CARLOS LOPES
(HP, 14 a 26/10/2016)
O sr. Meirelles, ministro da Fazenda, é incensado por Temer, Lula e Dilma. Sua grande capacidade de pregar o roubo – e, efetivamente, roubar – aos aposentados e ao povo, deve ser a principal credencial para que essa malta o ache muito competente – e até, veja só o leitor, respeitável.
No entanto, Meirelles só não está na cadeia porque Lula o acoitou, transformando-o em ministro (por Medida Provisória!), para que as investigações sobre ele seguissem sob o famigerado “foro privilegiado”. Com isso, o inquérito foi para o STF, onde Gilmar Mendes e Nelson Jobim fizeram o resto.
Entre outras aventuras, Meirelles abafou seus próprios malfeitos, usando o cargo de presidente do Banco Central.
O insuspeito (nessas circunstâncias) senador Antero Paes de Barros (PSDB-MT), presidente da CPI do Banestado, demonstrou, como está exposto no inquérito sobre as atividades de Meirelles, encaminhado pela Procuradoria Geral da República ao STF em 2005, que “durante a gestão do Sr. Henrique Meirelles à frente do Banco Central, 44 dos 64 processos [contra ele] foram arquivados em esforço concentrado, em três meses, muito embora tenham sido instaurados de forma espaçada, entre 1997 e 2002. No período de 19/11/2003 a 09/12/2003 foram arquivados 30 processos. Já entre 03/02/2004 a 10/02/2004, 11 processos. Dentre os processos arquivados, encontrava-se o de n° 0101074058, relativos às Silvanias, controladas pelo representado, o Sr. Henrique Meirelles”.
As “Silvanias” foram a ponta de um monturo de fraudes, ilegalidades e escroquerias de diversos tamanhos, perpetradas por Meirelles.
Sucintamente, disse o senador:
“Um outro processo analisado pelo Relator causou surpresa por envolver duas empresas offshores americanas – Silvania One e Silvania Two – controladas de uma outra Silvania no Brasil. Essas 3 empresas pertencem a ninguém menos que ao Presidente do Banco Central do Brasil, Sr. Henrique Meirelles. O Relator [deputado José Mentor (PT-SP)] não tratou do aspecto de relevância nesse caso, que é o fato de o Sr. Henrique Meirelles deter a atribuição de fiscalizar a si próprio e as operações que realizou” (grifo nosso).
O inquérito, enviado ao STF pelo então Procurador Geral Cláudio Fonteles – após Lula, em agosto de 2004, ter coroado Meirelles como ministro (MP nº 207) para escapar à polícia (o leitor já verá que não estamos exagerando) – começara como investigação para apurar crimes eleitorais:
“… é incontroverso o fato de que o Sr. Henrique Meirelles não declarou ao Fisco e ao TRE/GO o controle das empresas Silvânia Empreendimentos e Participações Ltda., Silvânia One LLC, Silvânia Two LLC e a empresa trust estrangeira The Henrique Campos Meirelles Revocable”.
Não era somente o malsinado Cunha que tinha – ou tem – um trust no estrangeiro….
Mas, voltemos ao inquérito sobre Meirelles:
“… o representado promoveu diversas alterações contratuais dessas empresas, para que permanecesse no controle, mas de forma oculta nas operações por elas realizadas. Isso favorece a lavagem de dinheiro e dificulta o cruzamento de dados pela Receita Federal, na fiscalização de rotina, bem como facilita a utilização de recursos não declarados em campanha eleitoral”.
A resposta de Meirelles a este ponto é reveladora:
“Reafirme-se que o representado não tinha uma única ação ou cota dessas sociedades. Por isso, não as declarou” (grifo no original).
Mas isso apenas mostrava que Meirelles tentou ocultar seu controle sobre das empresas.
Nas palavras dos procuradores:
“Ao contrário do que alega o Sr. Henrique Meirelles, ele controla e é dono oculto de todas as empresas offshores, estrangeiras e nacionais mencionadas (…). O representado não tece uma linha sequer sobre o controle dessas empresas. Por que razão?
“O representado também não trouxe aos autos o contrato social das empresas Silvânia One e Silvânia Two, que tem como representante no Brasil o Sr. Marco Túlio Pereira de Campos, o mesmo que foi preso com R$ 32.000,00 (trinta e dois mil reais) no aeroporto de Guarulhos. As razões são óbvias, no sentido de que não se esclareça que o Sr. Henrique Meirelles é, verdadeiramente, o único dono e controlador de todas essas empresas”.
Marco Túlio Pereira de Campos, primo de Meirelles, fora “detido, em maio de 2004, no Aeroporto de Congonhas, em São Paulo, quando embarcava para Brasília, por levar R$ 32 mil na bagagem. Campos identificou-se como parente do presidente do Banco Central e disse que o dinheiro era fruto de uma transação imobiliária realizada em São Paulo, envolvendo um dos bens de seu primo. A afirmação foi confirmada por procurações de Henrique Meirelles que lhe davam poderes para representá-lo junto a instituições municipais e estaduais de Goiás e a dois órgãos da União: Receita Federal e Procuradoria da Fazenda Nacional”.
Na mesma época da prisão de seu primo, foram revelados “dois contratos societários e uma escritura de compra de uma chácara na cidade de Anápolis, em Goiás, feita por Henrique Meirelles da empresa Silvania Empreendimentos e Participações Limitada. A Silvania pertenceria a outras duas firmas, nomeadas Silvania One e Silvania Two, com sede em Wilmington, nos Estados Unidos. As duas empresas são de Meirelles. Como pessoa física, ele comprou um bem, que já lhe pertencia na qualidade de pessoa jurídica, através da Silvania Empreendimentos. Esse tipo de operação não seria ilegal, mas serviria para tornar visível aos olhos do fisco um bem que, até então, estava oculto. Meirelles afirma que a compra da chácara foi feita em 2002 e lançada, no mesmo ano, em seu imposto de renda, entretanto a escritura de compra e venda só foi lavrada em março de 2004, quando já ocupava o cargo no Banco Central”.
Voltemos, então, ao inquérito da Procuradoria:
“[Meirelles] omitiu em sua resposta que o único sócio das empresas Silvânia One e Silvânia Two (…) é a empresa trust estrangeira ‘The Henrique de Campos Meirelles Revocable Trust – 1998’. Consta dos anexos do Relatório de Informação n° 09/05 que a empresa trust estrangeira ‘The Henrique de Campos Meirelles Revocable Trust – 1998’ detém 100% do capital das empresas Silvânia One e Silvânia Two, as quais controlam a Silvânia Empreendimentos e Participações Ltda”.
Ou seja, Meirelles não tinha uma única ação das “Silvânias”. Quem tinha 100% das ações era o “The Henrique de Campos Meirelles Revocable Trust – 1998″…
Vamos poupar ao leitor todos os detalhes e todos os laranjas de Meirelles, função para a qual, mostra o inquérito, ele usou até a mãe, Dª Diva Silva de Campos, quotista da Silvania Empreendimentos e Participações, que assinou várias procurações para o filho representá-la nos negócios dessa empresa.
Diz o Inquérito:
“Não bastasse todos esses indícios contra o representado, trago cópia dos contratos sociais, das alterações societárias e de procurações expedidas, relacionadas às empresas Silvania Empreendimentos Participações Ltda., Silvania Holdings Ltda., Goiania Ltd., Silk Cotton Investments Ltd., Yametto Corporation Ltd., Silvania One LLC e Silvânia Two LLC, que demonstram, cabalmente, que o Sr. Henrique de Campos Meirelles utilizou-se de artifícios para ocultar a sua participação (como único proprietário) das quotas e capital social dessas empresas, principalmente a empresa brasileira Silvania Empreendimentos Participações Ltda., contando com advogados do escritório de advocacia paulista Demarest e Almeida”.
Depois de 12 alterações contratuais nesse matagal de empresas-fantasmas, Meirelles passou a assinar por quatro “empresas” com sede em bordéis fiscais e nos EUA (Silk Cotton Investments Ltd., Yametto Corporation Ltd., Silvania One LLC e Silvânia Two LLC), além da Silvania registrada no Brasil. Mas houve ainda mais duas alterações.
Ao todo, foram detectadas nove empresas do esquema de Meirelles, cuja única função era circular dinheiro, ocultando sua origem, e, aliás, sobretudo, ocultando o próprio Meirelles. São as seguintes:
Silvania Empreendimentos e Participações Ltda.
Silvania Holdings Ltda.
Goiania Ltd.
Silk Cotton Investments Ltd.
Yametto Corporation Ltd.
Silvania One LLC
Silvania Two LLC
Boston Administração e Empreendimentos Ltda.
Boston Comercial E Participações Ltda.
Além disso, há outras duas no exterior – Red Horizon e Tranquil Bay – que constam de sua declaração.
O leitor já terá inferido – pois é óbvio – que ninguém planta tantas empresas que nada fazem (exceto ter uma ou várias contas em algum banco suspeito), e as oculta (e, antes de tudo, oculta a si mesmo atrás delas), para fazer algo honesto.
Então, vejamos os outras provas coletadas no inquérito, que, infelizmente, foi abortado pela ação de Lula e dos senhores Gilmar Mendes e Nelson Jobim.
BC
A investigação sobre Meirelles começou após as eleições de 2002 – quando ele, caindo de paraquedas em Goiás, foi eleito deputado federal pelo PSDB.
Era uma investigação de crime eleitoral.
Meirelles fora afastado da presidência do BankBoston depois de, às vésperas da bancarrota argentina, ter recomendado que os clientes do banco mantivessem – e até adquirissem mais – dos seguríssimos títulos argentinos.
De volta ao Brasil, seu primeiro ato foi uma fraude: na declaração de candidato, feita ao TRE de Goiás, Meirelles ocultou bens e renda que todos sabiam que possuía – ou, pelo menos, todos sabiam que os bens não eram tão poucos e a renda tão pequena.
Na época do inquérito, Meirelles já era presidente do Banco Central, pois Lula decidira, logo depois de sua posse, entregar aos tucanos – e, no caso, mais que aos tucanos, aos americanos de Wall Street – a autoridade sobre a moeda brasileira, o que teria a consequência de transferir, do setor público para o setor financeiro, o total, durante os dois mandatos de Lula, em juros, de R$ 1 trilhão, 285 bilhões e 62 milhões, além de afundar o país em 2009, quando, diante da crise nos EUA, o BC manteve os juros no espaço, sem alteração, durante 150 dias.
No inquérito, Meirelles confessou que ocultara bens na declaração à Justiça eleitoral – e veremos, mais adiante, qual foi a sua fenomenal defesa para esse ocultamento.
Porém, ao investigar Meirelles por crime eleitoral, os procuradores acabaram descobrindo aquilo que ele queria esconder com sua confissão de crime eleitoral: a participação no escândalo do Banestado, sua rede de empresas-fantasmas e suas declarações de renda – que, por si só, constituem indício de crime.
O estilo, disse um francês, é o homem. Meirelles, que foi presidente do BankBoston, nem por isso é um ladrão de casaca. Tem o estilo de um doleiro ordinário, desses que abundam em torno da Galeria Pagé, em São Paulo. Apenas a quantidade de dinheiro é imensamente maior.
“É incontroverso”, constata o inquérito, conduzido pelo procurador Lauro Pinto Cardoso Neto, “o fato de que o Sr. Meirelles realizou operações bancárias com a offshore Biscay Trading, constituída de um grupo de doleiros de São Paulo investigados por lavagem de dinheiro”.
Havia algo de tão impactante (ou incomodante, para ele) na descoberta de que transferira dinheiro para uma conta da Biscay Trading, que, no mesmo dia em que o fato apareceu na imprensa, em 2004, Meirelles, além de uma nota do BC, declarou: “Nos Estados Unidos é comum que quando alguém vai receber um pagamento indique uma conta para se fazer o depósito. E é normal que se mande um recurso para uma outra conta, num outro banco. Se você me manda fazer um depósito, eu faço um depósito naquela conta, e se aquela conta, por acaso, for de um doleiro ou não, quem faz o depósito por indicação de outra pessoa não tem como saber”.
Meirelles, nessa declaração, omitia o fato de que a sua conta, da qual saíra o dinheiro para a conta dos doleiros da Biscay Trading, também era oculta – isto é, não declarada à Receita.
Além disso, ele jamais declarou que “pagamento” foi esse, feito logo após a sua eleição. Como diz o inquérito, “[Meirelles] poderia trazer aos autos o nome do credor ou cópia do recibo da quitação da obrigação, mas não o fez. O representado não trouxe aos autos o nome desse credor, que indicou tal conta, ou qualquer outro recibo pelas despesas efetuadas no valor de US$ 50.677,12, indicados na representação. Não é corriqueiro um cidadão efetuar depósitos bancários em contas por ele desconhecidas” (grifo nosso).
O inquérito transcreve a perícia realizada pelo Setor de Pesquisa, Análise e Informações (SPAI) da Procuradoria da República no material do escândalo do Banestado, incluindo as contas do MTB Bank, que se tornara uma central de lavagem em Nova Iorque:
“… encontramos 03 (três) operações financeiras internacionais, realizadas em nome do Sr. Henrique de Campos Meirelles, sendo uma envolvendo a empresa offshore Biscay Trading Limited do MTB Bank N.Y., pertencente a doleiros investigados na CPMI do Banestado, e as outras duas registradas em contas CC5”.
Foi, certamente, um descuido de Meirelles – ou um excesso de confiança na impunidade, pois o inquérito da Polícia Federal sobre o Banestado fora abafado, para desgosto do juiz Sérgio Moro e do delegado Castilho – afastado pelo governo de então. Um conluio entre o PSDB, PT e DEM dera o golpe fatal nas investigações. Mas os dados estavam na CPI do Banestado – e foram esses arquivos que a Procuradoria vasculhou.
Logo, prossegue a perícia:
“A operação interceptada nos registros bancários do MTB Bank N.Y, é uma ordem bancária internacional, realizada em 18/10/2002, no valor de US$ 50.677,12, sendo de um lado, como remetente, o Sr. Henrique de Campos Meirelles, a débito de sua conta corrente n° 4029218701, mantida em Nova Iorque/EUA, e de outro, como beneficiária, a conta n° 030102375, titulada pela offshore Biscay Trading Limited, no MTB Bank NY, representada no Brasil pelos doleiros Victor Manuel da Silva e Sousa, Luiz Filipe Malhão e Sousa, e José Mendes Povoação”.
“O mais grave é que a Biscay Trading Limited movimentou recursos no exterior na ordem de US$ 100 milhões de dólares, no período de 30/mar/2001 a 27/ago/2003, o que pode implicar, em tese, em crimes contra ordem tributária, evasão de divisas, formação de quadrilhas e outros.
Sintomática é a defesa de Meirelles por ter ocultado a conta (n° 4029218701) da qual saíram esses US$ 50.677,12. Como residente no Brasil desde 2002, ele era obrigado a declará-la no Imposto de Renda. Mas…
“O representado afirma que a conta de onde foi feito o depósito à offshore não foi declarada em seu imposto de renda porque não possuía saldo no final do exercício financeiro, em 31 de dezembro de 2002, argumentou o Sr. Henrique Meirelles:
“… O representado não declarou a existência da conta de onde feito o depósito em sua declaração do imposto de Renda de 2003, ano base 2002, como acusam os Procuradores, simplesmente porque não havia como fazê-lo, uma vez que a conta mencionada pela representação estava encerrada no final do exercício fiscal de 2002. Não havia saldo a declarar dessa conta, em 31 de dezembro de 2002. Seu saldo era zero (doc 11)”
A análise da Procuradoria é bastante precisa:
“Muito embora não seja obrigatório o lançamento na declaração de bens de conta não declarada no ano anterior e com o saldo zero, resta a suspeita de que justamente a conta utilizada para operar com conta de uma offshore tenha o seu saldo zerado em 31 de dezembro, justamente para não precisar lançar na declaração de renda”.
Esse é um procedimento comum para a maioria dos escroques, que se valem de contas que não querem que apareçam para a polícia e para o fisco.
Meirelles, portanto, apresentou o crime (a ocultação da conta e manobras para ocultá-la) como sua defesa.
2
As ilicitudes expostas, de autoria do então presidente do Banco Central – e, hoje, ministro da Fazenda –, configuravam, evidentemente, um esquema de escroque. Que Lula ou Temer considerem “normal” ter um escroque no BC ou no Ministério da Fazenda, diz bastante sobre o vácuo moral de ambos.
Também é o que se pode concluir da “exposição de motivos”, assinada pelo hoje presidiário Antonio Palocci Filho, da Medida Provisória nº 207 – assinada por Lula – que elevava a ministro o presidente de uma repartição do Ministério da Fazenda, como é o Banco Central.
Da “globalização da economia” ao “estatuto do desarmamento, recentemente regulamentado, [que] urge reforçar a sua segurança institucional [do BC ou de Meirelles]” (?), qualquer coisa foi sacada, nessa “exposição”, para fazer um suspeito escapar da Polícia e da Justiça (cf. MP 207, Exposição de Motivos, Diário da Câmara dos Deputados, Ano LIX, Nº 146, 03/09/2004, p. 37575).
Voltaremos a essa MP, inconstitucional do cabo até o rabo. Mas ela não foi a coisa mais excepcional que o PT fez em prol de Meirelles e seus patrões: todo o capítulo IV da Constituição de 1988, referente ao “Sistema Financeiro Nacional”, foi revogado pela Emenda Constitucional nº 40, de 29/05/2003, com o apoio unânime do PT, no primeiro ano do governo Lula.
A emenda era do senador José Serra e tramitava desde 1999 – mas apenas em 2003, com Meirelles no BC e Lula na Presidência, foi aprovada.
Resumindo, um dos primeiros atos do PT no governo foi aprovar uma emenda à Constituição, apresentada pelo candidato derrotado nas eleições do ano anterior, abolindo o capítulo sobre o Sistema Financeiro, que fora aprovado pelos constituintes de 1988.
O sentido dessa revogação de dispositivos da Constituição era claro: deixar os monopólios financeiros, bancos, fundos e outros rentistas, sem qualquer limite ou regulamentação constitucional (ou infraconstitucional, já que foi apagada, na Carta Magna, a obrigação de leis complementares sobre aspectos específicos do sistema financeiro, ainda que mantida uma recomendação genérica dessas leis).
RELATÓRIOS
Voltemos às empresas-fantasmas de Meirelles. Qual a sua função?
O assunto foi abordado pelo Procurador Geral, em documento de 20 de junho de 2005, dirigido ao STF, que menciona o “Processo n° 9900913883, relativamente à remessa supostamente ilícita de R$ 1.400.000.000,00 (um bilhão e quatrocentos milhões de reais) pela empresa não financeira Boston Comercial e Participações Ltda e o ingresso ilícito no Brasil de US$ 2.800.000,00 (dois milhões e oitocentos mil dólares) em favor da empresa Silvania Empreendimentos e Participações Ltda” (cf. Inquérito 2206-3/DF, fls. 256-260, grifo nosso).
A Silvania Empreendimentos e Participações Ltda., como vimos, era uma das empresas-fantasmas de Meirelles – aliás, aquela em que ele mais se esforçou para ocultar a sua participação, para isso fazendo, em pouco tempo, 14 alterações contratuais.
A Boston Comercial e Participações Ltda era (ou é) uma empresa não financeira, registrada no Brasil, com sede em Alphaville, São Paulo, pertencente, oficialmente, ao BankBoston. Essa empresa não financeira enviara R$ 1 bilhão e 400 milhões para o exterior, através de uma conta CC5 (iniciais de Carta Circular nº 5 – o documento do BC que instituiu essa imoralidade para facilitar o envio anônimo de dinheiro para o exterior; todo o escândalo Banestado foi em torno das contas CC5).
Que o BankBoston enviasse ao exterior R$ 1,4 bilhão (correspondente, na época, a US$ 1 bilhão), não seria espantoso, devido à avacalhação regulatória no governo Fernando Henrique, que já era grande.
O estranho era uma empresa não financeira enviar para fora o que “representava 2.083 vezes o capital social da empresa” (v. a análise dos técnicos do BC no processo nº 9900943883, pp. 265-266).
O capital social da Boston Comercial e Participações Ltda era de R$ 659 mil. E ela enviara o dinheiro como cliente do BankBoston, apesar de pertencer ao mesmo.
E agora, nesse capítulo das coisas estranhas, está o relatório do deputado José Mentor (PT-SP), na CPI do Banestado, que absolveu Meirelles, inclusive das suspeitas (cf. Relatório da CPMI do Banestado, pp. 692-693).
Porém, Mentor deixou escapar o seguinte trecho, talvez porque fosse muito difícil evitá-lo, ao descrever os processos do BC examinados pela CPI:
“… há remessa de recursos do exterior para o País, para uma empresa (Silvania) que apresenta um contrato de prestação de serviços de pagamentos de despesas, com a característica de que esta prestadora é de propriedade de duas offshores cujos representantes, no Brasil, são da Banca de Advocacia Demarest & Almeida. Foi verificado e constatou-se que as offshores que controlam a Silvania atualmente, uma vez que as offshores mudaram, são Silvania One e Silvania Two, ambas americanas. Processo em exame na data de encerramento da Comissão” (cf., rel. cit., p. 50).
A Silvania pertencia a Meirelles, mas o deputado Mentor omitiu esse fato. Posteriormente, quando Mentor quis obstruir a votação de seu próprio relatório, houve quem atribuísse a cochilos desse tipo, e ao “estímulo” do governo, a sua tentativa.
No seu voto em separado – outro relatório, com 685 páginas – o (nesse caso) insuspeito senador Antero Paes de Barros (PSDB-MT), presidente da CPI do Banestado, descreveria o desenrolar dos acontecimentos:
“De início, salta aos olhos a enorme quantidade de processos existentes contra o BankBoston, quase o dobro daqueles analisados para todos os demais bancos. Evidenciou-se, portanto, o modo como a atuação do BankBoston no Brasil foi capaz de produzir tamanha quantidade de processos (…).
“… esperava-se que o Relator [José Mentor] tivesse a louvável intenção de verificar de que maneira o Sr. Henrique Meirelles tratava os processos do BankBoston, instituição para a qual trabalhou de 1974 a 2001. Porém, pelo teor do relatado, não era esse seu objetivo, vez que o BankBoston não foi mencionado em suas conclusões. No entanto, os dados levantados pelo Relator, mesmo em se tratando de descrições sucintas dos processos, muitas vezes realizada em um único parágrafo, apontam sérios indícios de anormalidades no trâmite e arquivamento desses processos.
“Dos 64 processos, o Relator levantou as datas de arquivamento de 44 deles. Relativamente aos demais, dez ainda estariam abertos e em outros dez não há informações. Desses 44 processos, observou-se que 41 foram arquivados de forma concentrada em duas ocasiões, durante a gestão do Sr. Henrique Meirelles. A primeira ocasião deu-se no período de 20 dias, compreendido entre 19/11/2003 e 09/12/2003, quando foram arquivados 30 processos. A segunda ocasião foi na semana de 03/02/2004 a 10/02/2004, quando mais onze processos foram encerrados.
“Esses 64 processos foram instaurados de forma espaçada, entre 1997 e 2002. (…) Os processos permaneceram abertos por um período variando de 2 a 6 anos. O natural de se esperar era que seu arquivamento também se desse de forma espaçada. Mas não foi isso o que ocorreu. Daí emerge a dúvida sobre o tratamento conferido aos processos dos demais bancos. Será que também foram arquivados de forma concentrada em determinados períodos? Se isso não ocorreu, teria havido alguma espécie de tratamento especial para os processos do BankBoston?
“Outro aspecto não detectado pelas análises do Relator diz respeito às consequências dos processos. Dentre os 64 processos do BankBoston analisados pelo Relator, não há sequer um caso que tenha resultado em penalidade grave. Já nos 33 processos de outras instituições financeiras o quadro é bem diferente. Analisando-se somente os casos de multas superiores a um milhão de dólares, aplicadas pelo Banco Central ou confirmadas pelo Conselho de Recursos do Sistema Financeiro, constatou-se a existência de 11 processos. (…) Se fosse o caso de utilizar como base de análise a amostra de 97 processos constante do relatório apresentado pelo Deputado José Mentor, a conclusão inevitável seria o levantamento de suspeitas de impunidade para os processos do BankBoston e que o Sr. Henrique Melrelles arquivou a grande maioria deles sem que houvesse qualquer consequência.
“Passando-se a analisar os processos individualmente, em alguns deles os fatos descritos pelo Relator mereceriam um exame mais aprofundado.
“Exemplo disso encontra-se no primeiro processo analisado, de número 9900943883, que trata de um caso de evasão de divisas de um bilhão de dólares, por parte de uma empresa não financeira integrante do conglomerado do BankBoston, denominada Boston Comercial e Participações.
“A equipe que assessora o Relator tratou o caso do BankBoston em 7 parágrafos, não tendo apresentado nenhum comentário sobre o assunto em sua conclusão, a despeito da materialidade dos recursos envolvidos.
“Um outro processo analisado pelo Relator causou surpresa por envolver duas empresas offshores americanas, Silvania One e Silvania Two – controladoras de uma outra Silvania no Brasil. Essas 3 empresas pertencem a ninguém menos que ao Presidente do Banco Central do Brasil, Sr. Henrique Meirelles. Essa informação foi obtida pela CPMI em um levantamento encaminhado pela Secretaria da Receita Federal, onde constam todas as empresas estrangeiras que têm participação em empresas brasileiras, assim como os seus sócios e responsáveis.
“O assunto foi tratado pelo Relator de forma sucinta em um parágrafo com 3 frases, em que se concluiu o seguinte: ‘Foi verificado e constatou-se que as offshores que controlam a Silvania atualmente, uma vez que as offshores mudaram, são Silvania One e Silvania Two, ambas americanas. Processo em exame na data de encerramento da Comissão” (cf. senador Antero Paes de Barros, Voto em Separado, Relato dos Trabalhos da CPMI do Banestado, Volume I, pp. 178-185).
ANTECEDENTES
A Polícia Federal chegara a Meirelles e ao BankBoston através da Operação Arca de Noé, deflagrada em dezembro de 2002 para investigar a quadrilha de Arcanjo Ribeiro, em Mato Grosso. Essa organização criminosa lavava dinheiro através de uma filial do BankBoston em Montevidéu. A PF desvendou, então, o modus operandi: “Os recursos chegavam ao Uruguai por vias ocultas às autoridades, mediante esquema de evasão de divisas, eram depositados na agência do Boston e retornavam pelas vias legais por meio de empréstimos simulados, concedidos pelo banco”.
Também em dezembro de 2002, em sua sabatina no Senado – obrigatória para nomeados a presidente do BC – Meirelles disse: “no final, foi declarado não haver nenhuma irregularidade cometida pela instituição [BankBoston], tanto que não foi instaurado nenhum tipo de processo [judicial]”.
Ele referia-se a algo anterior à Operação Arca de Noé – aos 16 processos, no BC, contra o BankBoston, relatados pela CPI dos Bancos em 1999, quando o país foi à bancarrota, com os grandes bancos auferindo ganhos estúpidos: somente em janeiro de 1999, esse ganho, às custas do Tesouro, atingiu R$ 3,532 bilhões, concentrado em nove bancos (Boston, BBM, Morgan, ING, Garantia, Pactual, Matrix, Citibank e Banco Europeu) que adivinharam o que aconteceria (!), comprando “grandes somas de dólares baratos às vésperas da desvalorização cambial de 13 de janeiro” (cf. Relatório Final do senador João Alberto na CPI dos Bancos, Brasília, 1999).
Um fenômeno tão escandaloso que até a diretoria do BC foi obrigada a instalar uma Comissão de Sindicância para “apurar o possível fornecimento de informação privilegiada a instituições financeiras mediante pagamento de propina a servidores da Autarquia”.
O que Meirelles disse no Senado era uma meia-verdade – ou mentira inteira, sob cobertura de uma formalidade.
A análise dos técnicos do BC nesses processos, transcritos no relatório da CPI dos Bancos, constataram, sobre o BankBoston, dirigido por Meirelles:
a) “… os responsáveis envolvidos não se interessam em nos atender, mesmo que as solicitações tenham prazo. (…) o Banco não tem a preocupação de atuar dentro das normas cambiais em vigor, no tocante às documentações que amparem suas operações, nem em classificar corretamente as operações” (cf. BCB, PT nº 9900951783, p. 415, cit. in Relatório Final da CPI dos Bancos, 1999, p. 269).
b) simulação de operações com empresas ligadas;
c) evasão de divisas, de US$ 1 bilhão, por meio de empresa ligada, desprovida de porte e capacidade financeira;
d) montagem de operações artificiais com a matriz nos EUA para transferir ganhos estupendos na BM&F [Bolsa de Mercadorias & Futuros] sem o pagamento de Imposto de Renda: “… com a estruturação arquitetada, estaria sendo possibilitada a transferência de todo o lucro auferido na BM&F para a matriz, no exterior, sem o recolhimento de tributos devidos sobre essas operações, a nosso ver, de natureza especulativa. Ou seja: realiza um ganho estupendo, em Reais, com a liquidação de sua posição de compra de dólar no mercado de futuros e, concomitantemente, perde um valor correspondente a favor de sua matriz norte americana” (cf. BCB, PT nº 9900927695, p. 440, rel. cit., p. 274, grifo nosso).
e) “Há indícios de que o Banco utilizou-se do artifício de realizar operações de venda de câmbio financeiras com liquidação futura com o BankBoston Leasing S. A. com o propósito de encobrir uma posição de câmbio comprada, de aproximadamente US$ 190 milhões, em 14 de janeiro de 1999. O que sujeitaria o banco a depositar no Bacen o excedente a cinco milhões, caso não tivesse realizado as vendas de operação com leasing” (cf. BCB, PT Nº 9900933608, rel. cit., p. 269; trata-se de uma sonegação de US$ 185 milhões, que deveriam ser recolhidos ao BC. Esse trecho foi lido pelo presidente da CPMI do Banestado, durante a sabatina de Meirelles no Senado, a 17/12/2002, sem que Meirelles protestasse).
f) Os técnicos do BC chegaram a recomendar, tendo em vista a atividade gangsterística do BankBoston sob a direção de Meirelles, a mudança das regras do próprio Banco Central: “… o controle da volatilidade dos capitais do grupo Boston – fortemente prejudicial para o país, uma vez que fogem rapidamente a qualquer sinal de instabilidade, potencializando e exacerbando as expectativas negativas, como na época em que ocorreram as transferências em tela – passa por alteração/supressão do Art. 12 da Circ. 2677, que viabiliza e ampara as transferências do tipo” (cf. BCB, PT nº 9900943883, p. 230-231, Rel. cit., p. 271).
g) O mesmo problema – as regras do BC, feitas para beneficiar escroques financeiros, de preferência estrangeiros – é constatado pelos técnicos em outro processo, no qual o BankBoston simulou uma compra e venda de dólares entre duas empresas do mesmo grupo: “Não obstante nas operações Tipo 03, o vendedor do câmbio (BankBoston Banco Múltiplo) ter obtido 18% a mais em moeda nacional [que a cotação de mercado] para cada dólar comprado pelo BankBoston N.A. [Nassau, Bahamas], esclarecemos que tais operações não são passíveis de repasse ao Banco Central, uma vez que a Circ. Nº 1.965/91 estabelece tal mecanismo somente para as operações de venda de câmbio” (cf. BCB, PT nº 9900951565, p. 26, Rel. cit., p. 273).
Vejamos, agora, como os técnicos do BC avaliaram o resultado dessas operações (tudo isso corresponde a apenas cinco, dos 64 processos instaurados no BC contra o BankBoston):
I – “… [o BankBoston] manteve em seu poder, entre 14.01 e 26.01.1999, um elevado estoque de moeda estrangeira (US$ 195.312.323,76), deixando, com as estruturações realizadas, de cumprir a obrigatoriedade de depositar, no Banco Central do Brasil, o montante que excedesse a US$ 5.000.000,00”.
II – “… montou uma ‘operação de derivativo’ com a sua matriz americana, fabricando um ‘prejuízo’ de US$ 242.786.885,25, com a frágil alegação de tratar-se de ‘hedge’ de empréstimos tomados no exterior e de financiamentos de importação. A atuação do banco, nessas operações, transgride as disposições da Resolução nº 2.012 e da Circular nº 2.348” (cf. BCB, PT nº 9900927695, p.446, rel. cit., p. 275).
Note o leitor que essa pilhagem do país em mais de US$ 400 milhões, corresponde à atuação do BankBoston, sob a direção de Meirelles, somente durante os últimos 15 dias de janeiro de 1999 – quando o plano real explodiu e o país foi levado à bancarrota – e somente como constatado em cinco processos analisados pelos técnicos do BC e reproduzidos pela CPI dos Bancos.
Como observou, depois, o presidente da CPMI do Banestado, “tratavam-se de operações incomuns, de grande porte, envolvendo suspeitas de crimes de evasão de divisas, de sonegação fiscal, de simulações de grandes operações no Brasil e com a matriz no exterior. São operações que, pelo seu volume financeiro, não são realizadas sem o conhecimento e a aprovação da Presidência do Banco nos EUA, então ocupada pelo Sr. Henrique Meirelles”.
Isso era bastante conhecido, sobretudo do PT, pois o deputado Aloísio Mercadante foi um dos principais colaboradores da CPI dos Bancos.
Mas não impediu, assim como a sua filiação ao PSDB, que Lula nomeasse Meirelles para a presidência do BC.
Nem que o deputado – aliás, senador eleito – Aloizio Mercadante desmentisse o que dissera, três anos antes, na CPI dos Bancos, sobre as irregularidades cometidas pelo BankBoston, como informou o próprio Meirelles à Comissão de Assuntos Econômicos do Senado.
O problema é que o desmentido é que era mentira.
3
Os indícios examinados pela Procuradoria Geral da República, em 2004-2005, apontavam para Meirelles como responsável pelo envio de R$ 1,4 bilhão ao exterior, através da Boston Comercial e Participações.
O que ele havia dito sobre o assunto, na sabatina do Senado, em 2002 (“as entidades referidas não são, na realidade, entidades pelas quais eu era o responsável direto. Antes de mais nada, eu não era presidente nem diretor de nenhuma dessas entidades do Brasil”), era pior – ou menor – que uma folha de parreira: que o presidente do BankBoston ignorasse uma transferência de um bilhão de dólares para os seus cofres, logo depois da moratória da Rússia, era coisa que nem a velhinha de Taubaté acreditaria.
Mas não havia como prová-lo sem a quebra do sigilo da conta CC5 pela qual a Boston Comercial e Participações enviara o dinheiro para uma filial do BankBoston em Nassau, nas Bahamas (Conta CC5 n° 00089713052 Nassau Branch of BankBoston NA).
O mesmo documento da Procuradoria revela que a conta oculta a partir da qual Meirelles transferiu US$ 50.677,12 aos doleiros da Biscay Trading, não era uma conta no BankBoston, mas no Goldman Sachs.
Qual a necessidade de Meirelles, presidente do BankBoston durante largos anos, operar uma conta oculta em outro banco? A hipótese mais provável para esse ocultamento é que se tratasse, exatamente, de uma manobra de ocultamento. Não é uma tautologia, leitor. Nesse último caso, trata-se de um ocultamento para burlar as leis e o público.
É peculiar que o deputado Mentor (PT-SP), em seu relatório da CPMI do Banestado, tenha encontrado, nessa questão, uma forma original para absolver Meirelles:
“A transferência de recursos em análise, inexpressiva em face da linha de investigação adotada e da renda e patrimônio de Meireles, foi objeto de justificativa espontânea ao relator, em correspondência datada de 07 de outubro de 2004, onde reafirma que não tinha como saber quem era o titular da conta em que realizava o pagamento de suas despesas, sendo impossível fazer a verificação ou auditoria das contas para as quais faz depósitos ou verificar qual o destino que terá o valor depositado. O pagamento mediante transferência bancária é prática corriqueira nos Estados Unidos e não comporta a figura do ‘doleiro’, que é uma atividade censurada no Brasil” (grifos nossos).
Logo, Meirelles era inocente, segundo Mentor, porque tinha muito dinheiro e porque nos EUA não existem “doleiros” (era só o que faltava, em um país no qual o dólar é a própria moeda corrente – e os grandes bancos monopolizam o dinheiro, portanto, o “mercado” de câmbio).
O fato de que Meirelles estava transferindo dinheiro para a conta de uma quadrilha de doleiros brasileiros, sem apresentar justificativa, não fez piscar o relator da CPMI. O sujeito que tem muito dinheiro não deve ser culpado, mesmo que faça um “pequeno” depósito na conta de Al Capone…
Mas, retomemos o inquérito da Procuradoria, que informa sobre as gestões realizadas junto ao Ministério Público de Nova Iorque:
“O Promotor de Justiça de Nova York, Adam Kaufmann, confirmou a quebra de sigilo bancário de bancos e instituições financeiras envolvidas nas transações efetuadas pelo Sr. Henrique Meirelles e seus sócios e requereu a adoção do mesmo procedimento investigatório no Brasil, para que, definitivamente, possamos efetuar o cruzamento das operações financeiras de remessa de ativos para ambos os países e determinar, com precisão, o quanto o investigado engajou-se na prática de crimes financeiros.”
Por fim, o Procurador solicitava “acesso aos extratos bancários das contas operadas pela Boston Comercial e Participações Ltda., Silvânia Empreendimentos e Participações Ltda., e das contas CC5 do Banco de Boston e do Sr. Henrique Meirelles utilizadas para a remessa de dinheiro para o exterior”.
Essas contas, cujo sigilo ainda não fora quebrado, eram, sobretudo (isto é, as mais importantes):
a) Conta n° 84.027308, no BankBoston Banco Múltiplo S.A., da empresa Boston Comercial e Participações Ltda.
b) Conta CC5 n° 00089713052, Nassau Branch of BankBoston NA, por onde foi efetivada a remessa de 1,4 bilhão de reais ao exterior.
No pedido de quebra de sigilo ao STF, frisava o Procurador:
“O investigado não trouxe aos autos prova de atividades comerciais exercidas nos Estados Unidos pelas empresas Silvania One LLC, Silvania Two LLC, Tranquil Bay LLC e Red Horizon LLC, havendo indícios que não apresentem de fato qualquer atividade comercial, conforme revelam os documentos anexos obtidos junto ao ‘Departament of Homeland Security – DHS’ em Newark, Nova Jersey. As empresas apresentam como único ato comercial (‘Filing History’) a sua constituição. Todas são agenciadas por outra empresa com sede em Delaware (‘Agent Information’)”.
Em seguida, o documento esboça os laços entre as “empresas” de Meirelles e as do BankBoston:
“Por outro lado, as offshores controladas pelo Sr. Henrique Meirelles, Silk Cotton Investments Limited e Yameto Corporation Limited, segundo documentos encaminhados pelo Ofício 4779 Coaf-MF, de 08/06/2005, do Conselho de Controle de Atividades Financeiras – COAF, são agenciadas pelo BankBoston Trust Company Limited, Charlotte House, Charlotte Street, P.O. Box N-3930, Nassau, Bahamas, mesmo endereço de suas sedes. Daí a necessidade de exame da movimentação financeira da conta CC5 n° 00089713052, titularizada pelo não residente Nassau Branch of BankBoston NA e mantida no BankBoston Banco Múltiplo S.A., sediado em São Paulo/SP, por onde foi efetivada a remessa de R$ 1,4 bilhão de reais ao exterior, bem como da Conta CC5 n° 00602546041, titularizada pelo não residente Henrique de Campos Meirelles e mantida no BankBoston Banco Múltiplo S.A. sediado em São Paulo/SP.”
Sobre as empresas “brasileiras” do BankBoston, a Procuradoria observava algo que seria inusitado, se o escândalo do Banestado não tivesse aberto, já, um cofre repleto de horrores criminais financeiros:
“Nas informações do Banco Central, a respeito da Boston Comercial e Participações Ltda, depois de chamar a atenção a transferência de valores exorbitantes (R$1.372. 499. 174,79), como foi no presente caso, sem a exigência de um único comprovante, chama a atenção que os documentos entre empresas Boston são tão repetitivos que chegam a cometer erros primários, como a Nota Promissória onde a empresa Boston Administração e Empreendimentos figura, ao mesmo tempo como credora e devedora, quando, conforme contrato de mútuo, a mutuária é a Boston Comercial e Participações Ltda, bem como para a circunstância de a empresa estar utilizando-se de dois CGCs [CNPJs], um dos balanços patrimoniais/demonstrativo de resultados e outro para as transferências ao exterior e nas operações de mútuo.” (grifos nossos).
Evidentemente, essas irregularidades apontavam para empresas de fachada.
Ou, nas palavras do presidente da CPI do Banestado:
“… o balanço revelava uma empresa com patrimônio líquido inferior a R$ 7 milhões e um passivo descomunal, de R$ 1,5 bilhão, abrigado sob a rubrica genérica ‘Outras Obrigações’. Esse passivo financiava R$ 1,2 bilhão em aplicações de renda fixa e o restante em créditos de exportações (R$ 124 milhões), de sociedades ligadas (R$ 36 milhões) e outros não especificados (R$ 49 milhões), além de um ativo permanente de R$ 78 milhões (grifo nosso).
“… a principal fonte de recursos da empresa, responsável por R$ 1,5 bilhões, foi apresentada de forma encoberta, como ‘Outras Obrigações’, que normalmente é utilizada para reunir valores de menor expressão. A falta de transparência na apresentação de informações fundamentais exigidas pelo Banco Central para cumprir sua atribuição fiscalizadora foi adotada de forma proposital e acintosa.
“A empresa, portanto, apresentava-se com o perfil típico daquelas utilizadas em lavagem de dinheiro, pois não tinha atividades operacionais, a não ser aquelas típicas derivadas de Intermediação financeira, aplicando em renda fixa recursos cuja origem ocultava no seu balanço” (cf. CPMI do Banestado, Voto em Separado, pp. 166-167).
POLÍCIA
Desde abril de 1997, os técnicos do Banco Central haviam detectado – e denunciado – o esquema de Foz do Iguaçu. Essa foi a origem da Operação Macuco, da Polícia Federal, chefiada pelo delegado José Francisco Castilho Neto, que expôs o esquema Banestado.
Castilho, posteriormente, foi afastado das investigações, na tentativa de abafamento mais sórdida – pelo menos até então – da história do país. Na Operação Macuco, trabalhava também o procurador Carlos Fernando Santos Lima, hoje na Operação Lava Jato.
Após o depoimento, a 29 de julho de 2003, do delegado Castilho na CPI do Banestado, em que ele denunciou a paralisação das investigações depois de ser destituído da chefia delas, o então deputado Paulo Bernardo (PT-PR) declarou que Castilho era um homem “perigoso” e que “as declarações feitas à CPI pelo policial federal em nada ajudam as investigações”.
Por que “perigoso”? Para quem Castilho era “perigoso”?
Castilho colocou à disposição da CPI o relatório da Operação Macuco – cujas ações haviam originado a própria CPI. Por que isso “não ajudava” as investigações? O mais interessante é que o levantamento do esquema nos EUA, pela CPI, foi devido à orientação do delegado Castilho.
A CPI fora proposta, em primeiro lugar, pela senadora Ideli Salvatti (PT-SC). Porém, após o depoimento do delegado Castilho, em abril de 2003, na Comissão de Fiscalização e Controle do Senado, ela recuou subitamente. Mas já era tarde.
BANCOS
O esquema do BankBoston era idêntico ao esquema criminoso de Foz do Iguaçu: “O Banco registrou na Junta Comercial uma empresa não-financeira que não tinha atividades operacionais, a qual acolheu depósitos em suas contas correntes de origem não identificada e remeteu os recursos ao exterior, camuflando a identidade de seus efetivos proprietários” (cf. CPMI Banestado, Voto em separado, p. 170).
A então diretoria do BC, chefiada pelo sr. Armínio Fraga, sujeito em que até a nacionalidade é dupla (americano-brasileira), fez o possível para abafar o caso, contra os próprios técnicos do BC.
O que não permitiu que isso acontecesse foi a CPI dos Bancos. Mais de três anos após a remessa de US$ 1 bilhão – com uma tentativa de arquivamento do processo pelo meio – um funcionário do BC, farto de tantas protelações, escreveu, em um documento interno:
“Em agosto de 1999, o processo, ainda no segundo volume, foi requisitado pelo Grupo de Trabalho constituído para o atendimento (…) da Comissão Parlamentar de Inquérito do Sistema Financeiro Nacional.
“… tive oportunidade de solicitar à então DESPA/RECAM, em 24.05.99, que verificasse o fluxo de remessas e retornos da referida empresa no período de 01.06.98 a 21.05.99, e a origem dos recursos remetidos, com vistas a eventual comunicação ao Ministério Público” (grifo no original).
“… a verificação por mim solicitada em 24.05.99 não foi feita em virtude de o processo estar na DESPA/REJUR desde 11.05.99”.
“… atualmente o processo está com 9 volumes, 1266 páginas e ainda não se sabe a real origem dos R$1.372.499.174,99 remetidos para o exterior de 02.06.98 a 10.02.99, pela Boston Comercial e Participações Ltda” (grifo no original).
“Propõe-se usar da oportunidade para resolver a aparente recalcitrância do BANKBOSTON, e das empresas que completam o grupo, em fornecer as informações solicitadas pelo Grupo de Trabalho, com vistas a esclarecer, de uma vez por todas, os reais titulares dos recursos remetidos e os respectivos negócios subjacentes que lastrearam as remessas, mediante o encaminhamento deste processo ao Grupo de Trabalho, que poderia, também, gestionar junto à Superintendência da Receita Federal no sentido de obter os resultados decorrentes de nossas comunicações” (cf. BCB, PT 9900943883, vol. 9, fls. 1267/1268, parecer do consultor Fernando Celso Gomes de Souza, 03/10/2001).
Quando Meirelles, graças aos préstimos do PT, assumiu o BC, o processo continuava paralisado.
ÀS FAVAS
Mas a PF e os Procuradores continuavam a investigar. Foi nesse contexto que Lula nomeou Meirelles ministro, por Medida Provisória.
O principal obstáculo que Lula encontrou, no entanto, foi o Procurador Geral da República, Cláudio Fonteles.
Ao mesmo tempo, o maior defensor de Lula e Meirelles, para fazer com que o então presidente do BC fugisse das investigações, foi o ministro Gilmar Mendes, relator das Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADIs) movidas pelo PSDB e pelo então PFL.
Entre o PSDB e o PFL, de um lado, e Meirelles-Lula, de outro, Gilmar não vacilou. Ficou com Lula e, antes de tudo, com Meirelles – entre os tucanos e Wall Street, não havia dúvida sobre a sua preferência.
Respondendo às alegações do governo Lula, o Procurador Geral da República escrevera:
“Não há relevante interesse público (relevância e urgência – estado de necessidade) que justifique a transformação imediata do cargo de Presidente do Banco Central em cargo de Ministro de Estado. Isso porque, em data recente (28.5.2003), a organização da Presidência da República e dos Ministérios foi regulamentada pela Lei n° 10.683/03. Passado cerca de um ano desde a promulgação da referida lei, não se constata modificação das circunstâncias fáticas ou jurídicas justificadora da alteração legislativa.
“É fato notório que a transformação do cargo de Presidente do Banco Central em cargo de Ministro de Estado visa, em primeira linha, à concessão àquele de prerrogativa de foro, para que seja julgado pela instância máxima da organização judiciária brasileira, o Supremo Tribunal Federal, justamente num momento em que está sob investigação do Ministério Público Federal a respeito de sua regularidade fiscal e eleitoral” (cf. PGR, Parecer n.º 3.729/CF, p. 10, grifo nosso).
Gilmar Mendes nem fingiu que estava examinando algo do ponto de vista jurídico. Pelo contrário, mostrou-se um insigne membro da escola daquele ministro da ditadura, que, ao assinar o AI-5, proferiu a sentença imortal: “Às favas todos os escrúpulos de consciência”. Escreveu Mendes, em seu relatório sobre as ADIs que questionavam o transformismo de Meirelles em ministro:
“Em verdade, no caso em exame, considerada essa dimensão política e a situação singular do Banco Central, não me pareceria absurda uma justificativa explícita, pelo Presidente da República, no sentido de que a Medida ora impugnada teria sido editada tão-somente para conferir prerrogativa de foro ao Presidente do Banco Central. Também não seria disparatado se a exposição de motivos da MP 207 dissesse claramente que estaria sendo editada para o fim de afastar o Presidente do Banco Central de uma avalanche de ações ajuizadas na primeira instância do Poder Judiciário. Tal justificativa não traria, em si, um indício de abuso no poder de legislar” (grifos nossos).
É interessante que, 10 anos depois, ele não tivesse a mesma opinião sobre a nomeação de Lula para ministro da Casa Civil, feita por Dilma pelas mesmas razões que o próprio Lula havia transformado Meirelles em ministro…
O outro grande defensor da ministerialização de Meirelles foi Nelson Jobim, então presidente do STF. Como antigo advogado de multinacionais, não se poderia esperar outra coisa.
4
A sabatina de Meirelles no Senado, em dezembro de 2002, após sua indicação para o Banco Central, por Lula, foi aquilo que o saudoso professor do Colégio Pedro II (e combatente contra a ditadura) J.G. de Araújo Jorge chamaria de “espetáculo curioso”.
A direção do PT fechou questão, para impedir que a senadora Heloísa Helena evidenciasse os problemas do indicado. Outros senadores (Pedro Simon, p. ex.) aprovaram Meirelles como “voto de confiança” ao presidente que ainda não fora empossado.
Porém, Meirelles teve que ouvir do senador Antero Paes de Barros (PSDB-MT) uma locução sobre os negócios que ocultara – e o BC detectara.
Depois, indagou o senador Jefferson Péres (PDT-AM):
“Pedi informações a seu respeito a um parlamentar por Goiás, a quem perguntei como V. Sª conquistara o mandato de deputado. O parlamentar me disse – são palavras dele – que V. Sª não havia conquistado o mandato, mas o havia comprado. O que V. Sª tem a dizer a esse respeito?”
E, em seguida, o mesmo senador:
“… quando V. Sª resolveu, na sua primeira experiência de vida pública, se candidatar a senador ou a deputado – acabou sendo deputado -, procurou o PTB, o PMDB, o PFL e afinal se fixou no PSDB, pelo qual se elegeu. Agora, eleito, renuncia ao mandato, atende a um chamado do PT e resolve servir ao novo Governo. (…) PTB, PMDB, PFL, PSDB e PT são todos a mesma coisa? É essa a sua concepção de vida pública?”
À primeira pergunta, Meirelles respondeu:
“… eu não só fui o candidato a Deputado Federal mais votado do Estado, mas, mais importante, fui muito votado nas grandes cidades, como na 1.ª Zona de Goiânia e Rio Verde; fui o segundo mais votado em Anápolis. Em resumo, em cidades onde a população, certamente, (…) sofre menos a influência do chamado poder econômico. Mas tive também votos nas pequenas cidades. O que eu gostaria de lhes dizer é que a minha campanha eleitoral foi feita mostrando a minha carreira, e reputo a minha eleição ao fato de o povo de Goiás ter dado o devido valor à minha carreira profissional”.
Portanto, o povo de Goiás votara nele por estar orgulhoso de ter um conterrâneo na presidência do BankBoston… Não foi necessário, portanto, abusar do dinheiro – nem daqueles US$ 2.800.000,00 (dois milhões e oitocentos mil dólares), que, segundo o BC, ele internalizara no país através de uma de suas empresas-fantasma, a Silvania Empreendimentos e Participações Ltda…
Quanto à segunda questão, disse Meirelles que não procurou os partidos. Ao contrário, foi procurado por eles: “O que me credenciou foi uma vida de muito trabalho, conquistas profissionais e probidade pessoal”.
FRANGOS
O inquérito contra Meirelles foi interrompido (“sobrestado”) em abril de 2005, devido à sua elevação a ministro pelo então presidente Lula, até o julgamento das Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADIs) contra essa medida. O principal defensor dessa interrupção (“sobrestamento”) foi o relator dessas ADIs, ministro Gilmar Mendes (cf. STF, Questão de Ordem em Inquérito 2.206-3/DF, Tribunal Pleno, 14/04/2005).
O STF aprovou a promoção de Meirelles a ministro, apesar de chefiar uma repartição do Ministério da Fazenda – e apesar de outros problemas evidentes: é óbvio, como apontou o Procurador Geral, Cláudio Fonteles, que se tratava de um “desvio de finalidade”, pois a única razão para nomeá-lo ministro era possibilitar que fugisse das investigações.
Para aprovar esse absurdo constitucional, foi necessário o voto de Nelson Jobim, então presidente do STF, pois votaram contra o relator (Gilmar Mendes), os ministros Ayres de Britto, Marco Aurélio, Carlos Velloso, Sepúlveda Pertence, e, parcialmente, Celso de Mello (ao leitor interessado em temas jurídicos, sugerimos a leitura desse julgamento, onde ressalta o comportamento de Jobim, interrompendo seus pares com opinião divergente da sua: cf. STF, Revista Trimestral de Jurisprudência, vol. 196, tomo 2, pp. 506-548).
Mas, agora, Meirelles tinha outro problema: ao virar “ministro”, o inquérito foi para as mãos do Procurador Geral da República, Cláudio Fonteles, um homem de quem se pode discordar, mas sempre um homem de respeito. Que, aliás, não foi reconduzido à função por Lula.
A substituição de Fonteles na Procuradoria Geral da República – por Antonio Fernando Barros e Silva de Souza – foi, na época, atribuída à posição contra o aborto do então Procurador. É possível, considerando que certas alas do PT veem o aborto quase como questão de princípio, às vezes, a única. Porém, é difícil pensar que o inquérito sobre Meirelles não tivesse alguma influência na decisão de não reconduzi-lo (ou na decisão do próprio Fonteles, diante da atitude do governo, de declarar que não queria a recondução: disse o senador Pedro Simon, que Fonteles acederia a um pedido de Lula para continuar no cargo. Mas esse pedido jamais ocorreu).
[Para completar o relato: Lula devia a Fonteles a limpeza que fez no Ministério Público, cuja necessidade apareceu de modo agudo no episódio em que um procurador, ligado a José Serra, tentou usar o banqueiro de bicho Carlos Cachoeira contra o governo (v. HP 02/04/04, “Procurador de Serra usou o cargo para intrigar e ‘derrubar’ o governo Lula”). Apesar disso, Fonteles foi considerado inconveniente pelo governo; além das questões já mencionadas, por pedir a instalação de um inquérito sobre o então ministro da Previdência, Romero Jucá (PMDB/RR) – uma empresa de Jucá, a Frangonorte, tomara emprestado R$ 3,152 milhões no Banco da Amazônia (BASA) para desenvolver a produção de frangos, mas uma fiscalização constatara que na empresa “não existe um único frango, a fábrica de ração está parada sem milho/ração, com estoque nulo. O abatedouro está parado, idem incubadora, câmaras, escritório, tudo desativado”.]
PARAÍSOS
O STF não permitiu a quebra de sigilo das contas da Boston Comercial Participações Ltda., em especial a conta CC5 no BankBoston de Nassau, nas Bahamas.
O que fez com que a investigação acabasse. Ao indeferir, o ministro Marco Aurélio Mello, relator do processo, afirmou:
“O que não cabe, por extravasar os limites da razoabilidade, da proporcionalidade, é colocar em risco o Sistema Bancário Nacional, a confiança dos cidadãos nas regras até aqui observadas, partindo para o que já foi apontado como uma verdadeira devassa, não deixando pedra sobre pedra no tocante à movimentação bancária que, sob o manto da presunção de legitimidade, envolveu não só o indiciado, mas inúmeras pessoas que, assim, teriam a privacidade vasculhada” (Decisão, Inquérito nº 2.206-3/DF, 07/08/2005).
Foi um equívoco do ministro. As pessoas a quem se refere, que “teriam a privacidade vasculhada” eram as possuidoras (ou utilizadoras) da conta CC5 no Nassau Branch of BankBoston, nas Bahamas, aberta pela Boston Comercial Participações Ltda.
Sobre isso, ao dizer, no julgamento do recurso da Procuradoria contra a sua decisão, que “não é mesmo crível que o cidadão Henrique de Campos Meirelles tenha essa vultosa importância: um bilhão e quatrocentos milhões de reais!”, o ministro enfatizou algo que aparecera seis anos antes, na CPI dos Bancos, quando o então secretário da Receita Federal, Everardo Maciel, falara de uma evasão de divisas de “40 ou 50 bilhões [de dólares]” que “vai por conta CC5, vai da forma mais fraudulenta possível” (cf. Relatório da CPI dos Bancos, 1999, p. 335).
É óbvio que era a esse submundo – em que o sigilo serve, basicamente, para esconder transações ilegais, criminosas e antissociais, isto é, contra o país – que Meirelles pertencia. Essa era a questão decisiva.
O que a CPI dos Bancos apontara em 1999, foi inteiramente confirmado pela CPI do Banestado, em 2003-2004. Somente a Operação Macuco – origem desta última CPI – identificou remessas de US$ 30 bilhões para o exterior. A operação das “contas CC5” por criminosos, devido às regras frouxas ou inexistentes estabelecidas pela diretoria do BC, tornou-se corriqueira, como relata o presidente da CPI do Banestado:
“… passaram a funcionar no Brasil instituições financeiras sem qualquer registro ou existência física, aproveitando-se das facilidades fornecidas por paraísos fiscais. Os titulares das contas CC5 usadas de forma irregular eram, geralmente, ‘instituições financeiras’ sediadas em paraísos fiscais. Essas empresas nomeavam procuradores no Brasil para abrir a conta e movimentá-la. As contas passam a receber depósitos e a ‘instituição financeira’ estrangeira passa a utilizar esses recursos para comprar dólares de bancos brasileiros, através do mercado de câmbio de taxas flutuantes e enviá-los para fora do País. Nessas operações, os bancos brasileiros não levavam em conta a origem dos recursos em moeda nacional” (cf. Voto em separado, p. 60, grifo nosso).
Esse era exatamente o caso da conta da Boston Comercial Participações no BankBoston de Nassau, Bahamas.
O argumento de que a quebra de sigilo dessa conta CC5 resultaria em prejuízo para “inúmeras pessoas” foi respondido no recurso (“agravo regimental”) da Procuradoria contra a decisão do ministro Marco Aurélio:
“É importante destacar que não se pede a quebra do sigilo bancário de uma instituição financeira como um todo, mas apenas de uma conta titularizada por uma instituição financeira não residente e não autorizada a funcionar em nosso país, por onde houve remessa de bilhões de reais cuja origem não comprovada pelo investigado ou pelo Banco Central” (grifo nosso).
A Procuradoria Geral advertia que “o indeferimento questionado, (…), inviabiliza o prosseguimento das investigações, na medida em que somente com a quebra do sigilo na forma requerida será possível a formação de juízo seguro sobre eventual ocorrência de crimes contra o sistema financeiro nacional e de lavagem de dinheiro por meio da complexa rede de empresas sediadas no Brasil, nos EUA e Cayman”.
Entretanto, a responsabilidade pelo indeferimento do pedido de quebra de sigilo desta conta não foi apenas do ministro Marco Aurélio ou dos que votaram com ele quando do julgamento do recurso da Procuradoria (foram a favor da quebra de sigilo os ministros Joaquim Barbosa, Ayres Britto e Celso de Mello; estavam ausentes os ministros Sepúlveda Pertence e Cezar Peluso).
O novo Procurador Geral, Antonio Fernando Barros e Silva de Souza – que substituíra Cláudio Fonteles – abrira a porta para o indeferimento, ao dizer que os dados provenientes das quebras de sigilo anteriores não haviam sido ainda analisados.
Como notou o ministro Joaquim Barbosa, tal questão nada tinha a ver com a nova quebra de sigilo: “… o fato de o Ministério Público não se ter debruçado sobre o material fornecido pelo indiciado e colhido nas diligências anteriores não inviabiliza a análise dos dados bancários das contas CC5. No que concerne à alegação de que seria devassada a intimidade de terceiros não envolvidos nos fatos em apuração, observo que as contas de não residentes (CC-5), muito embora, no presente caso, sejam titularizadas por pessoas jurídicas específicas, são usadas, de fato, por pessoas físicas e jurídicas cuja identidade é ignorada. O que não se admite, a meu ver, é a atribuição de caráter absoluto ao sigilo bancário, o qual, embora constitucionalmente garantido, deve ceder diante do interesse público na apuração de crimes mais graves, sob pena de se inviabilizar a persecução penal, mormente quando se tratar de contas que possibilitem a remessa de valores ao exterior, por pessoas cuja identidade se ignore e cuja identificação possa levar à descoberta da verdade”.
No entanto, foi sobre essa base que o STF recusou uma nova quebra de sigilo – a mais importante delas, a da conta CC5 no Nassau Branch of BankBoston.
AJUSTES
As declarações de renda de Meirelles foram analisadas no inquérito. Alguns trechos do relatório da Procuradoria (os grifos estão no original, encaminhado ao STF):
“O Sr. Henrique Meirelles, conforme declaração de ajuste e saída definitiva do país, possuía um patrimônio de R$ 1.809.561,45 (um milhão, oitocentos e nove mil reais e quinhentos e sessenta e um reais e quarenta e cinco centavos). (…)
“Quando retorna ao país, declara no ajuste de 2002 possuir um patrimônio em 2001 de R$ 104.499.727,92 (cento e quatro milhões quatrocentos e noventa e nove mil e setecentas e vinte e sete reais e noventa e dois centavos), o que corresponde a um aumento patrimonial em cinco anos de R$ 102.690.166,47 (cento e dois milhões, seiscentos e noventa mil, cento e sessenta e seis reais e quarenta e sete centavos).
“Houve uma média de acréscimo patrimonial de R$ 20.538.033,29 (vinte milhões, quinhentos e trinta e oito mil, trinta e três reais e vinte e nove centavos) por ano, totalmente incompatível com seus rendimentos e aplicações financeiras.
“Em suas declarações de imposto de renda, oferece à tributação no ano de 2002, apenas R$ 4.313.474,86 (quatro milhões, trezentos e treze mil, quatrocentos e setenta e quatro reais e oitenta e seis centavos) pelos 7 (sete) meses de residente. Já no ano de 2003, oferece à tributação R$ 6.893.170,94 (seis milhões, oitocentos e noventa e três mil e cento e setenta reais e noventa e quatro centavos). Em termos absolutos, em cinco anos, o representado somente teria em torno de R$ 35 milhões, sem descontar os pagamentos por ele efetuados.
“Temos portanto, um acréscimo patrimonial a descoberto, em total descompasso com a renda e aplicações financeiras do representado (…)”.
Há um jogo ilícito evidente (e incoerente), usando a suposta tributação de bens no exterior:
“Curioso notar, também, que no ano de 2002, embora tenha recebido do exterior em torno de R$ 4 milhões, declara ter recolhido no exterior o imposto de R$ 830.921,82 (oitocentos e trinta mil, novecentos e vinte e um reais e oitenta e dois centavos). No ano seguinte, declara ter recebido do exterior em torno de R$ 7 milhões, lança como imposto pago no exterior valor menor, de R$ 577.376,08 (quinhentos e setenta e sete mil, trezentos e setenta e seis reais e oito centavos). Deve-se considerar também que no ano de 2002 houve [declaração] retificadora do imposto pago no exterior, aumentando o seu valor na ordem de R$ 20 mil reais. Os impostos pagos no exterior possibilitam a sua dedução no Brasil”.
Meirelles usava uma suposta tributação no exterior para reduzir (e haja redução!) os impostos que teria de pagar no Brasil:
“A manipulação de valores de impostos pagos no exterior de forma desproporcional aos rendimentos oferecidos à tributação constitui indício de ocultação de bens ou renda no exterior” (grifo no original).
A consequência dessa manipulação era a seguinte:
“No ano de 2002, o Sr. Henrique Meirelles, segundo suas próprias declarações de imposto de renda, já era residente no país desde junho de 2002 (…). Na condição de residente do país, (…) a partir de junho de 2002, ele deveria recolher o imposto de renda sobre o ganho de capital (…). No entanto, em sua declaração de ajustes, do exercício de 2003, ano calendário 2002, não há qualquer recolhimento de imposto de renda sobre ganho de capital, apesar de declarar diversos investimentos, aplicações e direitos a receber do exterior”.
Aqui, por fim, voltemos ao caso Banestado, para entender melhor a pirâmide de empresas-fantasmas montada por Meirelles.
VIDA
“… o Sr. Henrique Meirelles, na qualidade de acionista e detentor de opções de compra de ações do Grupo Boston, era um grande beneficiário dos lucros proporcionados pelas operações de evasão de divisas, assim como por negócios simulados com a matriz nos EUA, que evitavam os tributos devidos no Brasil.
“A empresa, portanto, apresentava-se com o perfil típico daquelas utilizadas em lavagem de dinheiro, pois não tinha atividades operacionais, a não ser aquelas típicas derivadas de intermediação financeira, aplicando em renda fixa recursos cuja origem ocultava no seu balanço.
“Há indícios que o Bank de Boston patrocinou esquemas voltados para a evasão de divisas e sonegação de impostos, além de resistir em atender às determinações do Banco Central, oferecendo embaraços à fiscalização” (cf. Relatório dos Trabalhos da CPMI do Banestado, pp. 161, 164 e 166, grifo no original).
Com essa amostra da “vida de muito trabalho, conquistas profissionais e probidade pessoal” de Meirelles, encerramos esta série. Por enquanto.