
Ambulante negro Ngange Mbaye foi alvejado com tiro na barriga, expondo mais uma vez covardia, truculência e racismo da polícia do governador Tarcísio de Freitas
“Deve ser legal, ser negão no Senegal”
Chico César
Exigindo Justiça, um expressivo protesto tomou o centro de São Paulo na tarde de segunda-feira (14) contra o assassinato do ambulante senegalês Ngange Mbaye, baleado covardemente com um tiro na barriga por um policial militar na região do Brás, um dos principais pontos de comércio da capital, na última sexta-feira (11).
A truculência e o racismo das “operações” do governador Tarcísio de Freitas têm gerado revolta nos mais amplos setores da sociedade, que erguem a voz contra o crescimento da brutalidade, já que a PM matou mais que o dobro de crianças e adolescentes durante os dois primeiros anos da “administração” pró-bolsonarista. Escancarando o racismo da sua “política”, 68% são negras, aponta o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística IBGE).
Autor da música Mama África, Chico César acompanhou a manifestação e denunciou que “essa não foi a primeira vez e, infelizmente, não será a última”. “Não faz muito tempo um outro senegalês foi jogado de um prédio aqui em São Paulo, cercado pela Polícia Militar”, recordou o cantor e compositor à Agência Brasil. Segundo inúmeras testemunhas, a queda de Serigne Mourtalla Mbaye ocorreu do sexto andar quando os policiais estavam no mesmo apartamento que o imigrante.
“Essas pessoas estão aqui no Brasil para trabalhar. Vieram em busca de melhores condições de vida e, infelizmente, acabam encontrando a morte porque são negras”, afirmou Chico César.
Amigo de Ngange Mbaye – que vivia há mais de dez anos no Brasil -, Meissa Fall lembrou com pesar que se encontravam juntos no Brás naquele dia. “Ele estava sempre comigo. A família dele está me ligando e eu não sei o que falar para eles. No dia em que ele morreu, um policial meteu bala em sua barriga. Ele caiu e eu disse ao policial que ele estava morrendo. Mas eles ainda o algemaram e me empurraram com suas armas. Eu desmaiei e acordei no hospital. A família dele está no Senegal sofrendo. Ele tinha mulher e um filho lá”, contou Fall.
Participando do protesto, o cônsul honorário do Senegal em São Paulo, Babacar Bá, informou que “infelizmente essa não é a primeira morte [violenta] de um senegalês em São Paulo. Mas tomara que seja a última”. “O que aconteceu foi muito triste e estamos fazendo de tudo para que isso não aconteça de novo”, ressaltou.
Para o ouvidor das Polícias do Estado de São Paulo, Mauro Caseri, o episódio foi “deplorável”: “Você está vendo ali uma pessoa que estava buscando o seu ganha-pão ser morta naquela circunstância”.
SENEGAL E A DEFESA DOS VALORES HUMANOS
Da Ilha de Gorée, a pouco mais de três quilômetros de Dakar, capital do Senegal, ponto mais a oeste do continente negro, saíram entre 15 e 20 milhões de africanos para servir de mão de obra escrava em toda costa dos Estados Unidos, no Brasil e no Haiti. Calcula-se que, destes, seis milhões não tenham chegado com vida ao outro lado do Atlântico. Ou seja, sequer chegaram ao destino – previamente traçado pelos senhores do mundo de então – cerca de 40% dos seres humanos amontoados como animais nos muitos navios de bandeira europeia. A mesma Europa, por sinal, que atualmente dominada pela lógica da exclusão, nega direitos aos trabalhadores migrantes e renega os mais elementares valores humanos.
Durante quase 400 anos, entre os séculos XV e XIX, o local onde hoje está localizada Dakar, foi o maior centro de tráfico negreiro para a América. Por ser o ponto mais a oeste do continente africano, era também o mais próximo para a travessia da carne humana. E dali, separados de seus entes queridos, partiram em duplas e com grilhões nos pés, homens, mulheres e crianças. Vidas desfeitas que vitaminaram, a suor e sangue, a riqueza dos senhores das metrópoles. Vidas sugadas pelo açoite em intermináveis jornadas nas plantações de cana de açúcar, algodão ou outro produto qualquer que o interesse do cifrão elegesse como prioritário.
Classificada como Patrimônio da Humanidade, a Ilha de Gorée desponta não mais como campo de concentração ou anúncio de extermínio, não mais como centro de estupro ou aniquilação, mas de irmandade, congraçamento e solidariedade entre todos os povos, de todas as raças.
Visitei o local em 2011, em uma das edições do Fórum Social Mundial, que transformou a Mansão dos Escravos, circo de horrores construído pelos holandeses em 1776, em museu. Na casa de dois pavimentos, visitada pelo Papa João Paulo II e por Nelson Mandela – que chorou ao ver os estreitos buracos onde eram trancafiados os escravos -, a história emana das grossas paredes, faz brotar lágrimas e jorrar rios de reflexão. Ela ganha vida com a lembrança das meninas violentadas, dos jovens rebeldes jogados aos tubarões, das famílias dilaceradas pela separação, das tribos dizimadas, dos homens tratados como gado de engorda a fim de que pudessem enfrentar a dureza do percurso.
A longa e penosa viagem até a incerteza era feita em barcos para 250 pessoas, que abarrotavam 400. Conforme o cálculo do “ajuste fiscal” de então, se previa a perda de 40% da “carga”, que deveria então ser lançada ao mar. A despedida da África era feita na “porta da viagem sem volta”, localizada embaixo da casa, ao centro, onde se pode ver e sentir junto à imensidão do mar, a profundidade da dor dos que por ali passaram.
DESDÉM E VIOLÊNCIA
Lembrando que o Brasil é uma terra de imigrantes, Chico César disse que, infelizmente, o país “recebe os africanos da mesma forma como eles foram trazidos para cá dentro dos porões dos navios [escravocratas], recebe do mesmo jeito como tem tratado as populações originárias, com desprezo, desdém e violência”.
“Essas mortes não ferem apenas os imigrantes ou os africanos, mas toda a sociedade brasileira em seu íntimo, no que ela deveria ter de mais plural e diversa. Quando um imigrante senegalês é morto pela Polícia Militar no centro da capital mais importante do Brasil, da maior cidade da América do Sul, é o íntimo da sociedade brasileira que está sendo ferido”, sublinhou.
LEONARDO WEXELL SEVERO