A síntese do debate, quinta-feira à noite, entre os candidatos ao governo de São Paulo, pode ser feita através de um velho dito popular: João Dória apanhou mais que boi ladrão.
Trata-se, aliás, de uma expressão, no caso, bastante apropriada.
A constatação de que Márcio França, do PSB, venceu o debate, não é apenas nossa: a maioria dos que escreveram sobre o assunto, no Twitter e demais “redes sociais”, disseram a mesma coisa (embora, é claro, com outras palavras).
Porém, não é toda a verdade dizer que Márcio França venceu. Como o leitor poderá comprovar pelo vídeo fornecido pela Band, ao final deste artigo, foi uma vitória sobretudo moral – o que quer dizer, uma derrota fragorosa do adversário.
Não deve ter sido fácil para Márcio França. Não somente pelo tamanho algo avantajado do debate.
A dificuldade maior é enfrentar um adversário que é capaz de dizer qualquer coisa, sem nenhum respeito pela verdade ou pela inteligência das pessoas. Às vezes é difícil para as pessoas conceber que possa existir alguém tão mentiroso – essa dificuldade advém do fato de que a maioria das pessoas não são assim. Logo, dificilmente aceitam que outro possa ser tão degenerado.
Doria é desse tipo, um alpinista social e político, um arrivista, aquele tipo de sujeito que envolve as pessoas para subir na vida – e depois as trai, quando arruma um outro protetor que lhes dá, fantasiosa ou realmente, mais vantagens.
Não foi isso o que fez com Geraldo Alckmin?
Daí a resposta de Márcio França, quando, depois de espalhar sua peçonha, Doria perguntou o que ele havia feito como vice-governador:
“Primeiro, eu sei o que eu não fiz: eu não traí o Alckmin.
“Sabe por quê?
“Porque antes de escolher o meu partido, antes de escolher a minha ideologia, eu escolhi se ia ter caráter ou se não ia ter caráter. Se ia falar a verdade ou se não ia falar a verdade. Se ia trair os meus amigos ou se não ia trair.
“Eu pergunto: cadê os seus amigos? Todo mundo que era seu amigo… [interrupção barulhenta da claque de Doria; este aponta para a plateia, indicando que eram os seus amigos].
“Isso não é amigo, não é João? Isso é inimigo. Quem faz isso aí é inimigo.”
Márcio França continuou:
“Seus amigos, o Aécio Neves, o governador do Rio de janeiro, o Odebrecht, que você falou que era teu amigo – todos eram seus amigos.
“Você disse que o Eike era um exemplo para o Brasil. Queria que o Eike fosse o governante do Brasil.
“Todas essas pessoas eram suas amigas.”
Esses, realmente – Aécio, Sérgio Cabral, Eike – eram algumas das figuras lisonjeadas por Doria, cujo único negócio conhecido está na bajulação de grã-finos – e de alguns (como os citados por Márcio França) não tão grã-finos, hoje réus por corrupção ou já na cadeia.
Em outra réplica a Doria, Márcio França frisou a diferença:
“Não traio as pessoas do meu partido, não apunhalo as pessoas do meu partido, não faço rasteira nas pessoas do meu partido, não desprezo as pessoas do meu partido. Diferente de você, porque você, cada oportunidade que teve, fez isso com o governador Geraldo Alckmin.”
Doria era uma insignificância, um mero arrivista sem cargo público, quando Alckmin, então governador de São Paulo, lançou-o, como candidato a prefeito da capital do Estado, inclusive contra a maior parte dos dirigentes do PSDB.
Depois de levar a cidade ao caos (aliás, abandoná-la: apenas nos primeiros 11 meses na Prefeitura, ele fez 43 viagens, 40 delas em dias úteis), Doria traiu Alckmin – primeiro, tentando, furtivamente, substituí-lo como candidato a presidente pelo PSDB; depois, quando não conseguiu, lançando-se a governador; e, por fim, não apoiando, no primeiro turno das eleições presidenciais, o homem a quem deve sua carreira política.
APROCHEGADO
Doria tentou colar em Márcio França a rejeição do PT – e fez isso com um discurso anti-comunista da Idade da Pedra, e como se o PT tivesse alguma coisa a ver com “comunismo”.
Ao acusar seu adversário de ter sido conselheiro de Lula, perguntou que conselhos ele teria dado ao ex-presidente.
Doria colheu a seguinte resposta de Márcio França:
“Se eu tivesse que dar um conselho para ele [Lula], eu diria o seguinte: ‘Não empresta mais dinheiro para o João Doria’. Ele emprestou a você R$ 44 milhões do BNDES para você comprar um jatinho. Você acha que as pessoas precisam disso?”
Doria nem tentou desmentir a informação dada por Márcio França. Com isso – sobretudo em se tratando de alguém que diz quase qualquer coisa – acusou o golpe.
Mais adiante, como Doria insistisse nessa pantomina, Márcio França lembrou outra prebenda conseguida por ele do governo Lula:
“O Doria foi condenado pela Justiça Eleitoral, duas ou três vezes, de tanta mentira que conta.
“Vou repetir aqui, agora: meu partido não é o PT, eu não sou do PT, não apoio o PT. Você está ficando doido com esse negócio de PT, é uma coisa meio doida…”
E acrescentou:
“Olha, o PT te ajudou com 6 milhões de reais para o seu Lide, para você, para a tua empresa, durante o governo do Lula. Você pegou dinheiro emprestado para o Lide [em bancos públicos]. Você pegou dinheiro.”
França lembrou que Doria foi financiador das campanhas do PT:
“Você fala tão mal deles [mas] ajudou financeiramente na campanha do PT, ajudou o José Eduardo Cardozo, ajudou a Manoela D’Ávila, que é a vice do Haddad.
“Você não tem vergonha de falar tudo isso na frente de todo mundo?
“Depois de você mesmo falar que ajudou as pessoas, João?
“Fala, João: por que você ajudou as pessoas do PT?”
E apontou a falsidade do suposto credo bolsonarista de Doria:
“Sabe, eu já disse: você não é Bolsonaro, você é o bolso seu.
“Se o Lula sair da cadeia amanhã e ficar na frente nas pesquisas, você se agarra nesse Lula também.
“Você se agarrou no Bolsonaro [depois que] falou mal do Bolsonaro, xingou o Bolsonaro, disse que ele era o extremo, que ele ia ser um desastre para o Brasil.
“Acabou a eleição… não, nem acabou a eleição, você se agarrou nesse Bolsonaro [e] esse coitado fugindo de você lá no Rio de Janeiro”. [risos na plateia]
Doria tentou forçar Bolsonaro a apoiá-lo, aparecendo, sem marcar, na casa de um amigo do candidato do PSL, onde este estava gravando sua propaganda. Bolsonaro não o recebeu e não deu o seu apoio (v. Petulância de Doria em extrair apoio de Bolsonaro na marra irrita o capitão e Bolsonaro deseja boa sorte a Doria mas reafirma neutralidade em SP).
Márcio França continuou:
“ Larga o Bolsonaro, João. Fala o que você quer fazer para São Paulo. Não faz o que você fez com a Prefeitura, fala o que você quer fazer para o Estado de São Paulo.”
MISTERIOSA FORTUNA
Acuado, Doria tentou acusar Márcio França de ter recebido dinheiro da Odebrecht.
França, que apontara, ainda durante a intervenção de seu adversário, que os Odebrecht eram amigos notórios de Doria, respondeu, então:
“Tem pessoas que mentem. Mentem, assim, uma vez, outra.
“Tem pessoas que mentem tão compulsivamente, que elas começam a acreditar na mentira.
“Eu desafio você: encontra lá um depoimento que tenha o meu nome, que eu renuncio ao meu mandato.
“Encontra uma só vez em que tenha lá uma pessoa que me deu um centavo, João.
Ao contrário de você, que passou a vida inteira… explica para as pessoas: se você não planta, se você não cria nada, se você não fabrica nada, se você não tem comércio, de onde é que apareceu todo esse dinheiro?
“De onde é que apareceu todo esse dinheiro? Conta para todo mundo, de onde apareceu todo esse dinheiro, João?”
Doria teve o desplante de responder que amealhara sua fortuna através do “trabalho” (repetiu algumas vezes que tinha sido pelo “trabalho duro”).
Márcio França replicou:
“Que trabalho, João? Que trabalho?
“Você juntou interesses privados e públicos, misturou-os.
“Como diz o Alckmin, você é uma decepção, você misturou o interesse público e privado, João. Isso é o que você fez.”
Em seguida, Márcio França perguntou a Doria:
“Não tenho nada contra você ganhar o seu dinheiro. Eu só não acho correto você usar as coisas públicas. Por exemplo, você usou cinco vezes o Palácio dos Bandeirantes para fazer os seus encontros lá. Você não acha errado usar o Lide para fazer encontro dentro do palácio do governo?”
Doria respondeu que “tenho uma vida pautada pela honestidade e a decência” e contou uma história da carochinha sobre a sua vida (“comecei aos 13 anos de idade trabalhando porque precisava ajudar a minha mãe, na ausência do meu pai”, etc.).
Mas não explicou a sua fortuna. Talvez, aos 13 anos, ele tenha vendido pés-de-moleque ou mariolas na Estação da Luz – e daí a origem de sua fortuna… É apenas uma hipótese, leitor, apenas uma hipótese.
Doria encerrou seu arrazoado, dizendo que alugara um salão do Palácio dos Bandeirantes. Mas que ali havia dois candidatos, um – ele – que não precisava da política para viver.
Márcio França respondeu:
“Você tem dois candidatos mesmo: um deles se dedicou a vida inteira a intermediar as relações de empresas privadas, a ganhar dinheiro com isso, juntando o público com o privado onde teve uma chance, aproveitando essa chance.
“Eu não acho que isso tenha nada a ver comigo – a não ser o fato de que você não pode ser governador.
“Porque você não vai ter a sensibilidade para poder tratar as coisas mais importantes que o povo precisa.
“O povo precisa de creches, 100% de creches em São Paulo, como eu fiz na cidade em que eu fui prefeito – por isso que, agora, nas eleições, eu tive quase 70% dos votos, 20 anos depois que eu fui prefeito.
“Você, depois de um ano, teve 20% dos votos [na cidade em que foi prefeito].
“Sinceramente, quem conhece João Doria, não vota no João Doria.”
O VOTO
Depois que Doria falou que, se eleito, não ia usar o Palácio de Inverno do governo de São Paulo, em Campos do Jordão, Márcio França replicou:
“Você falou em não usar o Palácio de Inverno de Campos do Jordão. Bem, lá em Campos do Jordão você incorporou uma via pública à sua propriedade. Um negócio errado. Incorporar uma rua das pessoas à sua propriedade. Quem tem dinheiro pensa que isso é fácil.”
Doria respondeu que comprara a rua…
E, depois de Doria ter repetido que o MST apoiara Márcio França:
“Doria, o Major Olímpio [senador eleito e presidente do PSL de São Paulo] apoia o Bolsonaro e me apoiou. O Paulo Skaf apoia o Bolsonaro e me apoiou, o MST, que eu não sei quem é em São Paulo, também me apoiou, outras pessoas me apoiaram.
“Sabe por que as pessoas me apoiam?
“Porque elas te rejeitam, é isso. Elas rejeitam tanto você que elas apoiam o opositor.
“Há muitas pessoas que sequer me conhecem. Repare: se 70% da capital vota em mim, mesmo eu sendo uma pessoa que não sou tão conhecida quanto você, alguma coisa está errada.
“Na verdade, é um voto anti-Doria, é fora Doria.
“Se você der a sua palavra, cumpra. Se você não cumprir a sua palavra, vai ficar sempre marcado como uma pessoa que descumpre a palavra, uma pessoa que mente.
“Foi assim que eles acabaram enxergando você. Por isso é que eles me apoiam.”
MONTADO
Márcio França apontou a artificialidade e o oportunismo sem limites de Doria:
“Você se encosta, se agarra nesse Bolsonaro. Coitado desse Bolsonaro, ter que arrastar você, sinceramente.
“O Bolsonaro, ele não tem nada a ver com você porque ele é uma pessoa sincera, ele é uma pessoa autêntica e autenticidade é o que você não tem. Sinceridade é o que você não tem.”
Diante do protesto de Doria:
“É claro que não tem, João. Olha para a cara de todo mundo. Você parece todo montado, quadradinho. As pessoas te orientam é você vem aqui e repete, repete, repete, ‘bandido na cadeia’, ‘não sei que lá’, nada fica sincero”.
C.L.
Abaixo, a íntegra do debate: