelo azorrague.
– Hoje os escravos estão altanados, costuma ele dizer. Se a gente dá uma sova num, há logo quem intervenha e até chame a polícia. Bons tempos os que lá vão! Eu ainda me lembro quando a gente via passar um preto escorrendo em sangue, e dizia: “Anda diabo, não estás assim pelo que eu fiz!” — Hoje…
E o homem solta um suspiro, tão de dentro, tão do coração… que faz cortar o dito. Le pauvre homme!
Até a expressão em francês (“o pobre homem!”) serve para acentuar a desumanização alucinada do senhor de escravos.
E quanto mais insustentável era a escravidão, mais hipocrisia. Em 23 de novembro de 1885, Machado escreve, na “Gazeta de Notícias”:
… há dias um anônimo teve a ideia de aconselhar ao governo um modo de acabar com a escravidão. Era estabelecer uma escala de preços para os títulos nobiliários, e convidar as pessoas que quisessem admissão ou promoção na classe. O autor chegou a citar nomes de titulares conhecidos e até de senhoras. Marcou ele mesmo os preços: um marquesado custaria cinquenta contos, etc…
A ideia em si não é má. Dever um título à alforria de uns tantos escravos, pode ser menos heroico, mas não é menos cristão que devê-lo à tomada de Jerusalém. Acho a coisa perfeitamente justa; nem é por aí que a critico. Também José Clemente levantou o Hospício de Pedro II, por igual método; lucraram os infelizes, doidos, e lucramos todos nós, que podemos jantar à mesma mesa sem deitar os pratos à cara um dos outros; a presunção é que temos juízo; digo a presunção legal…
Não; o mal da ideia é que, por mais que acudissem aos títulos, o dinheiro que se recolhesse não chegaria para um buraco do dente da escravidão.
Uma das características marcantes do estilo jornalístico de Machado de Assis, diretamente vinculada à sua ironia, é, como em sua literatura, o de colocar-se no ponto de vista do fariseu, dos hipócritas que pululavam na sociedade da época. É como se as matérias fossem escritas por um personagem de Machado – e, realmente, assim são. Em algumas outras são os comentários que frisam o farisaísmo. Eis um texto publicado logo depois da Abolição, na Gazeta de Notícias de 1º de junho de 1888:
Um dos convivas confessou que no meio das festas abolicionistas não aparecia o seu nome, outro que era o dele que não aparecia, outro que era o dele, e todos que os deles. Aqui é que eu quisera ser um homem malcriado. O menos que diria a todos, é que eles tanto trabalharam para a abolição dos escravos, como para a destruição de Nínive, ou para a morte de Sócrates… Eu, com uma sabedoria só comparável à deste filósofo, respondi que a História era um livro aberto, e a justiça a perpétua vigilante. Um dos convivas, dado a frases, gostou da última, pediu outra e um cálice de Alicante. Respondi, servindo o vinho, que as reparações póstumas eram mais certas que a vida, e mais indestrutíveis que a morte. Da primeira vez fui vulgar, da segunda creio que obscuro; de ambas sublime e bem criado.
Em linguagem chã, todos eles queriam ir à Glória sem pagar o bonde; creio que fiz um trocadilho.
O POETA
Geralmente, cita-se bastante a crônica de Machado de 19 de maio de 1888, publicada na “Gazeta de Notícias”, como uma prova do seu ceticismo em relação à Abolição. Nela, um ex-senhor de escravos comunica a um ex-escravo, no dia seguinte à promulgação da Lei Áurea, que ele agora é livre. E, em seguida, tudo continua o mesmo, exatamente como antes da Abolição…
No entanto, criticar as limitações da Abolição não é a mesma coisa que ser a favor da escravidão ou ser indiferente à libertação dos escravos. Evidentemente, o progresso dos ex-escravos dependia do progresso do país – em especial, de sua industrialização.
Muito mais importante, do ponto de vista das concepções de Machado sobre a Abolição, são os textos dos quais apresentamos aqui uma pequena amostra. Encerramos com um dos mais importantes: trechos de sua carta a José de Alencar sobre o jovem Castro Alves, que o escritor cearense lhe apresentara, também por carta. Esta carta, um dos melhores textos críticos de Machado, datada de 29 de fevereiro de 1868, foi publicada pelo “Correio Mercantil” de 1º de março de 1868:
“Escolhendo-me para Virgílio do jovem Dante que nos vem da pátria de Moema, impõe-me um dever, cuja responsabilidade seria grande se a própria carta de V. Exª não houvesse aberto ao neófito as portas da mais vasta publicidade. A análise pode agora esmerilhar nos escritos do poeta belezas e descuidos. O principal trabalho está feito.
“Procurei o poeta cujo nome havia sido ligado ao meu, e, com a natural ansiedade que nos produz a notícia de um talento robusto, pedi-lhe que me lesse o seu drama e os seus versos. Não tive, como V. Exª, a fortuna de os ouvir diante de um magnífico panorama. Não se rasgavam horizontes diante de mim: não tinha os pés nessa formosa Tijuca, que V. Exª. chama de um escabelo entre a nuvem e o pântano. Eu estava no pântano. Em torno de nós agitava-se a vida tumultuosa da cidade. Não era o ruído das paixões nem dos interesses; os interesses e as paixões tinham passado a vara à loucura: estávamos no carnaval.
“No meio desse tumulto abrimos um oásis de solidão.
“Ouvi o Gonzaga e algumas poesias.
“V. Exª já sabe o que é o drama e o que são os versos, já os apreciou consigo, já resumiu a sua opinião. Esta carta, destinada a ser lida pelo público, conterá as impressões que recebi com a leitura dos escritos do poeta.
“Não podiam ser melhores as impressões. Achei uma vocação literária, cheia de vida e robustez, deixando antever nas magnificências do presente as promessas do futuro. Achei um poeta original. O mal da nossa poesia contemporânea é ser copista – no dizer, nas ideias e nas imagens. Copiá-las é anular-se. A musa do Sr. Castro Alves tem feição própria. Se se adivinha que a sua escola é a de Vítor Hugo, não é porque o copie servilmente, mas porque uma índole irmã levou-o a preferir o poeta das Orientais ao poeta das Meditações. Não lhe aprazem certamente as tintas brancas e desmaiadas da elegia; quer antes as cores vivas e os traços vigorosos da ode.
“Como o poeta que tomou por mestre, o Sr. Castro Alves canta simultaneamente o que é grande e o que é delicado, mas com igual inspiração e método idêntico; a pompa das figuras, a sonoridade do vocábulo, uma forma esculpida com arte, sentindo-se por baixo desses lavores o estro, a espontaneidade, o ímpeto. Não é raro andarem separadas estas duas qualidades da poesia: a forma e o estro. Os verdadeiros poetas são os que as têm ambas. Vê-se que o Sr. Castro Alves as possui; veste as suas ideias com roupas finas e trabalhadas. O receio de cair em um defeito não o levará a cair no defeito contrário? Não me parece que lhe haja acontecido isso; mas indico-lhe o mal, para que fuja dele. É possível que uma segunda leitura dos seus versos me mostrasse alguns senões fáceis de remediar; confesso que os não percebi no meio de tantas belezas.
“O drama, esse li-o atentamente; depois de ouvi-lo, li-o, e reli-o, e não sei bem se era a necessidade de o apreciar, se o encanto da obra, que me demorava os olhos em cada página do volume.
“O poeta explica o dramaturgo. Reaparecem no drama as qualidades do verso; as metáforas enchem o período; sente-se de quando em quando o arrojo da ode. Sófocles pede as asas a Píndaro. Parece ao poeta que o tablado é pequeno; rompe o céu de lona e arroja-se ao espaço livre e azul.
“Esta exuberância, que V. Exª com justa razão atribui à idade, concordo que o poeta há de reprimi-la com os anos. Então conseguirá separar completamente língua lírica da língua dramática; e do muito que devemos esperar temos prova e fiança no que nos dá hoje.
“Estreando no teatro com um assunto histórico, e assunto de uma revolução infeliz, o Sr. Castro Alves consultou a índole do seu gênio poético. Precisava de figuras que o tempo houvesse consagrado; as da Inconfidência tinham além disso a auréola do martírio. Que melhor assunto para excitar a piedade? A tentativa abortada de uma revolução, que tinha por fim consagrar a nossa independência, merece do Brasil de hoje aquela veneração que as raças livres devem aos seus Espártacos. O insucesso fê-los criminosos; a vitória tê-los-ia feito Washington. Condenou-os a justiça legal; reabilita-os a justiça histórica.
“Condensar estas ideias em uma obra dramática, transportar para a cena a tragédia política dos Inconfidentes, tal foi o objeto do Sr. Castro Alves, e não pode esquecer que, se o intuito era nobre, o cometimento era grave. O talento do poeta superou a dificuldade; com uma sagacidade, que eu admiro em tão verdes anos, tratou a história e a arte por modo que, nem aquela o pode acusar de infiel, nem esta de copista. Os que, como V. Exª, conhecem esta aliança, hão de avaliar esse primeiro merecimento do drama do Sr. Castro Alves.
“A escolha de Gonzaga para protagonista foi certamente inspirada ao poeta pela circunstância dos seus legendários amores, de que é história aquela famosa Marília de Dirceu. Mas não creio que fosse só essa circunstância. Do processo resulta que o cantor de Marília era tido por chefe da conspiração, em atenção aos seus talentos e letras. A prudência com que se houve desviou da sua cabeça a pena capital. Tiradentes, esse era o agitador; serviu à conspiração com uma atividade rara; era mais um conspirador do dia que da noite. A justiça o escolheu para a forca. Por tudo isso ficou o nome ligado ao da tentativa de Minas.
“Os amores de Gonzaga traziam naturalmente ao teatro o elemento feminino, e de um lance casavam-se em cena a tradição política e a tradição poética, o coração do homem e a alma do cidadão. A circunstância foi bem aproveitada pelo autor; o protagonista atravessa o drama sem desmentir a sua dupla qualidade de amante e de patriota; casa no mesmo ideal os seus dois sentimentos. Quando Maria lhe propõe a fuga, no terceiro ato, o poeta não hesita em repelir esse recurso, apesar de ser iminente a sua perda. Já então a revolução expira; para as ambições, se ele as houvesse, a esperança era nenhuma; mas ainda era tempo de cumprir o dever. Gonzaga preferiu seguir a lição do velho Horário corneiliano; entre o coração e o dever a alternativa é dolorosa. Gonzaga satisfaz o dever e consola o coração. Nem a pátria nem a amante podem lançar-lhe nada em rosto.
“O Sr. Castro Alves houve-se com a mesma arte em relação aos outros conjurados. Para avaliar um drama histórico, não se pode deixar de recorrer à história; suprimir esta condição é expor-se à crítica a não entender o poeta.
“Quem vê o Tiradentes do drama não reconhece logo aquele conjurado impaciente e ativo, nobremente estouvado, que tudo arrisca e empreende, que confia mais que todos no sucesso da causa, e paga enfim as demasias do seu caráter com a morte na forca e a profanação do cadáver? E Cláudio, o doce poeta, não o vemos todo ali, galhofeiro e generoso, fazendo da conspiração uma festa e da liberdade uma dama, gamenho no perigo, caminhando para a morte com o riso nos lábios, como aqueles emigrados do Terror? Não lhe rola já na cabeça a ideia do suicídio, que praticou mais tarde, quando a expectativa do patíbulo lhe despertou a fibra de Catão, casando-se com a morte, já que se não podia casar com a liberdade? Não é aquele o denunciante Silvério, aquele o Alvarenga, aquele o Padre Carlos? Em tudo isso é de louvar a consciência literária do autor. A história nas suas mãos não foi um pretexto; não quis profanar as figuras do passado, dando-lhes feições caprichosas. Apenas empregou aquela exageração artística, necessária ao teatro, onde os caracteres precisam de relevo, onde é mister concentrar em pequeno espaço todos os traços de uma individualidade, todos os caracteres essenciais de uma época ou de um acontecimento.
“Concordo que a ação parece às vezes desenvolver-se pelo acidente material. Mas esses raríssimos casos são compensados pela influência do princípio contrário em toda a peça.
“O vigor dos caracteres pedia o vigor da ação; ela é vigorosa e interessante em todo o livro; patética no último ato. Os derradeiros adeuses de Gonzaga e Maria excitam naturalmente a piedade, e uns belos versos fecham este drama, que pode conter as incertezas de um talento juvenil, mas que é com certeza uma invejável estreia.
“Nesta rápida exposição das minhas impressões, vê V. Exª que alguma coisa me escapou. Eu não podia, por exemplo, deixar de mencionar aqui a figura do preto Luís. Em uma conspiração para a liberdade, era justo aventar a ideia da abolição. Luís representa o elemento escravo. Contudo o Sr. Castro Alves não lhe deu exclusivamente a paixão da liberdade. Achou mais dramático pôr naquele coração os desesperos do amor paterno. Quis tornar mais odiosa a situação do escravo pela luta entre a natureza e o fato social, entre a lei e o coração. Luís espera da revolução, antes da liberdade, a restituição da filha; é a primeira afirmação da personalidade humana; o cidadão virá depois. Por isso, quando no terceiro ato Luís encontra a filha já cadáver, e prorrompe em exclamações e soluços, o coração chora com ele, e a memória, se a memória pode dominar tais comoções, nos traz aos olhos a bela cena do rei Lear, carregando nos braços Cordélia morta. Quem os compara não vê nem o rei nem o escravo: vê o homem.
“Cumpre mencionar outras situações igualmente belas. Entra nesse número a cena da prisão dos conjurados no terceiro ato. As cenas entre Maria e o governador também são dignas de menção, posto que prevalece no espírito o reparo a que V. Exª aludiu na sua carta. O coração exigira menos valor e astúcia da parte de Maria; mas, não é verdade que o amor vence as repugnâncias para vencer os obstáculos? Em todo o caso uma ligeira sombra não empana o fulgor da figura.
“As cenas amorosas são escritas com paixão; as palavras saem naturalmente de uma alma para outra, prorrompem de um para outro coração. E que contraste melancólico não é aquele idílio às portas do desterro, quando já a justiça está prestes a vir separar os dois amantes!
“Dir-se-á que eu só recomendo belezas e não encontro senões? Já apontei os que cuidei ver. Acho mais – duas ou três imagens que me não parecem felizes; e uma ou outra locução suscetível de emenda. Mas que é isto no meio das louçanias da forma? Que as demasias do estilo, a exuberância das metáforas, o excesso das figuras devem obter a atenção do autor, é coisa tão segura que eu me limito a mencioná-las; mas como não aceitar agradecido esta prodigalidade de hoje, que pode ser a sábia economia de amanhã?
“Resta-me dizer que, pintando nos seus personagens a exaltação patriótica, o poeta não foi só à lição do fato, misturou talvez com essa exaltação um pouco do seu próprio sentir. É a homenagem do poeta ao cidadão. Mas, consorciando os sentimentos pessoais aos dos seus personagens, é inútil distinguir o caráter diverso dos tempos e das situações. Os sucessos que em 1822 nos deram uma pátria e uma dinastia, apagaram antipatias históricas que a arte deve reproduzir quando evoca o passado.
“Tais foram as impressões que me deixou este drama viril, estudado e meditado, escrito com calor e com alma. A mão é inexperiente, mas a sagacidade do autor supre a inexperiência. Estudou e estuda; é um penhor que nos dá. Quando voltar aos arquivos históricos ou revolver as paixões contemporâneas, estou certo que o fará com a mão na consciência. Está moço, tem um belo futuro diante de si. Venha desde já alistar-se nas fileiras dos que devem trabalhar para restaurar o império das musas.
“O fim é nobre, a necessidade é evidente. Mas o sucesso coroará a obra? É um ponto de interrogação que há de ter surgido no espírito de V. Exª. Contra estes intuitos, tão santos quanto indispensáveis, eu sei que há um obstáculo, e V. Exª o sabe também: é a conspiração da indiferença.
“Mas a perseverança não pode vencê-la? Devemos esperar que sim.
“Quanto a V. Exª, respirando nos degraus da nossa Tijuca o hausto puro e vivificante da natureza, vai meditando, sem dúvida, em outras obras-primas com que nos há de vir surpreender cá embaixo. Deve fazê-lo sem temor. Contra a conspiração da indiferença, tem V. Exª um aliado invencível: é a conspiração da posteridade.
M. DE ASSIS.”