MARIA DO ROSÁRIO CAETANO (*)
O cineasta Maurice Capovilla, autor de dezenas de filmes ficcionais e documentais, como “O Profeta da Fome” e “Subterrâneos do Futebol”, morreu nesse sábado, 29 de maio, aos 85 anos.
O adolescente Maurice Carlos Capovilla, que nasceu em Valinhos, interior de São Paulo, estudou em Campinas, até radicar-se na capital. Na USP, cursou Filosofia. Ainda estudante, começou a militar no CPC (Centro Popular de Cultura) paulistano. E passou a dedicar-se com fervor ao cineclubismo, ao lado dos amigos Rudá de Andrade, Jean-Claude Bernardet, Gustavo Dahl e Alfredo Sternheim.
Capô, assim o chamavam, integrou-se logo à Cinemateca Brasileira, projeto que tinha em Paulo Emilio Salles Gomes um de seus principais esteios. Coube ao inquieto filho de Valinhos cuidar da área de divulgação da jovem Cinemateca. Tornou-se, ainda, colaborador de jornais como o Estado de S. Paulo (Estadão) e, depois, a Última Hora, de Samuel Wainer. Gostava muito de escrever.
Capô parecia não descansar. Seu intento era tornar-se diretor de cinema. Para tanto, frequentou com Vladimir Herzog (1937-1975) a Escola de Cinema de Santa Fé, na Argentina, mantida por Fernando Birri (1925-2017), diretor do festejado curta “Tire Dié” (“Atire Dez!”, pedido de esmola de crianças argentinas) e do longa “Los Inundados”. Birri, considerado um dos mestres-fundadores do novo cinema latino-americano, tornou-se amigo de Capô por todas suas longas vidas.
Os primeiros curtas do jovem documentarista brasileiro foram realizados em 16 milímetros (“União” e “Meninos do Tietê”). Passou, quando pôde, para o 35 milímetros e realizou vários documentários. O mais famoso deles – “Subterrâneos do Futebol” – seria produzido por Thomaz Farkas (1924-2011). O filme integraria o longa-metragem “Brasil Verdade” (1968), ao lado de outros importantes títulos, sendo “Viramundo”, de Geraldo Sarno, o mais conhecido. Capô foi, portanto, um dos integrantes da chamada “Caravana Farkas”, grupo de documentaristas brasileiros que mergulhou por sertões e favelas em busca das mazelas do subdesenvolvimento, sem esquecer a criatividade de sertanejos e moradores de nossas grandes periferias urbanas.
A ótima recepção do documentário sobre os bastidores de nosso futebol cacifou a estreia de Capô no longa-metragem. Seu primeiro filme ficcional foi “Bebel, a Garota Propaganda” (1967), inspirado no conto “Bebel que a Cidade Comeu”, de Ignácio Loyola Brandão.
No ano seguinte, com o amigo Jean-Claude Bernardet no elenco (e na retaguarda), ele faria seu filme mais famoso: “O Profeta da Fome”, alegoria sobre o subdesenvolvimento, protagonizada por José Mojica Marins, o Zé do Caixão. E com Maurício do Valle, o Antônio das Mortes de Glauber Rocha, na pele de um domador (de leão) de circo miserável.
O roteiro do “Profeta” nasceu de conversas mantidas com o ator e diretor teatral Fernando Peixoto (1937-2012) em torno do manifesto “Estética da Fome”, de Glauber Rocha, e de textos próprios (sobre o faquir Silki) publicados por Capô no jornal Última Hora.
Além do cinema, o magistério ocupou espaço nobre na vida de Maurice Capovilla. Nos anos 1960, ele participou do curso de cinema da UnB (Universidade de Brasília). No começo dos anos 1970, tornou-se professor da ECA-USP (Escola de Comunicação e Arte) e esteve na linha de frente de um dos projetos coletivos mais mobilizadores (de jovens talentos), e desmobilizadores (pois resultou em inquestionável veneno de bilheteria) – o longa em episódios “Vozes do Medo”, coordenado por outro professor uspiano, o cineasta Roberto Santos (1928-1987), diretor de “O Grande Momento” e “A Hora e Vez de Augusto Matraga”.
Ao longo de sua vida, Capô dedicar-se-ia a muitos outros projetos no campo da educação. O mais frutífero deles (comandado ao lado do cineasta Orlando Senna) foi o Instituto Dragão do Mar, em Fortaleza. Na década de 1990, depois do desmonte cinematográfico provocado pela Gestão Collor, o governador Tasso Jereissatti transformou o Ceará em polo audiovisual, somando o Dragão do Mar ao Cine Ceará – Festival de Cinema Ibero-Americano. Nos anos 2000, Capô empenhou-se na criação da Escola de Arte Audiovisual de Paraty, mas o projeto não deslanchou como esperado.
Outra área em que Capô atuou com entusiasmo foi na televisão. Ao contrário de muitos colegas de geração, nunca fez cara feia para a telinha. Em mais de 50 anos de cinema, fazer filmes para o circuito exibidor não lhe parecia mais nobre que realizar documentários para redes de TV (alternativas ou poderosas como a Globo). Na sua compreensão, eram duas paixões que se somavam.
Capô integrou as excelentes equipes do Globo-Shell e do Globo Repórter (fase de ouro, a que mobilizou colegas como Eduardo Coutinho e João Batista de Andrade). Pelo menos três documentários de sua temporada a serviço da Rede Globo causaram sensação: “”Do Grande Sertão ao Beco da Lapa”, sobre vida e obra de Oswald de Andrade, Manuel Bandeira e João Guimarães Rosa, “Bahia de Todos os Santos”, inspirado no livro homônimo de Jorge Amado, e o mais famoso deles – “O Último Dia de Lampião” (1976), um nordestern, híbrido de ficção e documentário).
Nos anos 1980, Capô realizou documentários para as redes Bandeirantes (“Crônica à Beira do Rio”, sobre Rubem Braga, “Outras Palavras” e “Mercedes Sosa”) e Manchete (“Os Brasileiros” e “Viagem às Terras de Portugal”). Trabalhou, ainda, na TV Educativa do Rio de Janeiro e em emissora comunitária de Paraty.
No cinema, Maurice Capovilla realizaria mais alguns filmes: “As Noites de Iemanjá” (1971), “O Jogo da Vida” (1977) e “O Boi Misterioso e o Vaqueiro Menino” (1980, este, nascido como telefilme). Depois de longo hiato, faria mais dois longas-metragens, os derradeiros, já nos anos 2000: “Harmada”, recriação de romance de João Gilberto Noll, protagonizado por Paulo César Pereio (2003), e “Nervos de Aço” (2016), um mergulho no universo boêmio, etílico e musical de Lupicínio Rodrigues.
Um dos filmes que Capô realizou a partir de obra literária – “O Jogo da Vida”, baseado no conto “Malagueta, Perus e Bacanaço”, de João Antônio (1937-1996) – tinha tudo para ser seu filme de maior público. Ótima história, elenco de ponta (Lima Duarte, Gianfrancesco Guarnieri e Maurício do Valle), produção da Embrafilme. Mas as liberdades tomadas por Capô ao adaptar a narrativa do autor de “Abraçado ao meu Rancor” não agradaram à sua fonte.
João Antônio, jornalista de ponta na revolucionária revista Realidade e autor de contos de rara excelência, tinha fama de homem duro na queda, intransigente. O autor de livro sobre Lima Barreto e, também, sobre o ZiCartola, bar de Cartola e Dona Zica, passou a detratar o filme de Capô. Não houve jeito. “O Jogo da Vida” e seus jogadores de sinuca não aconteceram junto ao público. Nem agradou à crítica, que esperava bem mais da adaptação.
Muitos projetos de Maurice Capovilla para cinema e TV ficaram guardados em seus armários e memórias. Um deles, era fascinante e chamava-se “Caros Amigos”.
O plano inicial era realizar série composta com cinco documentários sobre cineastas já falecidos – Roberto Santos (“O Homem Nu”), Joaquim Pedro de Andrade (“Macunaíma”), Leon Hirszman (“São Bernardo”), David Neves (“Memória de Helena”) e Fernando Coni Campos (“Ladrões de Cinema”).
O retrato de cada realizador seria desenhado pelas memórias de um cineasta em plena atividade profissional. Nelson Pereira dos Santos, que fora amigo de Roberto Santos e produtor de “O Grande Momento” (1957), relembraria o amigo e colega (paulistano como ele). Mário Carneiro, fotógrafo e diretor (de “Gordos e Magros”) relembraria Joaquim Pedro (1932-1988). Além de diretor de fotografia de “Couro de Gato” e “O Padre e a Moça”, os dois foram amigos muito próximos.
A Zelito Viana, produtor de “Terra em Transe” e diretor de cinebiografia de Heitor Villa-Lobos, caberia relembrar o amigo e colega no curso de Engenharia, na UFRJ, Leon Hirszman (1937-1987), diretor de “A Falecida” e “Eles Não Usam Black-Tie”. José Jofilly relembraria a trajetória de David Neves (1938-1994), diretor de “Lúcia McCartney”, “Luz del Fuego” e “Fulaninha”. Grande boêmio, David era habituê dos botecos e padarias de Copacabana, em especial da rua Prado Júnior.
O próprio Maurice Capovilla se propunha a apresentar Fernando Coni Campos (1933-1988), um dos maiores inventores de estórias do cinema brasileiro, diretor de “O Mágico e o Delegado”. “A ideia” – me contou o cineasta-professor – “era homenagear o cinema brasileiro e velhos amigos de ofício”. De alguma maneira – ponderou, anos atrás – “pude desfrutar, nestas muitas décadas em que estive metido no cinema, de momentos de amizade e, muitas vezes, de grande intimidade, com dezenas de realizadores”. Por isso escolhera cinco cineastas que continuavam, como ele, empenhados em realizar novos projetos audiovisuais.
Para encerrar a defesa daquele sonho que não conseguiria realizar, Capô lembrou sua profunda relação com a memória, razão de ser instituição que ajudou a estabelecer: a Cinemateca Brasileira. “Tudo começou em 1961” – rememorou –, “quando eu ia ao Rio, participar das reuniões do Cinema Novo (geralmente na casa de Joaquim Pedro). Ao regressar a São Paulo, eu contava a Paulo Emilio (Salles Gomes) o que se passara naquelas efervescentes reuniões. O material servia de subsídio para a famosa coluna que ele (Paulo Emilio) mantinha no Suplemento Cultural do Estadão”.
(*) Publicado originalmente em Revista de Cinema, 30/05/2021.