Quando até um neoliberal desbragado – e até algo alucinado – como o presidente argentino, Mauricio Macri, decide aumentar os impostos sobre as exportações do agronegócio, é sinal de que há algo errado, talvez muito errado, com aqueles que defendem, aqui, a isenção de impostos para os agronegocistas – e, ao mesmo tempo, acham isso compatível com (e até indispensável a) um suposto projeto “nacional” de “desenvolvimento”.
As críticas a essa medida de Macri partiram, sobretudo, das tradings multinacionais que subjugam a agricultura argentina – e, evidentemente, dos agronegocistas internos, que durante muito tempo ganharam às custas de toda a sociedade daquele país.
Porque é óbvio que produzir e exportar sem pagar impostos significaria – como significa, no Brasil – que a população, o povo, estão pagando um subsídio que é embolsado pelo agronegócio.
No caso da Argentina, a isenção fiscal do agronegócio acabou no governo Cristina Kirchner. O que Macri fez, agora, foi aumentar a taxação sobre o setor.
Em Buenos Aires, uma das principais reações veio da Bunge, multinacional norte-americana. Seu porta-voz, Raúl Padilla, declarou: “As mudanças impositivas do governo Macri não foram felizes. Compartilhamos a visão, o rumo que tem tomado este governo, mas isso não quer dizer que estejamos de acordo com todas as medidas que se tomam”.
A Bunge, evidentemente, nada tem contra as medidas “impositivas” de Macri para escalpelar os argentinos; mas, também evidentemente, é contra pagar impostos. Prefere que, em seu lugar, o povo pague os impostos.
PRIVILÉGIOS
No Brasil, a partir do governo Collor, e, sobretudo, no governo Fernando Henrique, quando se estabeleceu a famigerada lei Kandir – e também no governo Lula e Dilma, inclusive com isenção em contribuições que estão na base do financiamento da Previdência – o chamado “agronegócio” (agricultura de exportação, hoje, sobretudo, de soja) tornou-se praticamente isento de impostos.
A argumentação para isso tem inúmeras variantes, mas pode ser reduzida a uma grosseira e rasteira frase: “não se deve exportar tributo”. O que quer dizer que somente o povo deve pagar impostos, mas não os exportadores – inclusive as tradings estrangeiras.
Entretanto, toda a industrialização e desenvolvimento brasileiros, desde 1930, foram financiados com a receita do imposto sobre a exportação dos produtos primários, sobretudo o café.
A ideia de que a principal função (ou a função decisiva) da economia do país é a exportação, é meramente colonial – ou colonizada. Mais colonial ainda é a ideia de que as exportações não devem contribuir para o desenvolvimento industrial do país.
Aliás, basta ver a composição das exportações para perceber tal coisa – a chamada “primarização” das exportações.
Em 1985, a composição das exportações do Brasil era a seguinte:
– produtos industrializados: 54,9%;
– produtos semi-industrializados: 10,8%;
– produtos primários: 33,3%.
Em 1998, essa composição ainda se mantinha:
– produtos industrializados: 57%;
– produtos semi-industrializados: 16%;
– produtos primários: 25%.
Porém, vejamos o que aconteceu depois. Os resultados abaixo são de 2017:
– produtos industrializados: 37%;
– produtos semi-industrializados: 14%;
– produtos primários: 46%.
(Dados da Secretaria do Comércio Exterior do Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior – SECEX/MDIC.)
O que se comprova aqui é uma desindustrialização das exportações, que reflete a desindustrialização dentro do próprio país, portanto, uma trilha para a estagnação da economia – e a manutenção (ou até piora) da miséria.
Então, para que serve a exportação de soja e outros produtos primários?
Para que serve o saldo comercial, assim obtido?
Além de engordar alguns suínos (não estamos nos referindo aos porcos propriamente ditos), serve para obter dólares, que, em seguida, são enviados, cedo ou tarde, para fora do país.
Para que serviu o saldo comercial de US$ 14 bilhões e 590 milhões, em 2016?
Para cobrir parte do déficit de transações com o exterior, de US$ 23 bilhões e 546 milhões – basicamente, para cobrir as remessas para fora do Brasil.
Sem o saldo comercial, esse déficit iria para US$ 38 bilhões e 136 milhões, que teriam de ser cobertos com o dinheiro que vem de fora – algo que tem limites mais ou menos estreitos, pois a função dos especuladores externos não é colocar dinheiro eternamente dentro do Brasil.
Pelo contrário, eles só colocam dinheiro se for para retirar mais do que colocaram.
XXX
Em suma, até mesmo o neoliberal Macri recua de manter o privilégio da sub-taxação do setor que exporta praticamente tudo o que produz – e não gera alimentos para os argentinos, exceto marginalmente.
As medidas de Macri incluem elevar taxas das exportações primárias — entre as quais, soja, milho e trigo, os três principais cultivos — em quatro pesos (quase 10 centavos de dólar) por cada dólar exportado.
Com esse imposto – incluído também o tributo à exportação de serviços – ele espera arrecadar 60 bilhões de pesos extras (1,5 bilhão de dólares) até dezembro e 280 bilhões de pesos (uns 7,2 bilhões de dólares) em 2019, o equivalente a 1% do PIB.
NO BRASIL
Enquanto isso, no Brasil, deixou, na prática, de existir o Imposto de Exportação:
“… a alíquota aplicável de Imposto de Exportação encontra-se zerada para praticamente todos os produtos exportados. As únicas exceções são os produtos derivados de fumo, quando destinados a países da América do Sul e América Central, que estão sujeitos ao pagamento de 150% de imposto, os produtos de couro e peles, que estão sujeitos à alíquota de 9%, e armas e munições, quando destinados a países da América do Sul (exceto Argentina, Chile e Equador), que estão sujeitos à incidência de alíquota de 150%” (Dão Real Pereira dos Santos e João Carlos Loebens, “Tributação sobre Comércio Internacional”, in ANFIP/FENAFISCO, “A Reforma Tributária Necessária: diagnóstico e premissas”, p.653, grifo nosso).
Quanto ao ICMS, o principal imposto estadual, a Lei Kandir isentou as exportações, com um resultado desastroso para o país. Os principais Estados exportadores de soja, por exemplo, estão, sem nenhum exagero, quebrados.
A lei Kandir (Lei Complementar nº 87/1996) “previa a compensação das perdas para os estados (e por partilha, aos municípios), a qual, por falta de adequada regulamentação, impõe anualmente vultosos prejuízos financeiros a esses entes federativos. De acordo com os cálculos do Conselho Nacional de Política Fazendária (Confaz) a perda líquida total não compensada, ou seja, os valores não ressarcidos pela União aos estados, no período de setembro de 1996 a dezembro de 2015, são superiores a R$ 496 bilhões” (Rafael Carlos Camera, Marconi Edson de Almeida Marques, Asty Pereira Júnior e Sílvia Cristina Barbosa Leal, “Retomada da tributação sobre produtos primários e semielaborados destinados à exportação”, in op. cit., p. 673, grifo nosso).
Um defensor dos privilégios do agronegócio (aliás, um defensor profissional, pois é advogado especialista em “direito do agronegócio”) – resumiu-os da seguinte maneira: “créditos presumidos e suspensão, não incidência e alíquota zero de PIS e Cofins, depreciação acelerada e incentivada quanto ao IRPJ/CSLL, compensação de prejuízos fiscais, diferimento e isenções de ICMS” (cf. Fábio Pallaretti Calcini, “Tributação diferenciada no agronegócio não é privilégio”, Conjur, 20/10/2017).
A lista é grande, mas não é tudo: o pagamento do Imposto Territorial Rural (ITR) tornou-se insignificante, no Brasil.
Além disso, “desde 1997 esse segmento [o agronegócio] recebeu isenção fiscal e deixou de contribuir para a Previdência Rural. De acordo com os dados da Receita Federal, nos últimos oito anos as empresas exportadoras de produtos agropecuários deixaram de recolher aproximadamente R$ 32 bilhões para a Seguridade Social” (ANFIP, “Previdência: reformar para excluir? Contribuição técnica ao debate sobre a reforma da previdência social brasileira”, 2017, p. 176).
Não terminamos, infelizmente: as Letras de Crédito do Agronegócio são isentas de Imposto de Renda no caso das “pessoas físicas”.
Mas, como não pretendemos ser exaustivos nesta lista de privilégios, finalizaremos com a menção ao crédito subsidiado pelo Tesouro.
Certamente, não é somente o agronegócio que se beneficia dessa “equalização dos juros”, à custa de dinheiro público, nem nós somos contra qualquer subsídio à agricultura ou pecuária.
Mas é principalmente o agronegócio, a agricultura para exportação, que não paga impostos, que se beneficia, hoje, do subsídio pago pelo conjunto da população.
No crédito, ocorre o mesmo que na terra: os agronegocistas espremem as culturas voltadas para o mercado interno – isto é, para a alimentação do povo brasileiro – e os agricultores que as cultivam.
Na Argentina a situação é parecida. Ou era. Está ainda na memória dos argentinos a tensão política que enfrentou a ex-presidente Cristina Kirchner em 2009, quando os cabeças do agronegócio rechaçaram um aumento de impostos às exportações – para que seu governo pudesse investir na produção de alimentos e industrialização – com barricadas que paralisaram o comércio de grãos e a movimentação de vários setores da economia.
Agora, Macri aumentou a taxação.
Enquanto isso, aqui, as exportações do agronegócio continuam livres de impostos – e há candidatos que defendem a manutenção desse espúrio privilégio.
SEZÁRIO SILVA
CARLOS LOPES