Lula, no momento, está lutando para ficar na cadeia – a encenação de “preso político” está cobrando o seu preço. Qual o preso político verdadeiro que não preferiria sair da cadeia – ainda que para um regime “semiaberto” – e melhorar suas condições para o combate?
Mas para quem só pensa em si próprio – e, por consequência, que os outros, e tudo o mais, devem girar em torno de si – as coisas não são assim. O preço é o ridículo.
Enquanto isso, o livro de memórias do ex-procurador geral Rodrigo Janot virou coqueluche (haja gíria antiga!) na Internet. E, realmente, ele é bastante interessante, pelo relato de sua participação na Operação Lava Jato – inclusive pelo retrato de outros participantes (por exemplo, o procurador Deltan Dallagnol, que não sai bem).
O livro de Janot é muito mais interessante do que a sua afirmação, em entrevista ao jornal “O Estado de S. Paulo”, de que entrou armado no STF, mas a “mão de Deus” o impediu de atirar no sr. Gilmar Mendes.
No livro, esse episódio é tratado de modo mais contido:
“… quando atacavam Letícia [sua filha] com aquelas insinuações maldosas, era como se estivessem arrancando meu fígado sem anestesia. Num dos momentos de dor aguda, de ira cega, botei uma pistola carregada na cintura e por muito pouco não descarreguei na cabeça de uma autoridade de língua ferina que, em meio àquela algaravia orquestrada pelos investigados [da Lava Jato], resolvera fazer graça com minha filha. Só não houve o gesto extremo porque, no instante decisivo, a mão invisível do bom senso tocou meu ombro e disse: não.”
Não é a melhor coisa para as memórias de um procurador geral da República. Porém, é mais compreensível – mais humanamente compreensível – que o relato publicado no “Estadão”.
O PALADINO
Entretanto, a essa altura dos acontecimentos, com seus ataques a Janot e aos procuradores da Operação Lava Jato, Gilmar Mendes virou herói petista – status que, aliás, ele está correspondendo plenamente (v. Gilmar Mendes: Lula merece um novo julgamento, Brasil247 04/09/2019; ou Devemos ao Lula um julgamento justo, diz Gilmar Mendes, Exame 23/08/2019).
Enquanto isso, ele usa o seu cargo para livrar Flávio Bolsonaro das investigações. Por que ele iria ficar fora de mais essa? O estranho é que ele parece ser atraído pela proteção dos ricos e ladrões. O caso Daniel Dantas foi apenas um marco público. E nem falemos do estuprador em série Roger Abdelmassih (v. HP 01/10/2019, Gilmar Mendes entra na “operação abafa” em favor de Flávio Bolsonaro).
Mas, voltemos ao caso de Lula.
Será que Mendes e seus incensadores de hoje esqueceram que o golpe de misericórdia (aliás, sem misericórdia) em Lula (e em Dilma) não foi dado por Moro – agora um cortesão de Bolsonaro -, mas, exatamente, pelo ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal (STF), ao impedir que Lula, nomeado por Dilma, fosse ministro da Casa Civil?
É pouco provável que tenham esquecido.
Segundo disse Gilmar Mendes em março de 2016, o que Lula queria era fugir de Moro – pois, se fosse ministro da Casa Civil, seus processos sairiam da 13ª Vara Federal de Curitiba e iriam para o STF.
E isso, disse então Mendes, ele não iria permitir.
“É muito claro”, escreveu Mendes, “o tumulto causado ao progresso das investigações [sobre Lula], pela mudança de foro [da 13ª Vara de Curitiba para o STF]. É ‘autoevidente’ que o deslocamento da competência é forma de obstrução ao progresso das medidas judiciais. (..) O tempo de trâmite para o STF, análise pela PGR, seguida da análise pelo relator e, eventualmente, pela respectiva Turma, poderia ser fatal para a colheita de provas, além de adiar medidas cautelares. Logo, só por esses dados objetivos, seria possível concluir que a posse em cargo público, nas narradas circunstâncias, poderia configurar fraude à Constituição” (cf. Gilmar Mendes, Medida Cautelar nos Mandados de Segurança 34070 e MS 34071, 18/03/2016, p. 20).
Em seguida, Mendes, mesmo considerando ‘autoevidente’ que Lula, com ajuda de Dilma ao nomeá-lo para o Ministério, queria fugir de Moro, passa a citar, como prova, as gravações das conversas do ex-presidente, liberadas pelo então juiz Sérgio Moro – divulgação que havia causado a indignação do então relator da Lava Jato no STF, ministro Teori Zavascki. A possível ilegalidade dessas gravações, porém, não inibe Mendes: “No momento, não é necessário emitir juízo sobre a licitude da gravação em tela”. E pau na jaca.
É óbvio que Lula, com a nomeação para o Ministério de Dilma, queria escapar da 13ª Vara Federal de Curitiba – isto é, de Moro. Além disso, pretendia dar alguma solidez (se é possível usar essa palavra) a um governo que se liquefazia aos olhos de todos, devido, sobretudo, à ação de sua titular (estelionato eleitoral, ajuste fiscal, desemprego, corte de direitos previdenciários, etc.).
Porém, Mendes somente impediu a nomeação porque se tratava de Lula – alguém que não pertencia ao seu círculo, ou, mais exatamente, alguém a cujo círculo não pertencia.
Tanto assim que atropelou a si próprio, sem nenhum arrepio de remorso, além dos precedentes do próprio STF, segundo os quais mandados de segurança impetrados por partidos não podiam ser “coletivos” (isto é, para defender os interesses de toda a sociedade).
Explicando melhor:
Os mandados de segurança contra a nomeação de Lula para o Ministério eram do PSDB e do PPS.
Mendes havia exposto, anteriormente: “Não imagino que o partido político possa fazer a defesa de interesses outros que não os de seus eventuais filiados” (STF, julgamento do Recurso Extraordinário 196.184, 27/10/2004).
Ou seja, um mandado de segurança de um partido não poderia ultrapassar o âmbito do próprio partido.
Em 2016, ele mudou rapidamente o seu entendimento: “Percebo que a análise que fiz daquela feita foi excessivamente restritiva. Os partidos políticos têm finalidades institucionais bem diferentes das associações e sindicatos. Representam interesses da sociedade, não apenas dos seus membros. Representam até mesmo aqueles que não lhes destinam voto” (cf. Gilmar Mendes, Medida Cautelar nos Mandados de Segurança 34070 e MS 34071, 18/03/2016, p. 20).
Como será que Mendes não percebeu tal gigantesco âmbito dos mandados de segurança dos partidos, antes da nomeação de Lula para o Ministério de Dilma? Por que isso somente lhe ocorreu na hora de impedir Lula de assumir a Casa Civil de Dilma?
Depois que Lula foi impedido de ser ministro, tanto ele quanto Dilma estavam com a sorte selada.
PITADAS
Nosso objetivo, aqui, não é, evidentemente, mostrar que o destino de Lula e Dilma foi injusto.
Apenas destacamos quem é o atual paladino anti-Lava Jato.
Em um texto sobre como ministros do STF, com decisões solitárias (aliás, “monocráticas”), evitam o julgamento no Pleno do Tribunal, dois juristas acrescentam outra coisa:
“Mendes decidiu em uma sexta-feira, véspera de uma semana com feriado prolongado na qual viajaria ao exterior para compromisso acadêmico. No mínimo, levariam duas semanas para que o plenário pudesse se manifestar – se o ministro Mendes tivesse solicitado a inclusão imediata do processo em pauta. Não foi o caso” (cf. Joaquim Falcão e Diego Werneck Arguelhes, “Onze Supremos: todos contra o plenário” in Onze Supremos: o Supremo em 2016, org. Joaquim Falcão, Diego Wernerck Arguelhes e Felipe Recondo, FGV Rio, 2017, p. 22).
O senso de justiça de Mendes (e, inclusive, o de Justiça, ou seja, de como deve ser o Judiciário) foi exposto, em meio a um acalorado debate no Pleno do STF, pelo ministro Luís Roberto Barroso: “Vossa Excelência muda a jurisprudência de acordo com o réu. Isso não é Estado de Direito, isso é estado de compadrio. Juiz não pode ter correligionário”.
Pois Mendes os tem. De uma forma tão pública, que somente passou a ser um inimigo da Lava Jato quando ela começou a pegar a sua turma (a expressão é popular, mas é justificada: muito mais escandalosos – além das dezenas de decisões soltando escroques e corruptos – foram os encontros de Mendes com Temer e telefonemas para outros investigados por corrupção: v., p. ex., HP 07/03/2019 MPF revela contatos de Gilmar Mendes com investigados da Lava Jato e HP 25/04/2018, De noite no Jaburu, Temer reúne Aécio e depois Gilmar).
Enquanto a Lava Jato estava em cima do PT, Gilmar Mendes era um fã ardoroso da Operação:
“… a Operação Lava Jato parece estar desvelando o maior escândalo de corrupção do país. (…) Sobre as doações feitas por empresas, está em curso tentativa de vitimizar o PT, distorcendo a interpretação dos fatos. Não se trata de punir o partido por convencer empreiteiras a apoiar sua campanha. Não se trata de incriminar doações lícitas. Trata-se de impedir o uso da máquina pública para desviar o patrimônio público, canalizando-o ao financiamento da perpetuação de um projeto de poder. Dito de uma forma clara: receber vantagem indevida em troca da prática ou omissão de ato de ofício é corrupção; pagar a vantagem travestida de doação de campanha é lavagem de dinheiro. Aliás, a lavagem de dinheiro nada mais é do que a prática de atos aparentemente lícitos, criminalizados em razão de sua finalidade – ocultar ou dissimular a origem criminosa dos recursos, ou convertê-los em ativos lícitos – art. 1º da Lei 9.613/98” (cf. Gilmar Mendes, voto, HC 127186/PR, 28/04/2015, grifo no original).
Ou, em um voto durante o qual falou cinco horas, em uma caudalosa ode à Lava Jato, no STF:
“A investigação revela que o patrimônio público estaria sendo saqueado por forças políticas. Os recursos serviriam para manter a boa vida dos mandatários, mas não apenas isso. O esquema se afigura verdadeiro método de governar: de um lado, recursos do Estado fluiriam para forças políticas; de outro, financiariam a atividade político-partidária e de campanhas eleitorais, a corrupção de agentes públicos, a manutenção de base partidária fisiológica, a compra de apoio da imprensa e de movimentos sociais e, claro, o luxo dos atores envolvidos. Ou seja, cuidava-se de método criminoso de governança, que visava à perpetuação de um partido no poder, por meio do asfixiamento da oposição” (cf. Gilmar Mendes, voto, ADI 4.650, 16/09/2015, p. 227).
Em seguida:
“… não estamos falando de simples ilações. Há provas concretas, não só a palavra de presos interessados em obter liberdade. Para começar, o volume de recursos encontrados em contas dos agentes da Petrobras no exterior é um elemento forte na direção de que algo está errado” (idem).
Há, inclusive, um elogio implícito – talvez mais que isso – ao procurador geral da República, Rodrigo Janot:
“A ‘Lista do Janot’, como ficou conhecida a relação dos pedidos de abertura de inquéritos contra políticos nessa situação, já gerou as primeiras denúncias” (idem, p. 233).
Com a sua costumeira causticidade (aquilo que o ministro Barroso chamou “pitadas de psicopatia”), Mendes até que não é isento de humor:
“Vale lembrar que as empresas estatais são patrimônio público. E que foram assaltadas por um grupo de pessoas que pretenderam usar o Estado brasileiro em benefício próprio e de seu projeto de poder.
“Note-se que estamos, agora sim, falando de financiamento público de campanhas. Financiamento público de apenas um dos lados na disputa eleitoral: aquele que indica a direção da empresa. Financiamento mediante desvio de valores públicos para particulares” (idem, p. 234).
E, nos comentários orais a seu próprio voto:
“Não se fazia contrato na Petrobrás sem cobrar propina, sem verter dinheiro para o partido. Bendita Lava-Jato, porque deitou luz sobre esse caso.”
Segue um ataque às finanças de campanha da srª Rousseff.
Alguns meses depois, Mendes também passaria por cima dessa parte, ao desempatar o julgamento da chapa Dilma-Temer no Tribunal Superior Eleitoral (TSE), votando pela absolvição: naquele momento, era seu amigo Temer quem estava na Presidência.
CHICOS E FRANCISCOS
A declaração do ex-procurador geral da República, Rodrigo Janot, de que nutriu, após um ataque mentiroso de Mendes à sua filha, desejos de matar o ministro do STF e chegou a entrar armado no Supremo (“Não ia ser ameaça não. Ia ser assassinato mesmo. Ia matar ele e depois me suicidar”), é inadequada em vários sentidos (v. HP 28/09/2019, STF toma medidas contra Janot; procuradores protestam e HP 28/09/2019, O caso Janot).
Mas Janot está correto ao dizer, em seu livro:
“Quando eu disse, no Congresso, que minha regra geral estava sintetizada no famoso ditado popular segundo o qual o ‘pau que dá em Chico dá em Francisco’, eu não estava fazendo retórica. Para quem, ainda assim, acredita que a Procuradoria-Geral foi excessiva, eu pergunto: ‘Por acaso eu trouxe à ribalta crimes que não existiram e que inventei?’. Claro que não. Eu também nunca tive receio de pecar por excesso numa investigação. Excessos podem ser devidamente corrigidos pela Justiça. Minha maior preocupação era errar por omissão, deixar de investigar algum crime grave, porque, nesse caso, fica mais difícil uma correção”.
O caso de Gilmar Mendes, quando os investigados passaram a ser Temer, Aécio, etc., parece confirmar que o pau não desceu apenas em Chico. De incensador da Operação Lava Jato, Mendes tornou-se seu inimigo figadal. Segundo disse recentemente, a Lava Jato é “uma organização criminosa”. (v. a sua entrevista ao Correio Braziliense, Gilmar critica Lava-Jato: “Organização criminosa para investigar pessoas”).
Não é mais o PT a “organização criminosa”, como era, há pouco tempo, para Mendes:
“O partido (…) estava captando, como vocês sabem, nesse modelo que está sendo revelado da Lava Jato. O que atrapalhou todo esse projeto, que era um projeto de consolidação do grupo do poder, no poder, eternização? O que atrapalhou? A Lava Jato. A Lava Jato estragou tudo. Evidente que a Lava Jato não estava nos planos. O plano era perfeito, mas não combinaram com os russos.”
Não é somente a jurisprudência de Mendes que muda de acordo com os seus interesses e os de seus aprochegados.
CARLOS LOPES
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