Uma nota na coluna de Lauro Jardim, em “O Globo”, confirma os acontecimentos – não estamos falando de rumores – das últimas semanas:
“Em troca do apoio de Jair Bolsonaro na corrida pela prefeitura de São Paulo, Márcio França (PSB) já levou ao capitão sua proposta: está disposto a bater incansavelmente em João Doria na campanha. Bolsonaro gostou da oferta.”
Como as informações do colunista têm sido, há muito, confirmadas pelos fatos – e como não houve desmentido da nota por ele publicada, além dela corresponder, como já dissemos, aos acontecimentos -, podemos considerar fato o que foi noticiado.
O que há nesse fato, portanto, de interessante ou de importante?
O governador João Doria tem muitas – e óbvias – diferenças em relação a Bolsonaro.
Aqui, queremos nos ater apenas a uma: Doria declarou-se pela democracia e contra a ditadura. Aliás, fez isso, entre outras oportunidades, durante uma entrevista coletiva em que se dirigiu a Bolsonaro:
“Presidente, como governador de São Paulo, tenho a obrigação de dizer, como filho de um deputado cassado pela ditadura, que nem o senhor e nem ninguém vai afrontar a democracia do Brasil, vai amedrontar e emparedar jornalistas e veículos de comunicação sérios do nosso país. A democracia, presidente Bolsonaro, é mais forte que o senhor, já resistiu a outras ameaças e vai resistir a você também.”
Bolsonaro, pelo contrário, é aquele que declarou:
“o erro da ditadura foi torturar e não matar”
Ou:
“Através do voto você não vai mudar nada nesse país, nada, absolutamente nada! Só vai mudar, infelizmente, se um dia nós partirmos para uma guerra civil aqui dentro, e fazendo o trabalho que o regime militar não fez: matando uns 30 mil, começando com o FHC, não deixar ir para fora não, matando! Se vai morrer alguns inocentes, tudo bem, tudo quanto é guerra morre inocente.”
Ou:
“Sou a favor, sim, de uma ditadura, de um regime de exceção, desde que este Congresso dê mais um passo rumo ao abismo, que no meu entender está muito próximo.”
Ou:
“Eu louvo o AI-5”
Ou:
“[O golpe de 64] deu início a 20 anos de glória, período em que o povo gozou de plena liberdade e de direitos humanos.”
Ou, para exemplificar o que ele entende por “direitos humanos”, em uma entrevista na TV:
“Pau-de-arara funciona. Sou favorável à tortura, tu sabe disso.”
E ficamos, hoje, por aqui, mas não faltam declarações de Bolsonaro a favor da ditadura (e, inclusive, da tortura, do assassinato e do extermínio) em todas as épocas da sua carreira política, sem nenhuma inibição, completamente sem vergonha – e sem que Bolsonaro haja, em nenhum momento, mostrado arrependimento ou autocrítica de suas declarações e profissões de fé (?) no fascismo e no crime.
É a esse indivíduo que Márcio França, candidato do PSB, em aliança com o PDT, à Prefeitura de São Paulo, promete prestar serviço, em troca de apoio eleitoral.
Com isso, renega não somente o próprio passado, como se diz, suja a própria ficha de suposto democrata, mas também macula os seus companheiros de partido – não somente o seu, mas também os aliados – mesmo sem que eles tenham nada a ver com sua adesão ao bolsonarismo.
Pois a questão é que não é possível ser democrata e, ao mesmo tempo, aliar-se e prestar serviço a um fascista – nesse caso, para ajudar este último a “bater” em alguém que declarou-se contra a ditadura e as ambições ditatoriais de Bolsonaro, e a favor da democracia (ver, acima, as palavras do próprio Doria).
É possível – e, aliás, bastante comum, veja-se o nosso caso – ter divergências, e não poucas, em relação ao governador João Doria.
Mas isso não nos faz, nem obriga alguém, muito menos é aceitável, pendurar-se em um fascista – aliás, no maior risco que a democracia já passou no Brasil, desde a derrubada da ditadura – com a promessa e pretensão de atirar pedras em quem não é um risco para a democracia; em quem, concretamente, é um obstáculo para Bolsonaro e sua sofreguidão estupidamente autoritária.
É certo, nas eleições de 2018, Doria apoiou Bolsonaro para presidente, enquanto Márcio França foi o candidato a governador dos que se opunham a Bolsonaro.
Será preciso lembrar, diante do que aconteceu com Witzel, no Rio de Janeiro, que a escada de Bolsonaro sempre é composta pelos cadáveres dos ex-aliados?
Bolsonaro gostaria de fazer com Doria o mesmo que conseguiu fazer com Witzel. Este, aliás, facilitou muito o trabalho de Bolsonaro: ainda que não tenha sido julgado, pela sentença provisória do Superior Tribunal de Justiça (STJ), confirmando o afastamento de Witzel, pode-se concluir que o governador do Rio, apesar de rompido com Bolsonaro, roubou como um autêntico bolsonarista – tosca e inescrupulosamente.
Não há sinal de que Bolsonaro possa fazer com Doria o que foi feito com Witzel.
Entretanto, apesar disso, Márcio França se ofereceu, diz a coluna de Lauro Jardim, para “bater incansavelmente em João Doria na campanha”.
Ou seja, se ofereceu para fazer o serviço que Bolsonaro gostaria que ele fizesse.
Não é à toa, como continua o colunista, que “Bolsonaro gostou da oferta”.
Também, se não gostasse…
Se não gostasse, não seria Bolsonaro, sempre querendo matar àqueles aos quais não consegue submeter. Vejam o estado em que estão, com as exceções de praxe, aqueles que apoiaram Bolsonaro em 2018.
Mas o estranho não está, aqui, nas reações de Bolsonaro e nas suas deformidades, de resto já bem conhecidas e vulgarizadas.
O anormal está em Márcio França colocar acima da democracia, acima dos interesses do povo paulistano e brasileiro, supostos interesses eleitoreiros – interesses, diga-se de passagem, muito longe de garantidos com o apoio de Bolsonaro, que tem o condão de afastar enfaticamente grande parcela dos eleitores, como se fosse portador de lepra ou coisa pior.
CARLOS LOPES
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