CARLOS LOPES
(HP, 17/02 a 10/03/2017)
O livro de Maria Graham, “Diário de uma viagem ao Brasil e de uma estada nesse país durante parte dos anos de 1821, 1822 e 1823”, publicado em Londres, em 1824, é uma das fontes mais importantes sobre a época da Independência brasileira (para este artigo, utilizamos a tradução de Américo Jacobina Lacombe, publicada em 1956 na coleção Brasiliana, da Companhia Editora Nacional, cotejada com o original, “Journal of a voyage to Brazil, and residence there during part of the years 1821, 1822, 1823”, printed for Longman, Hurst, Rees, Orme, Brown, and Green, Paternoster-Row; and J. Murray, Albermale-Street, London, 1824”).
A autora, filha de um almirante inglês (na verdade, escocês), esteve no Brasil, pela primeira vez, acompanhando o marido, capitão Thomas Graham, comandante da fragata HMS Doris. Depois da morte do marido, no Chile, ela voltou ao Brasil, onde tornou-se amiga da Imperatriz Leopoldina e, brevemente, professora de sua filha mais velha, Maria da Glória – a futura rainha Maria II, de Portugal (a correspondência entre Maria Graham e a Imperatriz Leopoldina foi publicada em 1940, nos Anais da Biblioteca Nacional, Volume LX, que corresponde a 1938).
Maria Graham, ao voltar para seu país, casou-se com Augustus Callcott, excelente pintor – que depois se tornaria Sir Callcott, fazendo de Maria, Lady Callcott.
Ao falecer, em 1842, aos 57 anos, Maria deixou 14 livros publicados, a maior parte sobre suas impressões de viagem a várias partes do mundo, da Índia ao Chile, passando pelo Brasil e as Ilhas Sandwich, além de obras historiográficas e estudos sobre arte.
Ela escrevia muito bem – e tinha uma cultura completamente excepcional para as mulheres da época. Mas, voltemos à sua estada no Brasil.
Existem acontecimentos em que o principal registro histórico – além de ser o mais interessante – está na obra de Maria Graham. Por exemplo, a revolta dos pernambucanos, reunidos na Junta de Goiana, contra o capitão-general Luís do Rego, em 1821, da qual a autora foi, como se dizia antigamente, testemunha ocular (em livro, existe apenas outra fonte direta, citada por Oliveira Lima em seu “O Movimento da Independência”, de 1922: o relato de Mena Calado, um dos líderes da revolta contra o sátrapa português; porém, a primeira edição deste livro foi destruída pelo autor, indignado com os erros tipográficos, tornando raríssima a obra: somente dois ou três exemplares escaparam da fúria de Calado – e desconhecemos reedições).
Mais interessante ainda – para os tempos de hoje – é o encontro de Maria Graham com Maria Quitéria, a heroína da Guerra da Independência na Bahia, que a autora chama de Maria de Jesus (o nome completo da heroína era Maria Quitéria de Jesus Medeiros). Eis a nota no “Diário”:
“29 de agosto [de 1823] — Recebi hoje uma visita de Dª Maria de Jesus, jovem que se distinguiu ultimamente na guerra do Recôncavo. Sua vestimenta é a de um soldado de um dos batalhões do Imperador, com a adição de um saiote escocês, que ela me disse ter adotado da pintura de um escocês, como um uniforme militar mais feminino. Que diriam a respeito os Gordons e os Mac Donalds? O traje dos velhos celtas, considerado um atrativo feminino?!
“Seu pai é um português, chamado Gonçalves de Almeida, e possui uma fazenda no rio do Pex [Peixe], na paróquia de S. José, no Sertão, cerca de 40 léguas para o interior de Cachoeira. Sua mãe era também portuguesa; contudo as feições da jovem, especialmente os olhos e a testa, apresentam os mais acentuados traços dos índios.
“Seu pai tem outra filha da mesma mulher, depois de cuja morte ele se casou de novo; a nova mulher e as crianças faziam com que a casa não fosse muito confortável para D. Maria de Jesus.
“A fazenda do Rio do Peixe é principalmente de criação, mas o proprietário raramente sabe ou conta as suas cabeças. O Senhor Gonçalves, além do gado, planta algum algodão, mas como no sertão passa às vezes um ano sem chover, a produção é incerta. Nos anos de chuva ele pode vender quatrocentas arrobas, por 4 a 5 mil réis; nas estações secas dificilmente pode colher acima de sessenta ou setenta arrobas, que podem alcançar de seis a sete mil réis. Sua fazenda emprega vinte e seis escravos.
“As mulheres do interior fiam e tecem para sua casa, como também bordam lindamente. As moças aprendem o uso de armas de fogo, tal como seus irmãos, seja para caçar seja para defenderem-se dos índios brabos.
“Dª Maria contou-me diversas particularidades relativas a suas próprias aventuras. Parece que, logo no começo da guerra do Recôncavo, percorreram o país em todas as direções emissários do governo para inscrever voluntários; que um desses chegou um dia à casa de seu pai, na hora do jantar; que seu pai o havia convidado a entrar e que depois da refeição ele começou a falar sobre o objetivo de sua visita.
“Começou ele a descrever a grandeza e as riquezas do Brasil e a felicidade que poderia alcançar com a Independência. Atacou a longa e opressiva tirania de Portugal e a humilhação em submeter-se a ser governado por um país tão pobre e degradado. Ele falou longa e eloquentemente dos serviços que Dom Pedro prestara ao Brasil, de suas virtudes e nas da Imperatriz, de modo que, afinal, disse a moça : ‘Senti o coração ardendo em meu peito’.
“Seu pai, contudo, não partilhava em nada seu entusiasmo. Era velho, e disse que nem poderia juntar-se ao exército, nem tinha um filho para ali enviar; e quanto a dar um escravo para as tropas, que interesse tinha um escravo em bater-se pela independência do Brasil? Ele esperaria com paciência o resultado da guerra e seria um pacífico súdito do vencedor.
“Dona Maria escapuliu então de casa para a casa de sua irmã, que era casada e morava a pequena distância. Recapitulou o grosso do discurso do visitante e disse que desejaria ser homem para poder juntar-se aos patriotas. ‘Pelo contrário’, disse a irmã, ‘se não tivesse marido e filhos, por metade do que você diz, eu me juntaria às tropas do Imperador’. Isto foi bastante.
“Maria obteve algumas roupas pertencentes ao marido da irmã, e como seu pai estava para ir a Cachoeira a fim de negociar algum algodão, resolveu aproveitar a ocasião e partir atrás dele, bastante perto para ter proteção em caso de acidente na estrada, bastante longe para escapar de ser presa.
“Afinal, à vista de Cachoeira, parou; e saindo da estrada, vestiu-se à moda masculina e entrou na cidade. Isto foi sexta-feira. No domingo ela arranjou as coisas tão bem que já havia entrado no Regimento de Artilharia e montado guarda. Ela era muito fraca, porém, para esse serviço e transferiu-se para a infantaria, onde está agora. Foi enviada para aqui, creio eu, com despachos, e para ser apresentada ao Imperador que lhe deu o posto de alferes e a ordem do Cruzeiro, cuja condecoração ele próprio impôs em sua túnica.
“Ela é iletrada, mas inteligente. Sua compreensão é rápida e sua percepção aguda. Penso que, com educação, ela poderia ser uma pessoa notável. Não é particularmente masculina na aparência; seus modos são delicados e alegres. Não contraiu nada de rude ou vulgar na vida do campo e creio que nenhuma imputação se consubstanciou contra sua modéstia. Uma coisa é certa: seu sexo nunca foi sabido até que seu pai requereu a seu oficial comandante que a procurasse.
“Não há nada de muito peculiar em suas maneiras à mesa, exceto que ela come farinha com ovos ao almoço e peixe ao jantar, em vez de pão, e fuma charuto após cada refeição, mas é muito sóbria” (Maria Graham, “Diário de uma viagem ao Brasil e de uma estada nesse país durante parte dos anos de 1821, 1822 e 1823”, trad. e notas de Américo Jacobina Lacombe, CEN/Brasiliana, 1956, pp. 329-331).
Porém, como Maria Quitéria – ou por quê –, vinda dos sertões e do Recôncavo Baiano, foi visitar Maria Graham?
Elas tinham um amigo comum: José Bonifácio de Andrada e Silva. Como transparece pela seguinte anotação do “Diário”:
“24 [de setembro de 1823] — Tendo recebido, agora, o retrato que o Sr. Erle [Augustus Earl], talentoso jovem artista inglês, pintou da Senhora Alferes Dona Maria de Jesus, tomei-o para mostrar a seu amigo e protetor José Bonifácio de Andrada e Silva.”
Em seguida, Maria Graham, na mesma anotação, esboça um retrato de José Bonifácio, na época já demitido do Ministério e em oposição a D. Pedro I:
“Não há lugar em que possa passar meia hora com mais prazer e proveito do que na família deste ex-ministro. Sua mulher é de origem irlandesa, uma O’Leary, senhora da maior amabilidade e gentileza, realmente admiradora do valor e do talento do marido; e todos os sobrinhos e outros parentes que ali encontro, revelam-se superiores, em educação e conhecimentos, à maior parte das pessoas que vejo.
“Mas é o próprio José Bonifácio que me desperta maior interesse. É um homem pequeno, de rosto magro e pálido. Suas maneiras e sua conversa impressionam logo o interlocutor com a ideia daquela atividade mental incansável e que mais parece consumir o corpo em que habita.
“A primeira vez que o vi na intimidade foi quando deixou de ser ministro. Suas ocupações, antes desse tempo, deixavam-lhe pouco tempo para a sociedade privada. Estava curiosa por ver a retirada de um homem público. Encontrei-o cercado de moços e crianças, algumas das quais ele punha nos joelhos e acariciava; via-se facilmente que era muito popular entre a gente pequena. Para comigo, como estrangeira, foi da maior cerimônia ainda que delicadamente polido, e conversou sobre todos os assuntos e de todos os países. Ele visitou a maior parte dos da Europa.
“Sua biblioteca estava bem provida de livros em todas as línguas. A coleção de química e de mineração é particularmente extensa e rica em autores suecos e alemães. Estes são realmente assuntos de peculiar interesse para o Brasil e foram naturalmente de primeira plana para ele. Mas seu encanto é a literatura clássica. Ele próprio é poeta, e não de ordem inferior. Talvez meu conhecimento de português não me dê autoridade para julgar quanto ao veículo da linguagem de sua poesia; mas se a elevação do pensamento, as combinações novas e belas, a aguda sensibilidade e o amor da beleza e da natureza são essenciais à poesia, os poemas que ele me leu hoje possuem tudo isso. Há um, particularmente, A Criação da Mulher, brilhante como o sol sob o qual foi escrito, e tão puro quanto sua luz. Talvez alguns de seus méritos derivem de sua maneira de ler, que não sendo aquilo que se chama uma bela leitura, é cheia de caráter e de inteligência.
“José Bonifácio deu-me hoje uma tradução de Meleagro que me parece muito bonita. Foi escrita em Lisboa em 1816 e dois ou três exemplares impressos por um de seus amigos. O último destes é agora meu” (op. cit., pp. 340-342).
É não apenas interessante, mas também algo belo, como Maria Graham compara, logo a seguir, a situação de Bonifácio, fora do poder, injustiçado, próximo à deportação, com a sua própria:
“Ninguém diga que ele está muito infeliz para poder receber qualquer consolo. Eu, por exemplo, estou sozinha, viúva, em terra estranha, minha saúde está fraca e meus nervos irritados, não tenho riqueza nem posição, sou forçada a receber favores dolorosos e chocantes com os meus hábitos e preconceitos antigos e topo muitas vezes com a impertinência dos que pretendem aproveitar-se de minha situação solitária ; mas estou certa, contudo, de que tenho mais meias horas, não ouso mais dizer horas, de verdadeiro prazer, e menos dias de verdadeira miséria, do que a metade dêsses que o mundo considera felizes. Agradeço a Deus, que me deu um temperamento que sente estranhamente os agravos, mas, ao mesmo tempo, dotou-me com igual capacidade para alegria. E é um prazer encontrar almas que podem compreender e comunicar-se com a nossa, travar conhecimento ocasionalmente com pessoa de hábitos de pensar semelhantes e que, quando os negócios do mundo dão um pouco de folga, procuram distração pelos mesmos caminhos. Este o prazer que eu tenho gozado mais frequentemente do que poderia esperar, tão longe da culta Europa. Um ou dois de meus amigos são, realmente, como joias caras — não para ser usadas todos os dias, mas há alguns de metal autêntico que, mesmo aqui, desarmam a maldade deste mundo cansativo de metade de seu ferrão” (p. 343-344).
Maria Graham não era especialmente admiradora dos ingleses – não os ingleses da Inglaterra, mas daqueles que foram enriquecer em outros países. No dia 28 de outubro de 1821, um domingo, ela anotou, sobre os ingleses que moravam na Bahia:
“…. A sociedade dos ingleses é exatamente o que se poderia esperar: alguns comerciantes, não de primeira ordem, cujas reflexões giram em torno do açúcar e do algodão, com exclusão de todos os assuntos públicos que não tenham referência direta com o comércio particular, e de todas as matérias de ciência ou informação geral. Nenhum sabia o nome das plantas que cercam a própria porta; nenhum conhecia a terra dez léguas além de Salvador; nenhum sequer me sabia informar onde ficava a bela argila vermelha da qual se faz a única indústria aqui existente: a cerâmica. Fiquei, enfim, inteiramente desesperada com esses fazedores de dinheiro destituídos de curiosidade.
“Estou sendo, talvez, injusta para com meus patrícios. Ouso pensar que há muitos que me poderiam ter fornecido estes dados, mas o fato é que nenhum o fez, como também é verdade que pedi estas informações a todos com que me encontrei. Talvez porque uma mulher não é considerada digna de saber alguma cousa através desses personagens do comércio.
“(…) De um modo geral, a sociedade está aqui em nível muito baixo entre os ingleses. Boa comida e boa bebida eles se podem permitir, já que a carne, o peixe e as aves são boas, as frutas e as diversas verduras excelentes e o pão, dos melhores.
“Seus escravos — porque na verdade todos os ingleses se servem de escravos — comem uma espécie de pirão de mandioca com pedacinhos de carne seca espalhados dentro, ou, como grande luxo, frangos assados, e isto é, ao que parece, a alimentação principal das classes baixas, mesmo dos habitantes livres. No tempo das frutas, as abóboras, as jacas, os cocos e os melões quase tomam o lugar da mandioca” (cf. Maria Graham, “Diário de uma viagem ao Brasil e de uma estada nesse país durante parte dos anos de 1821, 1822 e 1823”, trad. e notas de Américo Jacobina Lacombe, CEN/Brasiliana, 1956, pp. 162-163).
Um ano depois, a 27 de dezembro de 1822, ela descreve um baile, na casa de um negociante inglês. Logo após escrever que os habitantes mais “divertidos” do Brasil “tanto quanto pude ver até agora, são certamente os negros que transportam as frutas e verduras para vender” e referir-se à sua amizade com um deles, ela diz:
“… Estive até uma hora da noite em ambiente muito diferente: um baile dado pelo Sr. B., respeitável comerciante inglês. (…) Quanto aos ingleses, que posso dizer? São tais e quais todo o mundo os vê em sua terra, na classe a que pertencem. E as senhoras, muito boas pessoas, sem dúvida, precisariam da pena de Miss Austen [Jane Austen] para torná-las interessantes” (op. cit., p. 183).
A CONFEDERAÇÃO
Em 1824 – portanto, depois de publicar seu livro – a autora voltou ao Brasil. Trazia um exemplar da obra, no qual fez várias anotações, com intenção de ampliá-la. No entanto, por alguma razão, não o fez.
Foi esse exemplar pessoal de Maria Graham que Oliveira Lima, um dos nossos maiores historiadores da Independência, encontrou em Londres, no início do século XX, na Casa Edwards, uma espécie de sebo de livros raros, ou antiquário para bibliófilos, da capital inglesa (cf. Oliveira Lima, “Mrs. Graham e a Confederação do Equador”, Revista do Instituto Arqueológico e Geográfico Pernambucano, Vol. XII, 1906, pág. 306 – inserido como apêndice da tradução cit. do livro de Maria Graham, 1956).
O interesse de Oliveira Lima – que era pernambucano – esteve, nesse artigo, como diz seu título, sobretudo no testemunho de Maria Graham sobre a Confederação do Equador.
Ela era amiga do almirante Cochrane, comandante da força naval do Império que bloqueava Recife e conhecia – por sua estada anterior em Pernambuco, quando presenciou, em 1821, a revolta contra o capitão-general português Luís do Rego – o presidente da Confederação do Equador, Manuel Carvalho Paes de Andrade, “que fala bem inglês e parece ser homem notável” (M. Graham, op. cit., apêndice, p. 389, anotação de 19/08/1824; segundo Rodolfo Garcia – no estudo que fez para a publicação, pela Biblioteca Nacional, da correspondência entre a Imperatriz Leopoldina e Maria Graham – o líder da Confederação do Equador fora educado na Inglaterra).
Em 1824, ela desembarcou em Recife, tomada pela revolução, e encontrou o presidente da Confederação:
“Entreguei-lhe um pacote de proclamações de Lorde Cochrane”, diz Maria Graham sobre seu encontro com Paes de Andrade, “e procurei convencê-lo de que o número e poder das forças imperiais eram tais que nada se poderia esperar da persistência em seus planos, senão a derrota, a miséria e o desperdício da vida humana que, eu estava certo, ele e todos os homens de bem, desejariam evitar. Disse-lhe que não obstante a sentença previamente pronunciada contra ele e seus partidários e as proclamações espalhadas pelo exército, estava certa de que, se ele confiasse no almirante e se rendesse logo a ele, poderia ter por garantidas a salvação e fuga de todos. Despedi-me então dele e prometi procurá-lo na manhã seguinte”.
Provavelmente, ela estava errada: as ordens de D. Pedro I, de estabelecer “comissões militares” para julgamento sumário e execução dos rebeldes, contra a vontade, e passando por cima, do comandante das tropas que combatiam a Confederação – o então brigadeiro Francisco de Lima e Silva, que seria regente após a abdicação de D. Pedro I, e era pai do futuro Duque de Caxias – não indicam que a proteção de Cochrane fosse suficiente para que Paes de Andrade tivesse um destino diferente de Frei Caneca (sobre o conflito entre Pedro I e Francisco de Lima e Silva a respeito das execuções de rebeldes da Confederação do Equador, ver Adriana Barreto de Souza, “Duque de Caxias: o homem por trás do monumento”, Civ. Bras., 2008, pp. 138 e segs).
No entanto, Maria Graham tentou entender a posição de Paes de Andrade. Depois de descrever os acontecimentos políticos após a deposição de Luís do Rego, em 1821, ela escreve:
“A província queixava-se por ter feito e sofrido muito pela causa da independência; por ter sido a primeira a habilitar a Bahia a resistir e a expulsar os pés de chumbo [os portugueses], e, contudo, serem todas as suas rendas drenadas para a Capital, estarem suas obras públicas abandonadas, e seus funcionários, ou mantidos inativos na corte, ou demitidos bruscamente; enfim por não serem cumpridas as promessas de reforma em todos os seus departamentos.
“Nestas circunstâncias Manuel de Carvalho Paes de Andrade tornou-se presidente do Conselho de Governo. Durante muito tempo suas proclamações e seus documentos públicos só pediam ao Imperador que demitisse todos os portugueses da Europa do seu conselho e valimento e modelasse uma constituição liberal com assistência de sua Assembleia Constituinte. Mas a dissolução dessa Assembleia, de um modo arbitrário, exacerbou os sentimentos do partido a um grau tal que os levou a quebrar a prudência e desprezar as conveniências em relação ao Imperador. Ele e o poder imperial entraram a ser desafiados e as províncias vizinhas conclamadas a apoiar os pernambucanos na afirmação de seus direitos como homens e como cidadãos. [José Pereira] Filgueiras, chefe cearense (que colaborou com lorde Cochrane na expulsão dos europeus do Maranhão), está em marcha para auxiliar a revolução. Dizem que a Paraíba está intimidada pela força republicana de Goiana e até o Piauí está disposto a aderir. Entrementes feriram-se escaramuças entre as tropas que marcham para o sul e os imperiais, nas quais os pernambucanos se declaram sempre vitoriosos e espalham algumas bandeirolas e estandartes, mas choram a perda de Pitanga, o mais bravo e o melhor comandante que tinham.
“Entretanto o Governo Imperial estabelecera o bloqueio do porto por meio dos navios, sob o comando do capitão Taylor, e havia grande aflição devido à falta de farinha, que se tornara mais escassa neste ano por causa de uma enchente extraordinária do Capibaribe, que destruíra grande quantidade de plantações de mandioca.
“Mas lamento dizer que provocou enorme indignação entre o povo o comportamento do capitão Taylor, num ataque noturno ao porto, utilizando o nome da Doris, depois aí permanecendo no dia seguinte. Diversas pessoas foram mortas” (pp. 390-391).
O ambiente político no qual eclodiu a Confederação do Equador é descrito com precisão:
“Considera-se o Imperador um joguete nas mãos de seu pai e, portanto, em princípio, português. Por causa disso diversos pacíficos comerciantes portugueses foram mortos e se qualquer deles, assustado, corre na rua é tido como suspeito e perseguido, com poucas possibilidades de escapar.
“Os barcos da Doris foram atacados ao virem para compras e todas as suas frutas etc., tomadas, já que o povo não quer acreditar que os ingleses não ajudam os imperiais”.
O povo tinha razão em não acreditar. Mas Recife, sob a revolução, não oferece perigo para Maria Graham – ou, como disse algum estudioso, ela era uma pessoa muito corajosa:
“A destruição do banco e a drenagem natural do pântano entre Olinda e Recife, plano elaborado pela Junta de 1822, para transformar aquele espaço em plantações de arroz, poderia ter sido facilmente levado a cabo. Mas o mau estado do governo tem-no impossibilitado.
“A velha ponte de Maurício [de Nassau] está agora completamente mudada. Quando aqui estive pela última vez, possuía fileiras de lojas de cada lado, que pagavam uma porcentagem ao governo. Por isso, quando se soube que o estado da ponte oferecia perigo, por declaração do engenheiro, e que seria necessário mudar as lojas, o tesoureiro recusou-se a concordar por causa da baixa da renda. Começaram, assim, a brigar e discutir até que um dia ao cruzar a ponte, um carro, espatifou-se sob ela e arrastou mercadorias e tudo dentro d’água. É agora uma ponte de madeira adequada.
“Vi algumas raras casas particulares novas, especialmente uma, no fim da ponte da Boa Vista, construída por Antônio Coelho, mulato que há ainda poucos anos só possuía dois negros e um cavalo para transportar, a ele e à senhora, para o interior. É hoje um dos mais ricos plantadores do país.
“Há vagos planos para se começar a fabricar potassa, para o que não há nada melhor do que os arbustos das florestas virgens deste país, e sua quantidade seria notável”.
Entretanto, suas gestões com Paes de Andrade não foram bem sucedidas:
“… procurei de novo Carvalho, na esperança de que meus apelos pudessem ainda poupar o derramamento de sangue. Recebeu-me com a maior polidez, mandou chamar a filha para ver-me e fez servir frutas e vinho. Deu-me alguns mapas e planos, mostrou-me a posição das tropas, e disse-me que, dentro de um mês, esperava ter tudo pronto. Olhei para algumas de suas tropas, — meninos de dez anos e negros de cabeça branca. Declarou-me que ele e seu partido nunca cederiam senão nos seguintes termos: que a assembleia constituinte, com os mesmos membros que a compunham, seria convocada de novo; que a reunião se daria em qualquer lugar menos no Rio de Janeiro, fora do alcance das tropas imperiais. Que ele estava resolvido a tornar o Brasil livre, ou morrer no campo da glória”.
Maria Graham, próxima à família imperial desde sua viagem anterior, resolveu defender (para o presidente da Confederação do Equador!) os atos do imperador – inclusive o mais discutível deles, o fechamento da Constituinte, que implicou na prisão e exílio, inclusive, dos Andradas, de quem ela também fora próxima, por sua amizade com José Bonifácio. Diz ela:
“Tomei a liberdade de contradizê-lo e mostrar-lhe quão imprudente havia sido a Assembleia e sustentei o direito do Soberano de dissolvê-la pela circunstância dela se declarar permanente etc. Discorremos longamente sobre política abstrata. Voltei ao assunto já tratado do perigo que pessoalmente corria o Presidente, e a responsabilidade que assumia etc. etc., ao que, em geral, mostrou-se ele sensível, e profundamente impressionado com o caráter honrado do Almirante. Se visse perdida sua causa, se poria nas mãos de Lord Cochrane e aí se julgaria seguro. Apresentou-me então às filhas. Considerei como delicadeza e sentimento a sua maneira de proceder. Fiquei aflita por deixá-lo sem realizar o que esperava. Ai de mim, os homens serão sempre insensíveis ao sangue!”
Paes de Andrade, realmente, exilou-se na Inglaterra após a derrota da Confederação do Equador. Voltou ao Brasil após a queda de D. Pedro I, e, em maio de 1835, candidato mais votado da “lista tríplice”, assumiu a cadeira de senador vitalício pela Paraíba (uma curiosidade: o terceiro candidato a senador dessa mesma “lista tríplice” era Cipriano Barata, o revolucionário de todas as revoluções, desde a Conjuração Baiana de 1798). Paes de Andrade morreu no Rio de Janeiro, em 1855, proprietário de terras, senador e coronel da Guarda Nacional (cf. Sacramento Blake, “Diccionario Bibliographico Brazileiro”, Sexto Volume, Imprensa Nacional, 1900, p. 46; “Noticia dos Senadores do Imperio do Brazil”, Imprensa Nacional, 1886, p. 218; e Carlos F. de Souza Fernandes, “Senado Brazileiro”, Tip. Ao Luzeiro, Rio, 1912).
Apesar de, em extensão, no livro de Maria Graham, D. Pedro I ocupar o papel principal entre os personagens históricos brasileiros (ela é autora, também, de um resumo biográfico de D. Pedro, escrito logo após a morte do primeiro imperador, em 1834), o mais notável, e que aparece com maior intensidade, é, sem dúvida, José Bonifácio de Andrada e Silva.
Três dias depois da nomeação, a 16 de janeiro de 1822, do novo Ministério, pelo então príncipe regente, ela escreve:
“Hoje os novos ministros chegaram de São Paulo, o primeiro dos quais, tanto em posição quanto em talento, é José Bonifácio de Andrada e Silva. Segundo o juízo que dele faz o povo aqui, diria que Cowper o descreveu quando disse:
“Os grandes postos exigem/ grandes talentos. E Deus dá a todos os homens/ A virtude, temperamento, a compreensão, gosto,/ Que os elevam para a vida e deixa-os ocupar/ Exatamente o nicho que lhes ordenava preencher./ Ao libertador de uma terra injuriada/ Concede uma língua para nela expandir-se, coração/ Para senti-la e coragem para corrigir-lhe os erros” (pp. 208-209).
Os traços biográficos de Bonifácio, que ela inclui, são imprecisos, mas refletem a popularidade do novo ministro entre os brasileiros da época:
“Foi enviado ainda moço do Brasil para estudar em Coimbra, onde ficou doente quando da partida do rei de Lisboa. Depois, durante o tempo dos franceses, não conseguiu meios de voltar à terra natal. Mas logo que se deu a primeira reação nos distritos em torno do Porto e Coimbra, pôs-se à frente dos estudantes da Universidade em sua bem sucedida resistência a Junot; depois serviu na campanha contra Soult. Quando voltou a Lisboa, creio eu, entrou para o exército regular, pois que após estar em armas contra Massena, vejo que no fim da guerra tinha a graduação de tenente-coronel, na qual voltou ao Brasil em 1819. Mas a sua estada na Europa não foi gasta em assuntos de guerra: viajou e ficou amigo de várias personalidades mais notáveis da Inglaterra, França e Itália e contraiu uma estima particular em relação a Alfieri. O objeto de suas viagens era antes ver e aprender o que pudesse ser útil à sua própria terra, do que o meio-prazer de visitar as diversas partes do mundo. Estou informada de que se dedicou especialmente aos ramos da ciência que podem desenvolver a agricultura e a mineração do Brasil. Um de seus irmãos, Martim Francisco, possui um pouco menos de talento. Sua família, seu caráter e a estima de que gozam, pesam não só a favor deles mas do governo que os emprega”.
FICO
A situação, após D. Pedro nomear o novo Ministério, era muito tensa:
“Dobraram-se as guardas e patrulhas nas estradas pelas quais eles e o veterano general Curado alcançaram o Rio, porque se temeu que os portugueses, que desde o dia 12 se haviam separado completamente dos brasileiros, pudessem impedir sua chegada. Mas tudo correu tranquilo” (pp. 209-210, grifo nosso).
A última menção é aos acontecimentos que sucederam imediatamente ao “Dia do Fico”, 9 de janeiro de 1822. Neste dia, embarcada na fragata HMS Doris, Maria Graham escreveu:
“O dia de hoje, espera-se que seja decisivo no destino do Brasil. É preciso, porém, começar pela chegada de uma mensagem das Cortes de Lisboa ao Príncipe, intimando-o de que aprouve às ditas Cortes que ele partisse imediatamente para a Europa a fim de iniciar sua educação e empreender uma viagem incógnito pela Espanha, França e Inglaterra. Esta mensagem despertou a mais viva indignação, não somente no ânimo de Sua Alteza Real, mas no dos brasileiros de ponta a ponta do reino.
“O Príncipe está desejoso de obedecer às ordens do pai e das Cortes, mas, ao mesmo tempo, não pode deixar de sofrer, como homem, a inconveniência da mensagem, vendo-se, dessa maneira, compelido a voltar a casa, especialmente sendo-lhe proibido levar consigo quaisquer guardas, ao que parece por temerem que elas tenham contraído demasiada dedicação à sua pessoa.
“Os brasileiros consideram este passo como uma preliminar para extinguir neste país os tribunais de justiça que, durante quatorze anos, se mantiveram aqui, transferindo-se assim as causas para Lisboa, por cujo meio o Brasil será de novo reduzido à condição de uma colônia dependente, em vez de gozar de direitos e privilégios iguais aos da mãe-pátria, o que é uma degradação a que êles não estão dispostos, de maneira alguma, a se submeter” (p. 193).
Em seguida, ela transcreve, na íntegra, a carta do governo de São Paulo, escrita por José Bonifácio, ao príncipe regente, datada de 24 de dezembro de 1821. A carta é uma obra-prima não somente política, mas psicológica. Imaginemos D. Pedro lendo as seguintes palavras:
“… sim, Augusto Senhor, V.A.R. [Vossa Alteza Real] deve ficar no Brasil, quaisquer que sejam os projetos das Cortes Constituintes, não só para nosso bem geral, mas até para a independência e prosperidade futura do mesmo Portugal. Se V.A.R. estiver (o que não é crível) pelo deslumbrado e indecoroso decreto de 29 de setembro, além de perder para o mundo a dignidade de homem e de Príncipe, tornando-se escravo de um pequeno número de desorganizadores, terá também que responder, perante o Céu, do rio de sangue, que de certo vai correr pelo Brasil com a sua ausência; pois seus povos, quais tigres raivosos, acordarão de certo do sono amodornado em que o velho despotismo os tinha sepultado, e em que a astúcia de um novo maquiavelismo constitucional os pretende agora conservar”.
Desde o final do ano anterior (1820), as Cortes de Lisboa haviam, por decreto, retalhado o país. As várias províncias deveriam obedecer ordens diretamente de Lisboa, ignorando o governo do Rio de Janeiro. O Pará e a Bahia – e, depois, Minas e o próprio Rio de Janeiro, apesar da presença de D. Pedro – estabeleceram juntas de governo independentes do regente, ou seja, dependentes de Lisboa.
Como frisou Oliveira Lima – ou, também, Tobias Monteiro (“História do Império: A Elaboração da Independência”) e Octávio Tarquínio de Souza (“História dos Fundadores do Império do Brasil”) – em 1821 havia, entre os brasileiros, a ilusão de que as Cortes de Lisboa, por surgirem de uma revolução, seriam mais benéficas às províncias que o governo do príncipe.
Essa ilusão acabou no último trimestre do ano, quando os decretos das Cortes deixaram claro que os liberais da Revolução do Porto tinham como plano, para revitalizar Portugal, quase exangue após as guerras napoleônicas, recolonizar o Brasil.
Após transcrever a carta de São Paulo, Maria Graham comenta:
“Esta mensagem ao príncipe exprime os sentimentos de toda a região meridional do Brasil e, até um certo ponto, os das capitanias setentrionais também. As últimas são, por certo, tão contrárias quanto as primeiras à transferência das cortes de justiça para Lisboa (…).
“S.A.R. não exprimiu ainda sua resolução. Os oficiais das tropas de Lisboa falam alto que ele é obrigado a cumprir o seu dever e obedecer à ordem das Cortes. Os brasileiros esperam ardentemente que ele possa ficar e alguns há que anteveem a possibilidade de se declarar ele abertamente pela independência desta terra. Qualquer que seja sua resolução, teme-se que haja muito tumulto, se não uma guerra civil” (p. 197).
No dia seguinte, a autora anotou:
“Houve ontem uma reunião da Câmara do Rio e, após uma curta deliberação, os seus membros foram em procissão, acompanhados de grande concurso de povo, ao Príncipe, com uma enérgica petição contra sua saída deste país e uma viva súplica para que ele ficasse no meio de seu fiel povo. S.A.R. recebeu-os gentilmente e respondeu que, desde que parecia ser a vontade de todos, e para o bem de todos, ele permaneceria. Esta declaração foi recebida com gritos e com entusiasmo, correspondidos com descarga de artilharia e com todos os sinais de regozijo público.
“O dia, como de costume em qualquer ocasião de interesse público, findou no Teatro. Infelizmente não pude desembarcar, contudo alguns dos oficiais o fizeram. O edifício estava iluminado. O príncipe e a princesa apareceram em grande gala no camarote real, que é no centro da sala. Foram recebidos com entusiasmo pelo povo, cantou-se o hino nacional e, no intervalo dos atos, o público chamou vários de seus oradores favoritos a fim de que falassem ao Príncipe e a todos sobre o acontecimento do dia”.
E, após relatar a atitude, deprimente para ela, dos comerciantes ingleses, que buscavam a proteção de seus negócios pelos canhões da HMS Doris:
“A linguagem dos oficiais portugueses é a mais violenta. Falam em levar o Príncipe pela força para Lisboa e fazê-lo assim obedecer às Cortes apesar dos brasileiros” (p. 200).
MOTIM
Um trecho da anotação de sexta-feira, 11 de janeiro de 1822:
“Há uma grande dose de mal-estar hoje. O comandante português das tropas, general Avilez, pediu e obteve demissão. Diz-se, talvez sem fundamento, que as queixas ao príncipe contra sua permanência aqui foram grosseiras e inconvenientes. Ouço dizer que as tropas não consentirão em sua substituição. Elas estão particularmente excitadas com a ideia de que a escolha do sucessor recairá no general Curado [Joaquim Xavier Curado, depois conde de S. João das Duas Barras], brasileiro que, ao que se diz, será chamado de São Paulo para suceder Avilez. É um veterano, que comandou com distinção em todas as campanhas da fronteira do sul, e suas ações são mais conhecidas entre seus patrícios que aquelas longínquas batalhas da Europa, de que se gabam os oficiais portugueses de todos os postos aqui, por mais leve que tenha sido a sua participação nelas”.
Sábado, 12 de janeiro de 1822: “A casa da ópera foi de novo iluminada brilhantemente. O príncipe e a princesa compareceram e foram tão bem recebidos como no dia 9. Cerca de 11 horas, porém, o príncipe foi chamado para fora de seu camarote e informado de que corpos de vinte a trinta homens das tropas portuguesas estavam percorrendo as ruas, a quebrar janelas e insultar os transeuntes em seu percurso de quartel a quartel, nos quais tudo tinha a aparência de um motim organizado.
“Ao mesmo tempo, ao chegarem as notícias desses fatos ao teatro, os espectadores começaram a se levantar para voltar a casa, quando o Príncipe, após tomar as providências necessárias, voltou ao espetáculo, e apresentando-se com a princesa, então próxima ao parto, à frente do camarote, dirigiu-se ao povo e afirmou que não havia nada de grave; que ele já havia dado ordens para reconduzir os soldados amotinados, que se haviam empenhado em briga com os negros, de volta a seus quartéis, e apelou para que não deixassem o teatro, aumentando assim o tumulto e lotando as ruas, mas que permanecessem até o fim da peça, como ele pretendia fazer. Até então, ele não tinha dúvida, tudo estaria tranquilo. A serenidade e a presença de espírito do Príncipe, sem dúvida, preservaram a cidade de muita confusão e miséria. No momento em que a ópera se acabou as ruas estavam bastante livres para permitir a cada um ir para casa em segurança.
“Entrementes as tropas portuguesas, com 700 homens, haviam marchado para o alto do morro do Castelo, que domina as principais ruas da cidade, e tendo levado com elas quatro peças de artilharia, ameaçavam saquear a cidade. As peças de campanha pertencentes aos brasileiros, que haviam ficado na cidade depois de 26 de fevereiro, haviam sido enviadas à sede habitual da artilharia, no Jardim Botânico, não havia senão uma semana, de modo que elas não temiam aquela arma. Mas ficaram desapontadas em sua expectativa de receberem a adesão por parte da tropa portuguesa aquartelada em São Cristóvão. Esta alcançava cerca de 500 homens, que alegaram ter recebido do Rei a incumbência de guardar a pessoa do Príncipe, e que não tinham mais nada que fazer, declaração que foi encarada pelos brasileiros como suspeita.
“Enquanto os portugueses se apossavam de sua nova e ameaçadora posição, os brasileiros não estavam ociosos. Todos os cavalos e burros da cidade foram requisitados; despacharam-se expressos a todos os regimentos de milícia e outras tropas do Brasil, bem como ao Quartel General da Artilharia. O Príncipe foi incansável, de modo que pelas quatro horas da manhã do dia 12 ele se encontrou à frente de uma tropa de quatro mil homens, no Campo de Sant’Ana, não somente prontos, mas ansiosos para a ação, e, ainda que deficientes quanto à disciplina, formidáveis pelo número e pela disposição.
“Os portugueses de modo algum esperavam tal prontidão e decisão. Além disso, eles não tinham levado provisões para o Morro e convenceram-se de que não seria difícil serem reduzidos pela fome em vista da imensa superioridade numérica dos que estavam no Campo de Sant’Ana. Dispuseram-se então a obedecer à ordem que lhes mandou cedo o príncipe, — de transferirem-se para a Praia Grande [Vila Real da Praia Grande – a atual Niterói], do outro lado da baía, com a condição única de conservarem as armas.
“S.A.R. desejaria colocá-los ¡mediatamente a bordo de transportes para serem conduzidos a Lisboa, mas o comandante do porto disse que não havia condução nem provisão prontas para esse fim. Tiveram, pois, de aquartelar-se na Praia Grande, até que se providenciassem estas coisas.
“Desembarquei com um oficial logo que pude, principalmente com o objetivo de ver as tropas do Campo de Sant’Ana. Em consequência, porém, da requisição dos cavalos e burros, levou muito tempo até que eu pudesse obter uma sege que me levasse ali porque estava muito quente para ir a pé. (…)
“… fomos para o Campo e encontramos os brasileiros instalados, na maior parte, em alguns prédios inacabados. Os homens, posto que franzinos, pareciam saudáveis, ativos e cheios de ânimo; seus cavalos eram os melhores que vi no país; e pode ser imaginação minha, mas deram-me a ideia de homens resolutos em seus propósitos e determinados a defender seus direitos e seus lares.
“O Campo apresentava os aspectos mais diversos. Dentro do recinto em que a artilharia fora instalada, tudo era gravidade e atenção ao trabalho; os soldados estavam alerta e os oficiais, em grupos, comentavam os acontecimentos da noite precedente e as circunstâncias do dia. Aqui e ali, tanto dentro quanto fora do círculo, estacionava um orador com seu grupo de ouvintes, atentos às discussões políticas ou arengas patrióticas.
“Na parte aberta do campo vagavam alguns soldados ou companhias inteiras, fugindo ao ardor da multidão dentro do cercado, bem como cavalos, burros e jumentos, muitos dos quais deitados, pela evidente fadiga. Vinham negros de todas as direções, carregados de capim ou milho para os cavalos, ou levando à cabeça bebida fresca ou doces para os homens. Num canto, um grupo de soldados, exaustos pela viagem e pela vigilância, jazia dormindo. Num outro, brincava um círculo de moleques. Em suma, viam-se todas as maneiras de enganar o tempo enquanto se espera por um grande acontecimento, desde aqueles que aguardavam a hora silenciosa e pacientemente, com solene temor do que poderia ocorrer, até os que simplesmente desejavam ocupar-se e enchiam o intervalo com o que poderia fazê-lo passar mais suavemente.
“Fiquei bem impressionada com o ambiente que encontrei no Campo (…). Ao voltarmos para o navio fomos detidos por algum tempo no Largo do Paço [a atual Praça XV] por uma grande massa de povo reunida para assistir à entrada da primeira guarda brasileira no Palácio, enquanto saía a guarda portuguesa em meio a grandes vivas da multidão”.
A Guerra da Independência, na Bahia, terminou a dois de julho de 1823, com a retirada, por mar, das tropas portuguesas do general Madeira, cercadas pelos brasileiros em Salvador.
O feito, comunicado a Maria Graham por uma carta do almirante Cochrane, foi registrado por ela em 17 de julho.
Mas, nesse dia, houve outro acontecimento que teria profundas repercussões na História do Brasil. A nota que ela escreve no dia seguinte é dramática:
“A cidade entrou em grande agitação hoje por se saber que o ministério dos Andradas havia caído ontem. Parece que há poucos dias, creio que a 16, um desconhecido entregou uma carta na portaria do Palácio e disse ao empregado, que a recebeu, que sua vida não estaria segura se ela não fosse entregue na própria mão do Imperador. Entregue, pois, a carta, e lida, o Imperador mandou chamar José Bonifácio. Ficaram fechados por certo espaço de tempo e o resultado da conferência foi que José Bonifácio resignou a seu cargo; o Brasil perdeu um hábil ministro e o Imperador um servidor zeloso.
“Diz-se que a carta era escrita de São Paulo e continha pelo menos 300 assinaturas de pessoas queixosas da conduta tirânica dos Andradas naquela província, particularmente por prenderem pessoas que se haviam oposto à eleição de certos membros da assembleia, e por mandarem outros para o Rio, sob vários pretextos, mantendo-os afastados das famílias.
“Estas coisas, porém, são passíveis de interpretação favorável e em tempos tão tempestuosos, é difícil julgar se foi necessário alguma severidade, ou, se, de fato, o zelo do ministro foi levado longe demais.
“Como quer que seja, a renúncia de José Bonifácio é certa, e não menos certa a de seu irmão Martim Francisco, cuja honestidade irrepreensível à frente do Tesouro não será facilmente substituída. As conjecturas, raciocínios e notícias sobre estes assuntos são naturalmente variados.
“A ideia mais geral é a de que os Andradas foram sobrepujados por um partido republicano da Assembleia que, apesar de pequeno, tem um plano traçado, e age de acordo com ele; e, o que é estranho, a queda, dizem que foi provocada por uma tentativa, por parte deles, de desembaraçarem-se dos velhos homens da monarquia.
“Moniz Tavares, homem capaz, cujo nome será lembrado nas bancadas das Cortes de Lisboa como defensor do Brasil, propôs, numa das primeiras reuniões da Assembleia, a 22 de maio, a expulsão absoluta do Brasil de todos os nascidos em Portugal. A proposta deu origem a uma acalorada discussão e foi recusada. A derrota foi o sinal para todo o partido português (e ele não é fraco). Reuniu-se aos republicanos para derrubar os Andradas e o conseguiu.
“Esta é a impressão deste negócio por parte de muitas pessoas inteligentes. Qualquer que seja o fato, a manifestação do Imperador desaprovando toda tirania, ou conivência com ela, é digna de louvor; mas quem deseje o bem do Brasil deve ter licença para desejar que homens de tal valor tivessem provado cabalmente a sua inocência e mantido suas situações” (M. Graham, op. cit., pp. 293-294).
Maria Graham transcreve, em seguida, a proclamação do imperador, datada de 15 de julho de 1823 – uma acusação, sem citar nomes, aos Andradas. Especialmente injusto é o seguinte trecho dessa proclamação:
“O despotismo, e as arbitrariedades são por mim detestadas (…). Todos podemos ser enganados; mas os monarcas poucas vezes ouvem a verdade, e, se não a procuram, ela nunca lhes aparece. Quando a chegam a conhecer, devem-na seguir; Eu a conheci, isto fiz. Ainda que por ora não tenhamos uma Constituição, pela qual nos governemos contudo temos aquelas bases estabelecidas pela razão, as quais devem ser invioláveis; são elas os sagrados direitos da segurança individual, e de propriedade, e da imunidade da casa do cidadão, — Se até aqui elas têm sido atacadas e violentadas, e violadas, é porque vosso Imperador não tinha sabido que se praticavam semelhantes despotismos, e arbitrariedade, impróprias para todos os tempos, e contrárias ao sistema, que abraçamos. — Ficai certos de que elas serão de hoje em diante mantidas religiosamente — vós vivereis felizes, seguros nos seios de vossas famílias, nos braços de vossas ternas esposas, e rodeados de vossos caros filhos. Embora incautos queiram denegrir a minha constitucionalidade, ela sempre aparecerá triunfante, qual sol dissipando o mais espesso nevoeiro. Contai comigo assim como eu conto convosco, e vereis — a democracia, e o despotismo agrilhoados por uma justa liberdade (op. cit., p. 295; devido a algumas obscuridades do texto, especialmente o trecho final, comparamos com aquele publicado em “Collecção das Leis do Imperio do Brazil de 1823 – Parte 2 – Decretos, Cartas e Alvarás”, Typographia Nacional, 1887).
Assim, D. Pedro I atribuía uma conspiração palaciana aos Andradas, exatamente no momento em que cedia a uma conspiração palaciana para demiti-los do governo.
Octávio Tarquínio de Sousa – historiador que sempre manifestou simpatia e admiração pelo primeiro imperador, ao contrário, por exemplo, de Tobias Monteiro – reconstitui o choque dos Andradas com a “camarilha” de áulicos que infestava o Palácio de São Cristóvão:
“… a roda palaciana, pelos meios habituais da insinuação, da intriga, da calúnia, da deformação voluntária dos fatos e das intenções, se entregou ao mesquinho trabalho de indispor o monarca com os ministros paulistas. Essa camarilha, composta em larga parte de portugueses, aos quais o brasileirismo nítido dos Andradas causava irritação, privava com D. Pedro de manhã à noite, vivia pronta para satisfazer-lhe todos os caprichos e adivinhar-lhe os desejos menos confessáveis” (Octávio Tarquínio de Sousa, “A Vida de D. Pedro I”, José Olympio, 1952, p. 522).
Havia, além dos portugueses – que eram comerciantes e traficantes de escravos – outra base social para a oposição aos Andradas. O próprio José Bonifácio, após a demissão, identificou-a:
“Enganei-me; mas julguei que só P. [Pedro] era o homem que podia efetuar as reformas políticas que nos convinham, firmar o Governo que requeriam nossos costumes, nossos vícios e funestas divisões e partidos” (op. cit., p. 540).
A principal dessas reformas era a abolição do escravismo (“a escravidão é o cancro que rói o Brasil”, dizia uma carta, publicada no jornal “O Espelho” em 30 de maio de 1823, assinada por “O Philantropo”, que expunha a política dos Andradas – se é que não foi escrita por um deles).
Ainda que ele mesmo não achasse possível a abolição imediata, o plano de José Bonifácio incluía, logo de início, a cessação do tráfico negreiro em dois anos. Considerando que o tráfico somente se encerrou 27 anos depois, pode-se aquilatar o que isso significava no Brasil recém independente.
O ponto de vista de José Bonifácio foi expresso em sua mensagem à Constituinte:
“… legisladores do vasto Império do Brasil, basta de dormir: é tempo de acordar do sono amortecido, em que há séculos jazem. Vós sabeis, senhores, que não pode haver indústria segura e verdadeira, nem agricultura florescente e grande com braços de escravos viciosos e boçais. Mostra a experiência e a razão que a riqueza só reina onde impera a liberdade e a justiça, e não onde mora o cativeiro e a corrupção”.
[NOTA: Somente para evitar mal entendidos, a palavra “boçal” designava, nessa época, o escravo africano que não aprendera, ainda, o português, como registra, na página 185, primeiro tomo, o famoso Diccionario da Lingua Portugueza, publicado no ano de 1789, em Lisboa, pelo brasileiro Antonio de Moraes Silva.]
O abolicionismo dos Andradas colocava contra eles, naquele momento, além dos comerciantes e traficantes portugueses, os proprietários de terra – isto é, os senhores de escravos – que dominavam internamente a economia do país.
Como, então, os Andradas acreditavam que era possível levar adiante o seu plano de reformas?
Não existe muita dúvida – até porque os escritos de José Bonifácio são claros – que eles contavam com D. Pedro I.
Maria Graham, no trecho que reproduzimos, diz que “a ideia mais geral é a de que os Andradas foram sobrepujados por um partido republicano da Assembleia”, etc. Para demonstrar essa “ideia”, refere-se ao projeto de Moniz Tavares, antigo republicano da Revolução Pernambucana de 1817. Mas ela descreve mal o projeto, como “a expulsão absoluta do Brasil de todos os nascidos em Portugal”.
Na verdade, o projeto declarava “cidadãos brasileiros todos os portugueses residentes no Brasil que tivessem dado provas não equívocas de adesão à causa da Independência e à pessoa do imperador” e “determinava por outro lado que aqueles cuja conduta parecesse suspeita, seriam expulsos do país” (cf. Octávio Tarquínio de Sousa, op. cit., p. 529, grifo nosso).
Mas não é por acaso que Maria Graham refere-se ao projeto como uma expulsão indiscriminada (“absoluta”) dos portugueses (aliás, dos “nascidos em Portugal”). Esse foi o conteúdo – ou a intenção – que o partido português lhe atribuiu, com grande grita. Se isso fosse verdade, evidentemente, incluiria o próprio imperador, que era nascido em Portugal. Moniz Tavares podia ser inábil, mas não era estúpido – nem doido.
Porém, ele não era o único inábil – nem estava em oposição aos Andradas. Com seu talento oratório e sua reconhecida coragem, Antonio Carlos de Andrada, também ex-membro da Revolução Pernambucana, e irmão dos dois então principais ministros de D. Pedro I, apoiou o projeto de Moniz Tavares, com as seguintes palavras:
“Eu por minha parte creio que a medida, odiosa como é, contudo é exigida pela necessidade. A nossa situação é nova e requer mais cuidado do que pensamos. Rodeados de portugueses, que ora são nossos inimigos, de irmãos que antes eram, à testa de quase todos os nossos estabelecimentos, esses mesmos, ainda que unidos, sempre divergentes, assim como divergem os seus dos nossos interesses, e até no ápice e sumidade da nação um ser, sim raro, e que despira todo o lusitanismo para professar de coração o genuíno brasileirismo, mas que como homem não poderá nunca sufocar de todo os gritos da sua origem, — espinhosa deve ser a nossa conduta política”.
E ainda prosseguiu Antonio Carlos:
“Sr. presidente, falemos claro, é quase impossível em regra que um português possa amar de coração uma ordem de cousas que implica a ruína de sua pátria de origem e nodoa a sua dignidade. Por mim o digo, se eu fosse português detestaria a separação e independência do Brasil”.
Qual a explicação para esse discurso de Antonio Carlos – e do apoio público de seu irmão, Martim Francisco, ministro da Fazenda, ao projeto de Moniz Tavares?
Alguns historiadores elaboraram hipóteses, mas, o que nos parece seguro é que os Andradas subestimaram a força do partido português – para não falar nos proprietários escravagistas – e sua influência junto a Pedro I. O projeto de Moniz Tavares, aliás, foi rejeitado pela Constituinte, a 26 de junho de 1823.
MARQUESA DE SANTOS
Posteriormente, nas notas manuscritas que fez, em 1824, no exemplar de seu livro, após sua publicação, Maria Graham acrescentaria, sobre a demissão de José Bonifácio:
“A história da carta, creio que é uma falsidade. A verdadeira causa do desprestígio de José Bonifácio estava na amante do Imperador e no Plácido. Foram eles que o forjaram. Suponho que estão vendidos ao partido português, sendo eles próprios pés de chumbo. O pretenso documento de São Paulo era, creio eu, uma queixa certamente assinada por muitos, mas que viera ter às mãos de José Bonifácio e nunca saíra delas”.
Na verdade, a carta era anônima. Porém, a autora está certa em apontar a amante do Imperador, Domitila de Castro, depois viscondessa e marquesa de Santos, e o barbeiro Plácido Antônio Pereira de Abreu – “factotum [faz-tudo] do Imperador, seu confidente, além de mordomo e tesoureiro da Casa Imperial, diretor da Cozinha e almoxarife da Casa das Obras”, segundo Rodolfo Garcia – como figuras-chave do complô contra os Andradas.
Mas esses eram apenas os instrumentos usados pelos inimigos dos Andradas, uma associação entre os representantes dos proprietários escravagistas e os comerciantes ou traficantes portugueses.
Sobre esses últimos, Maria Graham observa, no período posterior à demissão dos Andradas, época em que, como professora da princesa Maria da Glória, chegou a residir no Palácio de São Cristóvão:
“O partido português havia assumido tal importância em setembro de 1824 que o mais leve sinal de inteligência num ministro brasileiro o derrubaria.
Todos os oficiais do palácio, as mulheres inclusive, são portugueses ou franco-lusitanos”.
Nunca foi segredo, apesar dos esforços de alguns autores em desmenti-lo (especialmente Alberto Rangel em “D. Pedro I e a Marquesa de Santos”, livro de 1916), que a marquesa de Santos (o título foi dado a ela como uma afronta aos Andradas, que eram naturais de Santos) foi agente do que havia de mais reacionário no Primeiro Reinado – o partido português, os escravagistas, e, inclusive, os ingleses – e era bem paga para isso.
Martim Francisco, em pronunciamento da tribuna da Câmara, acusando os inimigos dos Andradas em São Paulo de estarem em conluio com as Cortes de Lisboa, diria, literalmente: “… é até notório que certa dama, então influente, recebera pingues dons para obter do monarca essa devassa”.
Domitila também era paulista, como os Andradas. Martim Francisco refere-se à anistia concedida por D. Pedro I aos participantes do que se chamou “a bernarda de Francisco Inácio”, ocorrida em 23 de maio de 1822. Essa anistia era um ato claramente contra os Andradas, que acusavam Francisco Inácio de Souza Queiroz, coronel de milícias e comerciante, e os demais membros desse movimento armado, de estarem ligados às Cortes de Lisboa – e tinham bastante razão.
Sobre a influência de Domitila e sua família, o próprio José Bonifácio escreveria:
“Quando pensava que P. [Pedro] marchava em 1823 como tinha marchado em 1822, porque tal era o seu interesse e tal parecia ser a sua vontade, logo que comecei a ser deputado e sobretudo durante a sua moléstia da queda do cavalo, comecei a desconfiar. Os meus esforços iam sendo cada vez mais infrutuosos, ou por causa de novas reações dos outros ministros e Áulicos, ou por mexericos e interesses pecuniários das Castros [grifo de José Bonifácio], o certo é que o não pude mais fixar: e todos os meus talentos e lealdade para nada valeram por causas eventuais e ridículas, que me pareciam não dever abalar a cabeça de P. Porém não adverti que um rapaz mal-educado e impetuoso não conserva equilíbrio e firmeza e é todo impaciência e furor”.
As “Castros” eram Domitila de Castro e sua irmã, Maria Benedita, que também foi amante do imperador – e mãe de um de seus filhos, Rodrigo, reconhecido no testamento de Pedro I.
José Bonifácio não esqueceria, no exílio, após a dissolução da Constituinte, a senhora Castro. Numa de suas cartas ao amigo Vasconcelos Drummond, também exilado na França, em janeiro de 1826, ele comenta a situação política no Brasil: “Quem creria possível que, nas atuais circunstâncias do Brasil, havia a grã Pata por tantos ovos de uma vez, como 19 Viscondes e 22 Barões? Nunca o João [sexto] pariu tanto na plenitude e segurança do seu poder autocrático. – Quem sonharia que a michela Domitila seria Viscondessa da Pátria dos Andradas? Que insulto desmiolado!” (cf. “Cartas Andradinas – Correspondência particular de José Bonifácio, Martim Francisco e Antonio Carlos dirigida a A. de M. Vasconcellos de Drummond”, G. Leuzinger & Filhos, 1890”, p. 14, grifo de J. Bonifácio).
E, realmente, o título de Domitila era uma afronta aos Andradas, que eram naturais de Santos.
Mas, vejamos o caso mais notório de influência da senhora Castro, porque documentado nos arquivos do Foreign Office – o Ministério das Relações Exteriores da Inglaterra.
Em 1825, chegou ao Brasil, como embaixador de Portugal, para negociar o reconhecimento da Independência do Brasil pela antiga metrópole, o inglês Sir Charles Stuart, ex-embaixador da Inglaterra em Portugal (para se ver a autonomia de Lisboa em relação a Londres…).
Ao encerrar as negociações, Stuart prestou contas ao seu chefe, que não estava em Portugal, isto é, ao ministro do Foreign Office, George Canning. Diz ele, nesse relatório: “devemos (…) à influência da senhora Domitila de Castro a remoção de um obstáculo que teria feito malograr toda a negociação”.
Esse obstáculo era a substituição da fórmula pela qual D. Pedro I era considerado “por graça de Deus e unânime aclamação dos povos, imperador constitucional e defensor perpétuo do Brasil”, por outra, onde desaparecia a “unânime aclamação dos povos”, e, em seu lugar, aparecia “segundo a Constituição do Estado”. O motivo era a não aceitação, por D. João VI, daquela fórmula, que lhe parecia excessivamente democrática (cf. Octávio Tarquínio de Sousa, “A Vida de Pedro I”, Vol. II, José Oympio, 1952, p. 638).
D. Pedro I, orgulhoso da base popular de seu reinado, recusara – e colericamente – a substituição. Somente depois que os ingleses recorreram à senhora Domitila, o imperador aceitou a modificação.
CARTAS
Se o leitor estranhar a influência da marquesa, lembramos que D. Pedro tinha apenas 25 anos e era filho de uma senhora altamente problemática, que, inclusive, sempre tudo fez para frisar sua preferência pelo filho mais novo, D. Miguel.
Em sua correspondência com a marquesa de Santos, o grau máximo de afetividade – e D. Pedro assim considerava – está em chamá-la de “minha querida filha” e assinar cartas como “teu filho”. V. “Cartas do Imperador D. Pedro I a Domitilla de Castro (marquesa de Santos)”, Typ. Moraes, Rio, 1896.
[NOTA: O prefácio – anônimo – dessa coletânea de cartas é interessante por refletir o ponto de vista da ala esquerda dos republicanos, após a Proclamação da República; sua base histórica são as memórias de Vasconcelos Drummond, um dos mais notáveis e mais próximos amigos e colaboradores de José Bonifácio (v. “Annotações de A. M. V. de Drummond à sua biographia publicada em 1836 na Biographie Universelle et Portative des Contemporains”, Paris, setembro/1861, in Annaes da Bibliotheca Nacional do Rio de Janeiro, vol. XIII, 1885-1886). Mesmo com essa fonte respeitável, o prefácio da correspondência entre D. Pedro e a marquesa de Santos é injusto para com Pedro I, ao julgar o conjunto de sua obra quase que tão-somente pelos seus momentos menos felizes.]
Dispensamo-nos, pois não é o nosso assunto, de outras considerações psicológicas.
Maria Graham, que era muito amiga de Charles Stuart, em seu resumo biográfico de Pedro I, escrito 10 anos depois de sua última visita ao Brasil, faz-lhe uma restrição:
“Nunca poderei perdoar a Sir Charles uma coisa; seguindo, como suponho, o costume das cortes europeias, cedo começou a dar grande atenção a Madame de Castro e não posso deixar de atribuir à sua atenção neste setor, o reconhecimento público como amante e a consequente magoa nos insultos feitos à Imperatriz”.
Dª LEOPOLDINA
Não eram palavras ditadas por algum moralismo ou preconceito. Domitila, nessa época, comportava-se com uma falta de limites que parecia absoluta, sobretudo em relação à imperatriz Leopoldina.
Até Vilela Barbosa, marquês de Paranaguá – conhecido, também, como usuário dos serviços políticos de Domitila junto ao imperador – revoltou-se quando a marquesa, com D. Pedro ausente, na fronteira do Sul, tentou entrar no quarto onde agonizava a imperatriz Leopoldina. O gesto de Vilela, ao impedi-la de entrar, valeu sua demissão do Ministério (sobre a demissão dos ministros que teriam “ofendido” Domitila, na ausência do imperador, durante a agonia e morte de Dª Leopoldina, v. carta de D. Pedro I à marquesa de Santos, datada de 15 de janeiro de 1827, reproduzida em Octávio Tarquínio de Sousa, op. cit., p. 699).
Dª Leopoldina aparece várias vezes nos relatos de Maria Graham. Por exemplo, na comemoração do aniversário de D. Pedro, a 12 de outubro de 1923:
“Sua Majestade, que se havia retirado com a Princesinha, voltou então e todas as senhoras apresentaram-lhe cumprimentos, enquanto o Imperador estava ocupado no salão de audiências, recebendo os cumprimentos da Assembleia e outras corporações políticas.
“Havia pouco formalismo e nenhuma rigidez. Sua Majestade a Imperatriz conversou livremente com todo o mundo, somente dizendo a todos que falassem português, o que, naturalmente, fizemos. Ela conversou um bom pedaço comigo sobre autores ingleses e especialmente acerca das novelas escocesas e ajudou-me muito amavelmente em meu português que eu, apesar de entender, tenho poucas oportunidades de praticar com pessoas cultas.
“Se é verdade que eu anteriormente lhe ficara grata, fiquei desta vez encantada. Logo que o Imperador recebeu as entidades públicas aproximou-se e conduziu a Imperatriz ao grande salão de recepção e ali, estando ambos de pé no degrau superior do trono, deram a mão a beijar aos funcionários da marinha, do exército, aos civis e aos particulares. Desfilaram assim, parece-me, alguns milhares.
“Era curioso, mas agradou-me, ver alguns oficiais negros tomar a pequenina e branca mão de D. Leopoldina em suas mãos grosseiras e aplicar os lábios grossos africanos em pele tão delicada; mas eles contemplavam Nosso Imperador e a Imperatriz com tal reverência que isto me pareceu uma promessa de confiança nos soberanos e uma demonstração de delicadeza para com eles” (Maria Graham, “Diário, etc.”, ed. cit., pp. 358-359).
Dª Leopoldina realmente foi uma pessoa invulgar, mais ainda em sua época. Mais ainda considerando que se tratava de uma arquiduquesa austríaca, da Casa de Habsburgo – uma estirpe que deu muito pouca contribuição positiva para a Humanidade.
Maria Graham não estava no Brasil quando a imperatriz faleceu, aos 29 anos, em 1826. No seu resumo biográfico de D. Pedro I, ela reconstitui as comunicações que recebeu:
“Várias outras cartas me chegaram pelo mesmo correio, todas lamentando a perda da mais gentil das Senhoras, a mais benigna e amável das princesas! Os pobres negros andaram pelas ruas por muitos dias gritando: ‘Quem tomará agora o partido dos negros? Nossa mãe se foi!’ Muitos e sentidos foram os lamentos das várias escolas e estabelecimentos de caridade, especialmente do Asilo dos Órfãos dos Oficiais que ela havia criado” (v. Maria Graham, “Escorço biográfico de Dom Pedro I, com uma notícia do Brasil e do Rio de Janeiro em seu tempo”, in Anais da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, volume LX, 1938/1940, p. 170).
Ela conta, de forma especialmente dramática, o episódio da marquesa de Santos – mas de forma imprecisa, porque se trata de um relato a partir de outros relatos. Em sua narrativa, inclusive, a marquesa conseguira entrar no quarto de Dª Leopoldina.
O outro relato existente, este ocular, sobre o momento da morte da imperatriz, é o de Carl Seidl, alemão que foi oficial do exército imperial durante a Guerra da Cisplatina. Seu livro foi publicado em 1835 e não é uma obra-prima de imparcialidade sobre o Brasil. Porém, por isso mesmo, a descrição do ambiente no Rio de Janeiro, após o falecimento da imperatriz, parece verídica:
“… Leopoldina de Áustria falecera subitamente. Com a sua morte a Nação sofrera irreparável perda; repetidas por mil línguas, levantavam-se mil suspeitas, cada uma das quais excedia a outra em exagero, loucura e horror mas que todas haviam de ter alguma razão. Afirmava-se que D. Pedro ao partir do Rio dera a ordem para que em sua ausência fosse envenenada a Imperatriz; surgiu formidável agitação, todos os negócios ficaram paralisados, uma revolução geral, primeiramente arrastando-se no pó como verme, erguia pouco a pouco sua cabeça de hidra. Os inimigos do Imperador apanharam ávidos a oportunidade para se aproximarem de seus objetivos particulares tornando a majestade cada vez mais odiada pelo povo; atreviam-se a dar o nome do médico que funcionara como carrasco nessa cena de horror. Infelizmente pouco depois esse homem era nomeado embaixador extraordinário perante a corte francesa, o que deu novo alento à suspeita geral. Outra versão, talvez mais fundada, dizia que D. Pedro em momento de cólera maltratara gravemente sua esposa em adiantada gravidez, mesmo que lhe dera pontapés, e que essa fora a causa da morte. Seja como for, em semelhante processo não podem apresentar-se testemunhas, e nenhum depoimento pode ter valor. (…) Mas o boletim médico informava que a Imperatriz Leopoldina do Brasil falecera de violenta febre biliosa, subitamente, consequente a parto prematuro.
“Ainda antes do regresso de D. Pedro, do Rio Grande, devia ter lugar o sepultamento, e deveras na noite desse ato as coisas no Rio estiveram muito críticas. Toda a cidade estava de luto; uma dor muda, de desespero, tomava todas as fisionomias; negros, mulatos, portugueses, ingleses, italianos, alemães, todos choravam em comum a morte da Imperatriz; pela primeira vez sentiam-se irmãos, o ódio nacional calava-se e os ressentimentos pessoais desapareciam. Um movimento fora do comum reinava em todas as ruas, inquietação no porto, ondulações do povo nas praças públicas, mas tudo silencioso, fechado em si mesmo, secreto. Cada qual sabia o que queria e estava pronto a tomar parte ativa no primeiro rompimento; (…) o Império trepidava em todas as suas juntas” (Carl Seidler, “Dez anos no Brasil”, trad. Bertoldo Klinger, reed. Senado Federal, Brasília, 2003).
ESCRAVOS
Mas, voltemos ao livro de viagens de Maria Graham.
Ela era uma observadora extremamente aguda – e não somente em relação às classes mais abastadas. Em Salvador, ela nota:
“As cabanas dos pobres são feitas de estacas verticais com galhos de árvore trançados entre elas, cobertos e revestidos seja com folhas de coqueiros, seja com barro. Os tetos são também cobertos de palha.
“As melhores casas são feitas ou com uma bela pedra azul, tirada da praia da Vitória, ou de tijolo. São todas caiadas; onde o chão não é calçado de madeira, há um belo tijolo vermelho, de seis por nove polegadas e três de grossura; são cobertas com telhas vermelhas redondas. As casas são geralmente de um só andar, com um ou dois quartos em cima como sótão. Embaixo da casa há geralmente uma espécie de porão no qual vivem os escravos. Realmente fiquei às vezes a imaginar como é que entes humanos poderiam existir em tais lugares” (p. 163).
O “Diário” de Maria Graham está pontilhado pela presença dos escravos. Seu horror pela escravatura, aliás, era sincero, a partir do primeiro contato com ela, que aparece em uma anotação, feita em Recife, a 24 de setembro de 1821:
“Não tínhamos dado cinquenta passos no Recife quando ficamos inteiramente perturbados com a primeira impressão de um mercado de escravos. Era a primeira vez que tanto os rapazes quanto eu estávamos num país de escravidão, e por mais que os sentimentos sejam penosos e fortes quando em nossa terra imaginamos a servidão, não são nada em comparação com a visão tremenda de um mercado de escravos. Estava pobremente abastecido, devido às circunstâncias da cidade, que faziam com que a maior parte dos possuidores de novos escravos os conservassem bem fechados nos depósitos. Contudo cerca de cinquenta jovens criaturas, rapazes e moças, com todas as aparências da moléstia e da penúria, consequência da alimentação escassa e do longo isolamento em lugares doentios, estavam sentados e deitados na rua, no meio dos mais imundos animais. O espetáculo nos fez voltar ao navio com o coração pesado e com a resolução ‘não ruidosa, mas profunda’’ de que tudo o que pudéssemos fazer no sentido da abolição ou da atenuação da escravatura seria considerado pouco” (p. 114).
Ou, quatro dias depois, na mesma cidade, pela qual a autora, por sinal, era fascinada:
“Esta manhã, antes do café, olhando pela janela da casa do Sr. Stewart, vi uma mulher branca, ou antes um demônio, surrando uma pobre negra e torcendo seus braços cruelmente enquanto a pobre criatura gritava angustiadamente, até que nossos homens interferiram. Bom Deus! Como pode existir este tráfico e estes hábitos de escravidão! Perto da casa há dois ou três depósitos de escravos, todos moços. Em um vi uma criança de cerca de dois anos à venda. As provisões estão agora tão raras que nenhum bocado de alimentação animal tempera a massa de farinha de mandioca, que é o sustento dos escravos, e mesmo isso estas pobres crianças, com seus ossos salientes e faces cavadas, revelam que eles raramente recebem suficientemente. Agora, o dinheiro também está tão escasso que não se encontra com facilidade um comprador. Mais uma angústia se acrescenta à escravidão: o desejo vão de encontrar um senhor! Vintenas dessas pobres criaturas são vistas em diferentes cantos das ruas com todos os sinais de desespero. — E se uma criança tenta arrastar-se por entre eles, em busca de um divertimento infantil, a única simpatia que ele pode provocar é um olhar de piedade. Estarão errados os patriotas? Eles puseram armas nas mãos dos novos negros, enquanto as lembranças da pátria, do navio negreiro e do mercado de escravos, lhes estão frescas na memória”.
Maria Graham refere-se, no último trecho, aos brasileiros, sublevados em Pernambuco contra o governo português de Luís do Rego – os revolucionários, em boa parte, eram negros ou mulatos.