(HP, 29-30/06/2016)
Em julho de 1945, Graciliano Ramos publicou um pequeno artigo, “O fator econômico no romance brasileiro”. Até ler o que Marcus Vinicius escreveu sobre o seu trabalho (na composição da trilha da peça “Os Azeredo mais Os Benevides”), não nos tinha ocorrido estender as considerações de Graciliano à outras formas de arte, além da literatura
CARLOS LOPES
Ninguém é ser humano se não é atingido, de vez em quando, pela beleza.
Um dia, ouvi minha filha cantando: “Como ser amigo de quem nega/ Quem arrenega a luta, que entrega/ Tudo que falou já não diz mais/ Como ser amigo de quem trai?”.
O leitor não pode ter uma ideia do que se passou, porque os jornais ainda não são dotados de trilha sonora. Só posso transcrever a letra, não a música.
Perguntei o que era aquilo e pedi que cantasse tudo:
“Se um pede e ninguém lhe dá a mão/ Se um passa fome e outro não/ Se a ajuda para no tostão/ Onde tá a amizade, então?/ Amizade não vem lá do céu/ Ela se constrói no chão// Amigo é quem tá com a gente/ Pra mudar o mundo sempre/ Na lida pra virar a vida/ Eterno mutirão// Como ser amigo de quem nega/ Quem arrenega a luta, que entrega/ Tudo que falou já não diz mais/ Como ser amigo de quem trai?”
Era o tema musical que encerrava a peça de Oduvaldo Vianna Filho, “Os Azeredo Mais Os Benevides”, composta pelo maestro Marcus Vinicius de Andrade.
Naturalmente, conheço Marcus Vinicius – e estive no lançamento do CD, com os temas musicais da peça, em dezembro do ano passado (v. HP 18/12/2015). Mas isso foi mais de um ano depois.
Não vou explicar porque levei sete meses para publicar um texto sobre o CD de Marcus Vinicius. Mas que o CD “Os Azeredo + Os Benevides – 50 anos depois do golpe de 64” me parece ainda mais importante hoje, é verdade. Explico, então, a urgência de agora: comecemos por outra experiência transcendental, ocorrida muito tempo depois da peça e do lançamento do CD.
LONGO RETORNO
Há poucos domingos, voltando de viagem, no Aeroporto de Guarulhos, cada vez mais desconfortável após a privatização, entrei em um daqueles ônibus que levam ao centro de São Paulo.
Alguns minutos depois, o motorista escolheu o programa que devíamos assistir na televisão de bordo (bordo?!): era, que o diabo seja misericordioso, o programa do Faustão.
Não assisto muita TV, muito menos o programa do cavalheiro a quem a Globo entregou os seus domingos. Talvez por isso, lembrei da época, sob a ditadura, em que alguns iluminados descobriram, copiando um acadêmico francês que aportou por aqui – a luz desse tipo de iluminado sempre reflete alguma porcaria de fora – que o Chacrinha era um gênio.
Como quase todo mundo mais ou menos normal, sempre achei ridícula a elevação do velho Abelardo Barbosa ao Olimpo cultural. Tinha gente – perguntem ao Gilberto Gil – que achava o Chacrinha mais importante que Machado de Assis. Era muito ridículo. Mais ridículo que os ingleses de Alexandre Herculano (“Dois ingleses ridículos são incontestavelmente as duas coisas mais ridículas deste mundo”, escreveu o célebre português em “De Jersey a Granville”, um dos textos de “Lendas e Narrativas”, livro de 1851; Camilo Castelo Branco, que, além de português e escritor, era um machista impenitente, em “A Senhora Ratazzi”, de 1880, completou: “Uma inglesa ridícula equivale a dois ingleses ridículos”. Mas deixemos de lusas divagações. Voltemos ao Chacrinha).
Apesar dessa nossa fé, leitores, diante do sr. Fausto Silva não temos como deixar de constatar que o Chacrinha era mesmo um gênio, talvez mesmo um deus – é possível que fosse o próprio Zeus. Pelo menos não lembro (e nunca ouvi falar) que o sr. Barbosa tivesse dito algo semelhante a “o que faltou no Brasil foi uma Operação Lava Jato desde que Cabral chegou aqui”, como se não tivéssemos construído, durante cinco séculos, um país – e como se a avacalhação a que o PSDB, o PT e o PMDB de Temer, com apoio dos patrões do sr. Faustão, submeteram a propriedade pública e o dinheiro público, fosse a norma em toda a nossa História.
Mas isso vai aqui apenas como exemplo do que o povo tem de suportar nas tardes – e noites – de domingo. Embora, o leitor deve saber disso melhor que nós. Pior foi o que veio depois.
Apareceu um suposto cantor chamado Luan (ou será Luam?). Não conhecia o cantante. Mas não estou me gabando da minha ignorância. Já ouvira o nome. O que eu não conhecia era algum exemplar de seu excepcional repertório – em suma, jamais tinha escutado o cidadão cantar. Os leitores talvez o conheçam, pois, de acordo com o que foi dito pelo apresentador, ele já fez mais shows que o Roberto Carlos – e, se continuar na batida, vai, em breve, superá-lo também em número de discos (aliás, CDs).
O que não quer dizer nada. Exceto que a TV e as gravadoras – pelo menos algumas – pioraram muito. Porque, meus amigos, para chegar a ser uma nulidade musical, o cantor em foco teria que melhorar muito… Diz um amigo que o sujeito nem sempre foi assim, que já foi melhor, mas o fato é que, no momento, é assim.
Então, concluí que o Chacrinha era mesmo um gênio.
Não pelas razões supostamente epistemológicas (?!) que alguns papagueavam há 40 anos. Mas, em seu programa, podia-se ouvir (e ver, evidentemente), além de Roberto e Erasmo Carlos – e da Wanderléa -, as magníficas Ângela Maria (“Babalúúúúú…”), Dalva de Oliveira (“Quem sabe na volta/ Te encontre no mesmo lugar…”), Dircinha Batista (“Sei que o futuro é um segredo/ Que ninguém pode adivinhar…”), para não falar na rainha do Botafogo – Emilinha Borba – ou na sua rival, Marlene, ou na amiga de infância de meu pai, lá no Rio Grande do Norte, a rainha do chorinho, a fenomenal Ademilde Fonseca.
Ou, também, os grandes Orlando Silva (“Lábios que eu beijei/ Mãos que afaguei…”) e Nélson Gonçalves (“Boemia, aqui me tens de regresso/ E suplicante te peço/ A minha nova inscrição…”) – e até, de vez em quando, aparecia Anísio Silva (“Mais uma luz se apaga/ Mais um sonho que chega ao fim…”), além do Cauby Peixoto e da transcendental Elizeth Cardoso, sem contar, até, uma cantora mais afinada com a Zona Sul do Rio, Dóris Monteiro (“Mudando de conversa onde foi que ficou/ Aquela velha amizade…”).
Pois é, leitores, o Chacrinha não era um gênio epistemológico (??), mas, pelo menos, não empurrava lixo nos ouvidos – e na casa – dos telespectadores. É verdade que atirava bacalhau na cabeça do pessoal do auditório – cortesia das Casas da Banha que ninguém desprezava – e que, algumas vezes, também por lá aparecia o Orlando Dias (“Tu és a criatura mais linda que os meus olhos já viram/ Tu tens a boca mais linda que a minha boca beijou…”), sempre possuído por alguma coisa que o fazia se ajoelhar e acenar com um lenço branco. Mas todo mundo achava muito engraçado…
SEM LUZ
As coisas apodreceram, e muito, na TV. A Globo já era ruim na época do Chacrinha – mas hoje é muito pior. O que é bastante interessante, quando se ouvem as queixas do PT em relação à Globo.
Afinal, foi o presidente Lula quem, nos idos de abril de 2008, após o parecer favorável do então ministro das Comunicações, Paulo Bernardo, renovou as concessões da Globo por 15 anos – sem nenhuma discussão com qualquer setor, nem com o PT.
Hoje, alguns petistas tentam colocar a culpa no Congresso, que não anulou o ato do presidente (eram necessários 2/5 do parlamento para a anulação). Segundo esses teóricos, pela lei é impossível um governo não renovar automaticamente as concessões de uma empresa de TV ou rádio. Só o Congresso poderia fazer isso. Entretanto, além do fato de que – se isso fosse verdade – o governo Lula, antes de renovar as concessões da Globo, teve cinco anos para mudar ou tentar mudar a lei (e não fez nada disso), a Constituição é clara (“Art. 223. Compete ao Poder Executivo outorgar e renovar concessão, permissão e autorização para o serviço de radiodifusão sonora e de sons e imagens”).
Porém, meus amigos, todo esse introito é para dizer que o lixo televisivo nada tem a ver com o Brasil. Certamente, ele influencia – para o mal (e também para o mau) – o gosto de muitos brasileiros e brasileiras. Mas a questão é, exatamente, que isso é mau porque nada tem a ver com a Nação.
Voltemos, então, ao CD do Marcus Vinicius.
NOSSO SOL
Diz o maestro, no texto que acompanha o CD:
“Por duas vezes na minha vida, tive a honrosa e difícil missão de dar continuidade a trabalhos musicais iniciados pelo grande e estimado Edu Lobo. A primeira vez foi em 1980, portanto há 35 anos, quando substituí Edu na direção musical, arranjos e criação da música de cena para a peça Calabar (Chico Buarque e Ruy Guerra), que havia ficado seis anos interditada pela (com licença da má palavra) censura.
“A segunda foi agora em 2014, com a música deste Os Azeredo Mais Os Benevides, e mais uma vez por causa da maldita censura. Só que, desta feita, não falo só da censura sobre a arte: falo do golpe militar de 1964, que censurou o país inteiro, censurou o povo, censurou suas lutas, censurou minha juventude e os sonhos de uma geração que esperava inaugurar o Teatro da UNE exatamente com esta peça de Vianinha, para a qual Edu Lobo (com 21 anos incompletos) havia composto apenas o tema inicial, Chegança, que depois se tornaria referência na música brasileira. O teatro e a UNE foram incendiados pelos golpistas na própria madrugada de 1° de abril e a peça ficaria ausente dos palcos profissionais até o corrente ano de 2014. Ao que se sabe, Edu não chegou a compor nenhum outro tema para Os Azeredo… e, cinquenta anos depois, o locutor que vos fala foi chamado para completar o que faltava, tendo de colocar música não mais numa peça de teatro, mas no próprio sonho interrompido de uma geração.”
Mais adiante, o artista se revela em sua grandeza – e já veremos o que quero dizer, pois não fica bem puxar o saco dos amigos (e muito menos o dos inimigos):
“Observei que, com sua aguda percepção sobre o tema da amizade, o texto de Vianinha não só retratava os acontecimentos fundamentais da vida das comunidades rurais (a chegada e a fixação na terra, a construção das casas, o nascimento dos filhos, o compadrio, o plantio e a colheita, a morte, etc., temas clássicos da Antropologia, por sinal), como que fazia também uma síntese da história econômica da sociedade brasileira das primeiras décadas do séc. XX, abordando as heranças do patriarcalismo agrário, a implantação das práticas pré-capitalistas no campo, a crise da produção e do emprego e, por fim, a submissão ao ‘moderno’ capitalismo propriamente dito, que chega trazendo o fermento da rebelião e da morte. Partindo desses assuntos, concebi uma música calcada inicialmente em melodias de caráter nordestino (rojões, baiões, cirandas, etc.) que vão se tornando menos regionais e mais universais à medida em que os conflitos sociais vão se agudizando na peça. Da mesma forma, se inicialmente a música é cantada/vivida pelos personagens do enredo, à medida em que a conscientização dos conflitos emerge, as canções passam a ser entoadas pelos próprios atores – ao final já em sintonia com a plateia na busca de respostas para as perguntas que ficam: “Como ser amigo de quem arrenega a luta/ Como ser amigo de quem trai?Indagações mais que essenciais nos dias de hoje – e que cabe ao povo brasileiro responder, caso queira ser protagonista e não mero coadjuvante de sua história.”
A ARTE
Tomemos a terceira faixa do CD, “Confiança no patrão” (a letra: “Ah, é muita confiança/ Patrão assim dá muita segurança/ Quando existe autoridade de verdade/ A gente esquece até felicidade!/ Quando existe autoridade de verdade/ A gente esquece até felicidade!”).
A entrada do acordeom, após a primeira vez em que a letra é cantada, é um comentário crítico, sublinhando a ilusão expressa pela letra. Mas isso acontece sem nada de explícito – o acordeom não emite um réquiem ou grita; no entanto, a insegurança é destacada contra o conteúdo da letra, isto é, da ilusão.
Na faixa seguinte, “Uma bela amizade”, essa espécie de contraponto ideológico, em que a música (nesse caso, o acordeom inicial é quase soturno, depois o violão que sucede o canto, depois, novamente, o acordeom) sublinha a precariedade da ilusão, é ainda mais desenvolvido (a letra: “Uma bela amizade/ Aqui logo começou/ Um doutor lá da cidade/ E um camponês, ai, meu amor/ Um doutor lá da cidade/ E um camponês, ai, meu amor”).
Compare-se com a décima-sexta faixa, “Amizade dominada” (“Uma bela amizade/ Aqui continuou/ Um doutor lá da cidade/ E um camponês, ai, meu amor/ Um doutor lá da cidade/ E um camponês, ai, meu amor”), cantada pela mulher do camponês que se submeteu ao mandante do assassinato de seu filho, a música agora abertamente triste, destacando o desespero – mas um desespero em volume baixo.
Qualquer leitor que entenda um pouco de música, entenderá também que eu não entendo nada de música – exceto no plano mais elementar possível, aquele que permite separar um CD do sr. Luan do CD de Marcus Vinicius. Na verdade, não sei distinguir o som de um “violão de oito cordas” do som de um “violão dinâmico”. Seria bom se todos fossem como o velho Bernard Shaw, que, segundo Thomas Mann, “quando, em 1885, William Archer viu pela primeira vez o jovem dublinense, recém-chegado a Londres, na biblioteca do Museu Britânico, encontrou-o ocupado com duas obras que vinha estudando alternadamente durante várias semanas. Eram O Capital, de Marx, e a partitura de Tristão e Isolda, de Wagner” (Thomas Mann, “Bernard Shaw: Um ensaio” in “O escritor e sua missão”, trad. de Kristina Michahelles, Zahar, 2011).
Bem, leitores, deixamos a vocês, então, a avaliação – e a fruição – do CD de Marcus Vinicius com os temas de Os Azeredo Mais Os Benevides. Não retiraremos o vosso prazer com mais considerações específicas. Porém, nem por isso deixaremos de fazer mais algumas considerações gerais.
FATORES
Em julho de 1945, Graciliano Ramos publicou um pequeno artigo, O fator econômico no romance brasileiro. Até ler o que Marcus Vinicius escreveu sobre o seu trabalho, não nos tinha ocorrido estender as considerações de Graciliano à outras formas de arte, além da literatura.
Diz o autor de “Vidas Secas”:
“A leitura dos romances brasileiros, até dos melhores, quase sempre nos dá a impressão de que os nossos escritores não conseguem fazer senão trabalhos incompletos. Sem nos deixarmos vencer pelo pessimismo que nos leva a olhar com desconfiança a obra de arte nacional, pessimismo às vezes interrompido bruscamente por acessos de exaltação ingênua, meio infantil, devemos reconhecer que nos trabalhos de ficção brasileiros falta alguma coisa”.
Porém, continua ele, “a mania indígena de se comparar o literato cá da terra a um figurão estrangeiro, hábito inocente e antigo, sempre em moda, é apenas um meio de fazer crítica e não deve ser tomada a sério”.
Apesar disso, “faltava-nos (…) e ainda hoje nos falta, a observação cuidadosa dos fatos que devem contribuir para a formação da obra de arte. (…) Parece-nos que novelistas mais ou menos reputados julgaram certos estudos indignos de atenção e imaginaram poder livrar-se deles. Assim, abandonaram a outras profissões tudo quanto se refere à economia. Em consequência disso, fizeram uma construção de cima para baixo, ocuparam-se de questões sociais e questões políticas, sem notar que elas dependiam de outras mais profundas, que não podiam deixar de ser examinadas”.
É interessante como esse retrato dos escritores brasileiros daquela época – Graciliano frisa duas exceções: José Lins do Rego e Jorge Amado – se parece com esses velhos rapazes e velhas moças do meio artístico que, como no poema de Baudelaire, parecem viver em algum “Eldorado banal”, aderindo ao “volta Dilma” (se tivessem aderido ao “fica Temer”, seria a mesma coisa), sem saber do que estão falando.
Na História do Brasil houve pouquíssimos governos tão reacionários, tão direitistas, tão subservientes às matrizes imperialistas (melhor seria dizer: à matriz imperialista) quanto o governo Dilma, do qual o governo Temer, do ponto de vista político, econômico, ideológico, moral, e, inclusive, administrativo, é uma continuação.
Isso é óbvio, inclusive, para a maioria das pessoas do povo brasileiro, ainda que a clareza a esse respeito varie de indivíduo para indivíduo.
Porém, boa parte dos artistas parece não tê-lo percebido. Como diz Graciliano, “ocupados com a política, de ordinário esquecem a produção, desdenham o número, são inimigos de estatísticas”.
Procurando os motivos de tal alienação, Graciliano observa que “são exatamente cuidados excessivos de ordem econômica que lhes tiram o gosto de observar os fatos relativos à produção”.
Mas o que é, a rigor, a preocupação com a economia, com o mundo da produção?
“Para sermos completamente humanos, necessitamos estudar as coisas nacionais, estudá-las de baixo para cima. Não podemos tratar convenientemente das relações sociais e políticas, se esquecemos a estrutura econômica da região que desejamos apresentar”.
E conclui ele: “Acho que o artista deve procurar dizer a verdade” (Graciliano Ramos, “O fator econômico no romance brasileiro” in “Linhas Tortas”, 13ª edição, Record, 1986, pp. 253-259).
POR FIM
Há algo de heroico na atitude de Graciliano Ramos, ao não se conformar com a situação de uma cultura nacional que ignora a própria nação – pois é isto o que constitui o fator econômico: a produção dos meios de vida do povo dessa nação. Não existe outra cultura que não seja cultura nacional. Sem base econômica, ela torna-se a sua negação. Quem nega a cultura nacional, nega não somente a Nação, mas a própria cultura.
É neste sentido que o heroísmo cultural é imprescindível. O CD de Marcus Vinicius é uma obra heroica. E não chamarei o autor de herói cultural porque ele não vai gostar. Além do que, qual a novidade nisso?