Na maior mobilização de estudantes nos EUA, desde os protestos contra a Guerra do Vietnã, cerca de 500 mil de jovens em Washington e em mais 800 cidades exigiram no sábado (24), do governo Trump e do Congresso, o fim dos morticínios a tiros nas escolas, a restrição às armas semiautomáticas, e a contenção do escancarado lobby pró-morte do Cartel do Rifle, a NRA.
A “Marcha por Nossas Vidas” foi encabeçada pelos estudantes da escola secundária Marjory Stoneman Douglas, de Parkland, na Flórida, sobreviventes do massacre de há pouco mais de um mês, em que foram mortos a tiros de AR-15, por um ex-aluno ensandecido, 14 jovens e três adultos, e feridos 15.
Num dos momentos de maior emoção, a sobrevivente Emma Gonzales, de 18 anos, pediu à multidão seis minutos e 20 segundos de silêncio – o tempo exato que durou a chacina. Os principais atos de apoio ocorreram em Nova Iorque, Los Angeles, Chicago, Boston, Seattle, Miami e Dallas. Inúmeros cartazes expressavam a indignação da juventude com a matança que não para. “Proteja os garotos, não as armas”; “Serei eu o próximo?”; e “De novo, nunca mais”. Dois eram especialmente elucidativos: Mãos ao Alto, Não Atire” e “Doenças mentais são globais, tiroteios nas escolas são americanos”.
A leitura do nome dos estudantes e professores mortos em Parkland foi feita pela aluna Cameron Kasky. O último nome lido – Nicholas Dworet – completaria 18 anos no sábado. A avenida Pensilvânia, que liga a Casa Branca ao Capitólio, estava inteiramente tomada. Desde que o massacre na escola Columbine em 1999 evidenciou com seus 15 alunos mortos a “doença americana” – a matança indiscriminada de pessoas a tiros por um atirador desvairado ou brutalizado pela desespero -, é a primeira vez que seu repúdio alcança tamanha envergadura.
“É assim que a democracia é”, cantaram os jovens que chegaram de ônibus de todas as partes do país – e o longevo “hei hei, how many kids do you kill today” (“quantos garotos você matou hoje”), agora contra a NRA, e não, Nixon ou Reagan. O presidente Trump não estava na Casa Branca e preventivamente foi para seu refúgio dourado em West Palm Beach, tuitar, jogar golfe e descansar de suas últimas nomeações, o hidrófobo John Bolton e Gina Sanguinária.
Pondo as barbas de molho, na véspera da Marcha o Departamento de Justiça anunciou a proibição dos dispositivos que transformam um rifle semiautomático em uma metralhadora, como usado na chacina em Las Vegas no ano passado (58 mortos e 515 feridos). Quanto a equiparar a idade mínima para aquisição de uma AR-15 (hoje 18 anos) com a para uma pistola (21 anos), ainda nada. No ato, um dos alunos de Parkland, Alex Wind, afirmou, sobre o debate quanto às armas, que se trata da escolha “entre a morte e a vida, e nós escolhemos a vida”.
Desde o começo do ano já são 33 tiroteios . Esta semana, três facetas do mesmo problema de fundo emergiram, com outro tiroteio, em Maryland, em que foi morto um aluno; o suicídio do ‘serial bomber’ de Austin – cinco explosões em três semana, dois negros mortos e quatro feridos -; e o assassinato com 20 tiros, por policiais, de mais um negro desarmado, em Sacramento, na Califórnia.
Então, essa “violência armada” não se resolve apenas com “controle de armas”. Como registrou o HP em fevereiro passado, “num país que há dezenas de anos invade e massacra um país atrás do outro, assassina em massa e glorifica o genocídio que comete, ao mesmo tempo em que o sistema neoliberal e a mídia fazem apologia do egocentrismo, da não-identificaçã ;o com o próximo e da catarse sangrenta quando contrariado, não chega propriamente a ser surpreendente que os My Lais e No Gun Ris se espalhem pelas escolas da América, de Columbine e Newtown, até a Marjory Stoneman Douglas High School de Parkland”. My Lai acaba de completar 50 anos, Abu Graib, 14.
Para ser mais exato, apologia também da tortura, do “excepcionalismo americano” e até mesmo da “primazia nuclear”. Claro, do racismo. E aquela ‘epidemia de opiáceos’, não terá a ver também com os 16 anos de ocupação do Afeganistão?
Aliás, os estudantes que estão liderando a marcha nasceram quando os EUA invadiram o Afeganistão, Depois o Iraque (“petróleo por sangue”), então a Líbia, e a intervenção na Síria.
Um dos líderes da manifestação, o aluno David Hogg, afirmou que os que estão no poder “estão tremendo” com as eleições de novembro e, respondendo às cínicas declarações da bancada da bala sobre “pensamentos e orações”, acrescentou que “inação, nunca mais, assassinato de crianças, nunca mais. “Vote-os para fora”, gritaram os manifestantes.
A crise que arrastou parte dos trabalhadores brancos até Trump, abalroados por décadas de desindustrialização, endividamento e estagnação salarial, e cansados do estelionato eleitoral de Obama e seu resgate dos bancos, agora também se mostra abertamente de outra forma entre os jovens, que têm como perspectiva ter uma condição pior do que a dos seus pais e um país mais decadente e mais sucateado. Marjory foi o estopim.
Conquanto a cúpula democrata não oculte sua disposição de empurrar a indignação dos estudantes para meramente as eleições legislativas de meio de mandato, como se fosse tudo só “falta de controles” na venda das armas ou a NRA corrompendo parlamentares, agora que os estudantes debutaram nas ruas, sempre é mais difícil colocar o gênio de volta à garrafa.
Significativamente, foi nesse mesmo local que ressoaram as palavras do grande Marthin Luther King há tantos, e é a vez de outra geração. “Todo mundo que fala é jovem. Não temos ninguém com idade superior a 20 anos, porque essa é a nossa história”, disse a sobrevivente Cameron Kasky, à rádio pública NPR. Uma das oradoras mais aplaudidas foi a neta de Martin Luther King, Yolanda Renee, de 9 anos, que lembrou o histórico “Eu tenho um Sonho”, em que o avô conclamou a que seus filhos fossem avaliados pelo caráter e não pela cor da pele. “Eu tenho um sonho de que já basta”. “Este deve ser um mundo livre de armas. Ponto Final”. Quando alguém se põe em marcha – e são milhões – os horizontes se expandem e se abre a possibilidade de que os sonhos de agora possam ir tão fundo, quanto os daquela geração. No próximo dia 20 de abril, data em que o massacre de Columbine completa 19 anos, os estudantes vão voltar às ruas. A. P.
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