Ao longo de pouco mais de uma década, Luther King liderou a luta que pôs fim às leis da segregação racial. Um ano após condenar a guerra do Vietnã King foi assassinado no dia 4 de abril de 1968
Há 50 anos, o maior líder negro da história dos Estados Unidos, o reverendo Martin Luther King, que encabeçou a luta que pôs fim ao apartheid institucionalizado no país, foi assassinado em Memphis, exatamente um ano após ter condenado na Igreja Riverside a agressão ao Vietnã e denunciado o governo de Washington como o “maior perpetrador de violência no mundo”.
Ao longo de pouco mais de uma década, a mobilização da qual foi o principal inspirador e porta-voz varreu as Leis Jim Crow de discriminação – ‘abençoadas’ pela Suprema Corte em 1879 em traição a Lincoln – e arrancou o fim da separação nas escolas, bebedouros e transportes, da cassação do direito de voto e da miríade de detalhes através dos quais os negros eram mantidos segregados, empobrecidos e embrutecidos.
Assim como na África do Sul, o racismo institucionalizado era cinicamente denominado de “Separados mas Iguais” e se fazia de conta que a Ku Klux Klan era uma associação benemérita. As marchas pelos direitos civis, os bloqueios a ônibus e as explosões de fúria nos guetos botaram tudo isso abaixo. Foram assinadas as leis dos Direitos Civis, do Voto, a Lei que proibiu discriminação ao alugar casa e a liberava os casamentos interraciais. O governo federal foi levado a agir com tropas nos estados do Sul para garantir os direitos civis e coibir os racistas. Lyndon Johnson promulgou o programa Guerra à Pobreza. As escolas foram integradas.
Uma vitória tão magnífica que hoje em dia até os mais empedernidos reacionários tecem loas sobre Martin Luther King e sabem de cor a citação do “Eu Tenho um Sonho”. Ao ser morto aos 39 anos, Luther King havia se mudado para Chicago (para combater o racismo arraigado mas menos explícito no norte do país), preparava uma Marcha a Washington contra a pobreza, unindo negros, brancos e latinos, e dialogava com Malcom X, Bob Kennedy e Stokely Carmichael.
No entanto, desde que havia assumido abertamente a condenação da agressão ao Vietnã, Luther King passara a ser hostilizado abertamente por antigos aliados do movimento dos direitos civis – o que foi recentemente mostrado pelo documentário “King in the Wilderness” (King no Deserto, em uma tradução livre). O FBI acelerou a implacável perseguição que movia a ele.
PRESENÇA EM MEMPHIS
A presença de Luther King em Memphis, capital do Tennessee, foi para apoiar a greve dos trabalhadores do saneamento, que foi provocada pela morte de dois operários, que haviam sido esmagados até a morte na parte de trás do caminhão de lixo, porque ocorreu uma tempestade quando estavam num bairro branco e, pelas leis racistas, o único abrigo que poderiam encontrar seria no próprio lixo. Uma vassoura caiu, acertou uma alavanca, que pôs em ação a compactação. Essa é a razão do mote da greve ser “Eu sou um homem”. A luta era também pela dignidade essencial: eles estavam sendo esmagados como o lixo que pegavam, e ninguém se importava, como registrou o Democracy Now.
Exatamente no mesmo 4 de abril, um ano antes, Luther King decidira que era hora de “quebrar o silêncio” sobre a guerra de agressão ao Vietnã, e como isso afetava a luta contra o racismo e a pobreza internamente. Ele denunciou como os programas anti-pobreza haviam sido “sucateados por uma sociedade enlouquecida pela guerra”. “Então eu fui cada vez mais obrigado a ver a guerra como um inimigo dos pobres e a atacá-la como tal”.
O doutor King denunciou a “cruel ironia de assistir garotos negros e brancos nas telas de tevê matando e morrendo juntos por uma nação que tem sido incapaz de sentá-los nas mesmas escolas”, em uma “brutal solidariedade”, queimando juntos cabanas em uma aldeia pobre, “mas percebemos que eles dificilmente viveriam no mesmo quarteirão de Chicago. Eu não podia ficar em silêncio diante de uma manipulação tão cruel dos pobres”. Falando sobre a devastação através dos bombardeios e a matança indiscriminada de civis, estimou em “um milhão deles, principalmente crianças”.
Denúncias que a grande mídia na época classificou de um “roteiro da Rádio Hanói”. Luther King foi além, apontando a guerra como “um sintoma de uma doença muito mais profunda dentro do espírito americano”. Quando “a motivação pelo lucro e os direitos de propriedade são considerados mais importantes do que as pessoas, os trigêmeos gigantes do racismo, do materialismo e do militarismo são incapazes de serem conquistados”. A América “jamais poderá ser salva enquanto destruir as mais profundas esperanças dos homens no mundo inteiro”. Três mil pessoas lotavam a igreja de Riverside nesse dia.
Dificilmente, tal diagnóstico poderia ser mais preciso sobre os EUA de hoje, depois de 16 anos seguidos de intervenções militares no Iraque, Síria, Líbia, Afeganistão e outros países, milhões de mortos e refugiados, e após proclamações de ser “o país excepcional”, acima de todos os demais, proclamação também feita pelo primeiro presidente negro, Barack Obama, e diametralmente oposta ao humanismo de Luther King. O tiro que o matou na varanda do hotel Lorraine foi atribuído a James Earl Ray, que morreu na prisão em 1998, aos 70 anos de idade, e que é considerado pela família de King como mero bode expiatório.
PLUTOCRACIA
O fato de alguns negros terem ascendido às filas da plutocracia – caso de Obama, Colin Powell e Condoleezza Rice – não muda a situação da imensa maioria. Havia mais negros encarcerados em 2008 do que escravos em 1850. Sendo 13,3% da população, os negros são 33% da população carcerária dos EUA, que é a maior do mundo. A integração nas escolas recuou: em 1988, cerca de 44% dos estudantes negros frequentavam escolas de maioria branca, o que caiu hoje para 20%. Conforme o Censo, em 2016 o salário médio anual nos EUA era de US$ 57.617, mas para as famílias negras, apenas US$ 38.555 – contra US$ 80.720 no caso de uma família branca. O assassinato de negros desarmados por policiais que ficam impunes tornou-se uma verdadeira epidemia.
Em seu último discurso, Luther King se mostrava consciente do preço pelas escolhas que fez, por seu povo e pela imensa maioria. “Bem, eu não sei o que vai acontecer agora. Vamos ter dias difíceis pela frente. Mas isso realmente não importa para mim agora, porque eu já estive no topo da montanha. Eu não me importo. Como qualquer um, gostaria de viver uma vida longa. A longevidade tem seu lugar. Mas eu não estou preocupado com isso agora. Eu só quero fazer a vontade de Deus. E ele me permitiu subir a montanha. E eu olhei a terra prometida. Eu não posso chegar lá com vocês, mas eu quero que vocês saibam hoje à noite que nós, como povo, chegaremos à terra prometida Então estou feliz esta noite. Eu não estou preocupado com nada. Eu não estou com medo de homem algum! Meus olhos viram a glória da vinda do Senhor!
ANTONIO PIMENTA