A questão do Medicare para Todos – Sistema Público de Saúde – galvanizou o debate entre os dez principais pré-candidatos democratas à presidência dos EUA no próximo ano, que foi realizado em Houston, no Texas, na quinta-feira (12), na Texas Southern University. Foi consenso que é imperioso derrotar Donald Trump, que aparece nas pesquisas recentes com apenas 38% de avaliação positiva.
Segundo essas pesquisas, se a eleição fosse agora, Trump perderia por sete pontos para a senadora Elizabeth Warren, por nove pontos para o senador Bernie Sanders, e por 16 pontos para o ex-vice-presidente Joe Biden – embora ninguém tenha muita certeza de que “Joe Sonolento” – o apelido que Trump já pespegou nele – aguente dez minutos de embate na tevê com o bilionário e ex-apresentador de reality show.
Foi o primeiro debate em que os três melhores colocados nas pesquisas se defrontaram, já que os dez piores posicionados – sob critério das pesquisas e da arrecadação – ficaram de fora dessa vez.
Biden tem procurado se apresentar como um moderado que levará adiante o ‘legado de Obama’ e se diz ‘a melhor aposta’ dos democratas por ser um ‘centrista’. Sanders mantém sua pregação por uma sociedade norte-americana que conceda a seu povo os direitos que a maioria dos países ricos já tem, como sistema público de saúde e universidade gratuita. Warren, que comunga com várias das propostas de Sanders e se considera a campeã da luta contra os ‘interesses especiais’ de Washington, é particularmente detestada por Wall Street, por ter tentado restaurar alguma sanidade aos bancos ‘too big too fail’.
PALANQUE
Também estiveram em foco o pesado endividamento estudantil para conseguir um diploma universitário – já virou uma bolha maior do que a do cartão de crédito -; a reforma do sistema de justiça criminal, cujo corolário é a maior população de presos do planeta; o combate ao racismo, que segue à vista de todos, inclusive com passe livre para matar, que resultou no movimento Black Lives Matter; a defesa ambiental; e o controle de armas, com os tiroteios em massa fazendo todo dia novas vítimas.
Como comentou o People’s Word, no debate foram escassas, se houve alguma, as referências aos trabalhadores e seus direitos. “Ninguém mencionou a economia, embora Sanders haja novamente denunciado a diferença extrema de riqueza e renda entre o 1% e o resto de nós”.
Note-se que isso ocorre em meio a uma grande discussão na sociedade norte-americana sobre se haverá recessão, se a bolha vai explodir, se a guerra comercial vai provocar uma recessão mundial, se o Fed vai fazer o que Trump pede e vai passar no liquidificador os já minúsculos juros ou se a compra de papéis podres vai voltar.
Enquanto alguns vêem no enorme número de pré-candidatos um fortalecimento dos democratas pós-vexame de Hillary Clinton, há quem tema pela fragmentação do partido, diante de um candidato tão ofensivo e tão sem escrúpulos quanto Trump.
Distinguindo-se dos demais pré-candidatos na questão dos obscenos gastos militares dos EUA – que continuam subindo ano após ano com apoio bipartidário -, Sanders lembrou ter sido “a única pessoa aqui em cima que votou contra todos os três orçamentos militares de Trump”.
O senador de Vermont acrescentou que “que não temos que gastar US$ 750 bilhões por ano nas forças armadas quando nem sabemos quem é nosso inimigo”. Como apontou, os US$ 90 bilhões a mais no próximo ano, fazendo o orçamento do Pentágono chegar a US$ 738 bilhões, permitiriam “dobrar a assistência nutricional ou fornecer US $ 7.000 a todas as crianças em situação de pobreza”.
PARA A PLATEIA
Como é costume, alguns dos dez debatedores jogaram para a plateia, como a senadora Amy Klobuchar, do Minnesota. “Huston, temos um problema”, ela citou a frase famosa da Apollo 13 em apuros, para acrescentar que “temos um cara que está administrando o país como um game show e que prefere mentir a liderar”.
A senadora da Califórnia Kamala Harris declarou que Trump usou “o ódio, a intimidação e mais de 12 mil mentiras para nos distrair do que está realmente fazendo”. Ela acrescentou que Trump só não está indiciado por obstrução da justiça “porque presidentes em exercício não podem ser indiciados”.
Harris conclamou ainda ajudar Trump a voltar à sua distração predileta, “ver a Fox News”. Sobre o tiroteio de El Paso, ela assinalou que mesmo que Trump não tenha puxado o gatilho, “ele tuitou a munição”.
Sobre o entranhado racismo na sociedade norte-americana – chaga posta ainda mais em evidência pelos 400 anos da chegada dos primeiros escravos negros -, o senador de Nova Jersey, Cory Brooker, assinalou que o problema é anterior a Trump. A questão não é apenas “quem é racista”, destacou, mas “quem está ou não fazendo algo a respeito”.
‘VOU TOMAR SEU AR-15’
O ex-deputado Beto O’Rourke, do Texas, que teve um bom desempenho na última eleição para governador do estado, asseverou que “vamos tomar a sua AR-15”, denunciando o absurdo da falta de controle sobre vendas de armas de guerra no país, armas feitas para campo de batalha. Ele acusou Trump de ter “inspirado” o assassino em massa que matou 22 pessoas, quase todas latinas, na cidade natal dele, El Paso. “Vou sublinhar o fato de termos um supremacista branco na Casa Branca”, acrescentou.
O ex-secretário de Habitação do governo Obama e ex-prefeito, Julián Castro, que questionou que o plano de saúde de Biden deixava “10 milhões de pessoas sem cobertura”, advertiu também sobre a segregação habitacional – forma pudica de se referir aos guetos pobres -, que, apontou, conduz a maus resultados na assistência à saúde das crianças e à segregação escolar, que acaba levando ao “pipeline da escola à prisão”. “Estão todos interligados”, ressaltou.
A senadora Warren defendeu que “o dinheiro para as escolas públicas deve permanecer nas escolas públicas”, não deve ser enviado para escolas charter. Na presidência, se comprometeu, ela fortaleceria as escolas públicas, aumentaria os salários dos professores e garantiria o pré-escolar para todas as crianças. Também prometeu apoiar o “fortalecimento dos nossos sindicatos”.
Warren também denunciou a corrupção de interesses especiais em Washington, o tema de sua campanha. Combater esses interesses, repetiu a senadora durante a segunda metade das três horas de discussão, seria uma característica essencial de seu mandato na Casa Branca. Ela alertou que o Medicare for All e outras ideias progressistas, incluindo mais fundos para escolas públicas e reforma da justiça criminal, foram vítimas desses interesses sórdidos.
Em outro momento, vieram à tona as guerras intermináveis dos EUA, com o ex-vice Biden pedindo desculpas por seu voto para autorizar a guerra do presidente W. Bush no Iraque e dizendo ter sido “enganado”. Sanders aproveitou para lembrar à plateia ter votado contra todas essas guerras “porque eu não confiava em Bush e Cheney”.
BIDEN AMA AS SEGURADORAS DE SAÚDE
Biden contrapôs a manutenção do plano com base nas seguradoras privadas de Obama, mais conhecido como Obamacare, à proposta de Sanders, Warren e outros líderes democratas de que é inadiável a instauração do Medicare para Todos, a extensão a toda a população dos sistema público que já atende há décadas os aposentados.
Em sua defesa do cartel hospitalar-farmacêutico, disfarçada de defesa do Obamacare, Biden tentou encurralar Sanders e Warren alegando que seria caro demais. “O Medicare para Todos custará US $ 3,4 trilhões por ano. Quero ouvir como eles vão pagar por isso”, disse Biden, acrescentando que seu plano custaria US $ 740 bilhões por ano. Ele também adicionaria uma opção pública.
“Eu escrevi a maldita conta”, repetiu Sanders sobre o Medicare para Todos. “Eu disse que custará US$ 30 trilhões em dez anos. Mas manter o status quo custará US $ 50 trilhões”. A diferença, segundo ele, será embolsada pelas grandes empresas farmacêuticas e pelas gananciosas seguradoras de saúde.
Sanders afirmou ainda que irá “eliminar todas as despesas diretas, todas as franquias, todos os co-pagamentos, e ninguém pagará mais de US $ 200 por ano por medicamentos prescritos, porque enfrentarei a ganância, a corrupção e a fixação de preços dos medicamentos pelas empresas farmacêuticas”, determinando quanto o governo, em nome dos clientes, pagará pelos medicamentos prescritos.
GASTANDO ‘O DOBRO’
Ao ouvir de Biden que “isso não vai funcionar”, Sanders lembrou-lhe que “estamos gastando o dobro da renda per capita em saúde do que os canadenses ou qualquer outro país importante da Terra”. Em resposta, Biden retrucou que “esta é a América”. Observação que levou Sanders a reagir: “Sim, mas os americanos não querem pagar o dobro dos outros países. E [outros países] garantem assistência médica a todas as pessoas…. o que as pessoas querem é um atendimento de saúde módico”.
Sobre o embate, Warren acrescentou que quem deveria pagar pelo Medicare para Todos são “os que estão no topo, os muito ricos, as corporações gigantescas pagarão mais e a classe média pagará menos”.
Como notou, “as famílias pagam (agora) toda vez que recebem uma receita médica ou não recebem uma porque não podem pagar”. “Todo mundo ama seu médico, ninguém ama sua companhia de seguros”, enfatizou, apontando que o Medicare é ‘Para Todos’, ao invés de para as seguradoras, que aumentam seus lucros dizendo ‘não’ e aumentando mensalidades”.
Também em defesa do Medicare para Todos, Castro acusou Biden de se ligar a Obama quando era conveniente, e de se afastar quando não. “[Obama] queria que todas as pessoas fossem cobertas [pelo programa de saúde]. Meu plano faria isso, o seu, não”.
TORCIDA
No debate também participaram o empresário multimilionário Andrew Yang, acusado de favorecer o sistema de escolas charter, e o prefeito de South Bend, Indiana, Pete Buttigieg, que está propondo pagamento de reparação aos descendentes de escravos.
Pesquisa Washington Post-ABC aposta no nome de Biden, que estaria sendo bafejado pela “elegibilidade”, pois nada menos de “45%” acreditariam que ele “tem mais chance de derrotar Trump” – supostamente, três a quase quatro vezes mais que Sanders ou Warren. Como o também pré-candidato Julián Castro alertou, “não vamos ganhar tentando jogar da maneira mais segura possível. Trump não ganhou jogando assim”. Duas horas antes do debate, Trump revelou para quem era sua torcida: comentou que “se não cometer nenhum erro grave, acredito que Biden chegará lá”. [Provavelmente pensando com seus botões, ‘e eu também’].
ANTONIO PIMENTA
O que Sanders diz em resposta aos que criticam a sua proposta de lei conhecida como Medicare for All é: “I wrote the damn bill”, que, traduzida para o português, significa “Eu escrevi a [droga ou merda] da proposta de lei”. A palavra damn em inglês se tornou comum para expressar o que na linguagem de rua diríamos, com raiva, “a porra dessa lei”, não porque achamos a proposta ruim, mas porque quem critica acha que sabe mais sobre a proposta do que quem escreveu.