CARLOS LOPES (HP nº 3.504, 3.505 e 3.506, 18 a 25/01/2017)
A balança comercial de 2016, cujos resultados, no último dia dois, foram divulgados pela Secretaria de Comércio Exterior (Secex), tornou-se motivo de uma batalha de marketing perfeitamente vigarista – ou, se analisarmos sob outro aspecto, perfeitamente imbecil.
O governo Meirelles/Temer apregoa um grande sucesso pelo superavit de US$ 47.683.397.949, cognominado “o melhor resultado da história” (v. MDIC, “Balança bate recorde em 2016 com superavit de US$ 47,7 bilhões”, 02/01/2017).
Mas, não, dizem alguns petistas: a responsável por esse sucesso foi Dilma e sua brilhante política econômica – como se houvesse muita diferença (ou alguma diferença essencial) entre a política de Temer e a de Dilma.
O que existe de comum entre uns e outros – além da política – é a completa negação da realidade, e não estamos falando de nenhum fenômeno inconsciente. Mas, uns e outros, estão certos quanto à autoria do espetacular fenômeno: tanto Dilma quanto Temer mereceriam ser levados à barra de algum tribunal popular por esses resultados.
Pois, o desempenho do comércio exterior de 2016 foi um desastre. Não apenas porque foi obtido com uma restrição de importações que reflete uma economia interna tão desnacionalizada quanto moribunda. Como diz a Fundação Centro de Estudos de Comércio Exterior (FUNCEX):
“… o superávit comercial que será observado em 2016, provavelmente da ordem de US$ 47 bilhões, constituirá recorde histórico. No entanto, ele não pode ser considerado um resultado ‘virtuoso’, mas o sintoma de uma doença, a recessão. Com efeito, as exportações deverão sofrer queda pelo quarto ano consecutivo e o saldo comercial será o resultado, portanto, de mais uma contração das importações, em função da redução do consumo das famílias, queda do investimento e encolhimento da atividade econômica, sobretudo da produção industrial” (cf. FUNCEX, “Informativo Balança Comercial”, Ano VI, n° 68, dezembro de 2016).
Realmente, sob esse aspecto mais geral, desde 2012 as exportações (a soma do preço de venda dos produtos exportados) estão caindo em relação ao ano imediatamente anterior:
2012: -5,26%;
2013: -0,22%;
2014: -7%;
2015: -15,09%;
2016: -3,09%.
Estritamente sob esse ângulo, portanto, 2016 é o quinto ano consecutivo de contração das exportações. Para resumir: o valor total das exportações em 2016 foi 27,65% menor que o valor das exportações em 2011. Para os leitores que gostam de conferir os números:
2011: US$ 256.039.574.768;
2016: US$ 185.235.400.805;
DIFERENÇA: US$ -70.804.173.963 (-27,65%).
Uma queda de US$ 71 bilhões nas exportações – redução de mais de 1/4 no valor – somente mostra como a política antinacional de Dilma e Temer retraiu as relações comerciais do país com o exterior. Toda a conversa sobre “abertura” comercial é, na verdade, para nos submeter a um fechamento, com poucos parceiros e poucos produtos. Essa é a lógica da submissão ao gangsterismo comercial imperialista.
Mas, como isso aconteceu?
Entre outras coisas, essa é uma consequência da “primarização das exportações”, ou seja, da crescente predominância dos produtos primários – não industrializados – nas exportações.
Como a questão é bastante conhecida, e já muito abordada, nos limitaremos a uma comparação ilustrativa:
No ano 2000, 59,07% das exportações do país eram constituídas por produtos industrializados (“manufaturados”) e 22,79% por produtos não industrializados (“básicos”). Quanto ao resto, 15,42% eram produtos semi-manufaturados.
Em 2014, último ano do primeiro mandato de Dilma, apenas 35,63% das exportações era composta por manufaturados e 48,67% era de produtos não industrializados (a parcela de semi-manufaturados foi reduzida a 12,91%).
A comparação que acabamos de fazer é com resultados do patogênico governo Fernando Henrique, do qual não se pode dizer que fosse nenhum promotor da indústria. Apesar disso, a comparação mostra que a política dos governos do PT – quanto ao câmbio e ao conjunto do comércio exterior – pendurou o país nas commodities, nos produtos primários, não industrializados ou com baixo nível de industrialização, cujo preço internacional, decidido fundamentalmente nas Bolsas de Mercadorias de Chicago e Nova Iorque, é intensamente especulativo (ou, como dizem alguns, “volátil”).
O resultado foi, em 2016, uma queda geral nos preços das exportações. Os preços de exportação dos produtos primários, na média, caíram -56,35% entre 2011 e o primeiro trimestre do ano passado; os preços dos cereais, caíram 40,87%; o do açúcar, -40,76%; o dos minérios de ferro, -71,52%; e o dos óleos brutos de petróleo, -70,10%, no mesmo período (cf. WTO, World Trade Statistical Review 2016, Chapter IX, Statistical tables, “Table A67 – Export prices of primary commodities, 2005-2016”, p. 161; especificamente em relação à queda no preço das exportações brasileiras, cf. FUNCEX, “Boletim de Comércio Exterior – índices de preço e quantum”, Ano XX, n° 12, dezembro de 2016, p. 6, tabela nº 5).
Essa queda foi apesar de um aumento no quantum das exportações (ou seja, um aumento de sua quantidade física), que, até novembro, em doze meses, já estava em +7%, ao mesmo tempo que o valor em dólares, pago por essa quantidade, decaía, no mesmo período, em média, -9,4%.
Isso, após, no ano anterior, uma queda de -21,6% no índice preços das exportações, ao mesmo tempo que o quantum aumentava +8,3%.
Cada vez, então, exportamos mais por um preço menor.
IMPORTAÇÕES
Para os mesmos anos, os resultados das importações – isto é, sua variação em dólares – foram os seguintes:
2012: -1,35%;
2013: +7,42%;
2014: -4,42%;
2015: -25,18%;
2016: -19,77%.
Ou seja, em 2015 e 2016 as importações caíram mais que as exportações.
O resultado das duas quedas – exportações e importações – foi o encolhimento global do comércio exterior brasileiro (isto é, da “corrente de comércio”) de -5,71% (2014), -20,18% (2015) e -10,98% (2016).
Em relação a 2013, o comércio exterior de 2016 é 33% menor, ou seja, em três anos houve uma redução de 1/3.
Essa é a maravilha que Meirelles & cia. estão comemorando, em disputa com o PT.
BALANÇO
Notemos, aqui, brevemente, que o balanço de pagamentos – o conjunto de nossas transações econômicas, não apenas as comerciais, com o exterior – aponta, a permanecer a atual tendência (isto é, a atual política), para uma catástrofe, inclusive do ponto de vista reacionário, neoliberal.
Até novembro, a entrada de “investimento direto estrangeiro” (IDE) – dinheiro para a compra de empresas -, “investimento estrangeiro em carteira” (IEC) – dinheiro para especulação com papéis – e “outros investimentos estrangeiros” (OIE) – dinheiro de créditos comerciais e outros empréstimos bancários – quase empatou com as remessas de recursos para o exterior. Basicamente, o quadro era o seguinte:
ENTRADAS DE DINHEIRO EXTERNO: US$ 64,009 bilhões;
SAÍDAS DE RECURSOS PARA O EXTERIOR: US$ 58,647 bilhões;
DIFERENÇA: US$ 5,362 bilhões.
O que impediu que a crise das contas externas (o que antigamente era chamado de “crise cambial”) se expressasse na contabilidade, foi a entrada, em termos líquidos, de US$ 63,657 bilhões em IDE.
É verdade que nem tudo isso é entrada de dinheiro estrangeiro, pois, de acordo com a última metodologia do FMI, conhecida como “BPM6” e adotada pelo Banco Central, os lucros reinvestidos das filiais de empresas estrangeiras também são considerados como entradas de “investimento direto estrangeiro”, apesar de serem obtidos aqui dentro – e não lá fora.
Mas, apesar disso, o significado desse dado, como acontece desde a posse do sr. Mantega na Fazenda, no quase longínquo governo Lula, é que o governo está retalhando o país, incentivando a entrega de empresas a fundos especulativos, para, supostamente, “equilibrar” as contas externas – ou seja, cada vez mais, aumentando o desequilíbrio real e a proximidade do estouro.
Sobre isso, aquele elemento algo tresloucado, Gustavo Franco, no governo Fernando Henrique – e com as consequências que se viram – já havia exposto a tese de que o mundo (em especial, os monopólios financeiros norte-americanos) existia para financiar o rombo das contas externas, que ele provocava.
O que ocorreu, em relação ao “investimento direto estrangeiro”, após 2006, mostra a nenhuma diferença de essência – isto é, quanto aos interesses de classe – entre Franco, Mantega, Levy, Barbosa ou Meirelles.
DESAGREGAÇÃO
Mas, voltemos à balança comercial. Os números que expusemos até agora são resultados globais. O significado deles é ainda mais claro quando examinamos separadamente alguns dados. Aqui, nos limitaremos aos referentes às tendências nas importações – para isso, é mais importante a variação no valor dessas importações, que o seu valor absoluto em dólares.
Como vimos, as importações, globalmente, caíram em 2016.
No entanto, as importações de cereais cresceram em 2016.
E as importações de etanol aumentaram +49,45%.
Por quê? O que significa isso?
Significa, em primeiro lugar, que a chamada “primarização das exportações” está se transformando, com o país devastado, em primarização também das importações.
Mas isso ainda é, apenas, uma descrição do problema. Sucintamente, as importações dos “produtos do reino vegetal” aumentaram em 30,44% e as importações dos “produtos do reino animal” aumentaram em 9%.
Alguns leitores, conhecedores da crise alimentar a que a política de favorecimento ao famigerado “agronegócio” levou – e continua levando – o país, não se surpreenderão ao saber que a importação de arroz em grão (incluindo arroz quebrado) aumentou 83% em 2016, em relação ao ano anterior.
Ou que a importação de feijão preto aumentou 229%.
Mesmo assim, é difícil conceber que a importação de milho (em grão) tenha aumentado 1.014% em 2016, em relação a 2015.
No entanto, foi o que aconteceu.
Mais: as importações de cacau aumentaram +446,02%; as de algodão, +660,71%; as de alho comum, +86,63%; as de amendoim, +1.645,46%; as de fumo (em folhas), +39,72%; as de trigo, +9,78%.
Em 2016, aumentaram até as importações de óleo de soja (+172,70%) e de óleo de dendê (+190,72%).
Quanto aos produtos de origem animal, é notável o que ocorreu com os laticínios – em um país onde está o segundo rebanho bovino do mundo.
No entanto, as importações de leite, creme de leite e concentrados de leite com açúcar, aumentaram 61,25%.
As de leite não concentrado nem adicionado com açúcar, aumentaram 208,01%.
As de outros derivados do leite aumentaram 25,35%.
As importações de manteiga cresceram 243,73%.
Em suma, a indústria de laticínios interna, já bastante desnacionalizada, está sendo arrasada pela crise.
Quanto a outros produtos de origem animal, as importações de couros e peles cresceram +56,70%; as de sebos de bovinos, +13,81%; as de galos e galinhas vivos (isto é, pintos), +120%.
ASININISMO
Entretanto, retornemos, por um momento, às exportações.
No Brasil, devido à política seguida nos últimos anos, mais de 1/5 do valor das exportações (23,05%, em 2016) está concentrado em apenas três produtos: soja em grão, minérios de ferro e óleos brutos de petróleo.
Se somarmos o açúcar, a carne de frango e a celulose – que constituem os produtos de maior exportação, em valor, após os três primeiros – temos 1/3 do valor das exportações.
A soma das exportações desses seis produtos, em 2016, totaliza US$ 62,492 bilhões – com um comportamento decadente: o valor das exportações de soja caiu -7,87% em 2016; as de minérios de ferro (e seus concentrados), -5,59%; as de óleos brutos de petróleo, -14,49%; as de carne de frango, -4,57%; as de celulose, -0,30%. Apenas as exportações de açúcar, cujos preços são uma vítima permanente da especulação, aumentaram 40,35%.
Acrescentaremos aqui, para melhor demonstração, os dois produtos seguintes da pauta de exportação: o farelo de soja (produto que, ao contrário da soja em grão, tem os países da União Europeia, e não a China, como principais compradores), cujo valor das exportações caiu -10,79%; e o café em grão (queda de -12,82% no valor das exportações).
As exportações desses oito produtos são 40% das exportações do país – mas, em preços, em dólares ou em reais, esses produtos exportados são uma parte ínfima do PIB.
Aliás, mesmo com a atual destruição da indústria, o conjunto da agropecuária é apenas 5% do PIB brasileiro.
Esses dados demonstram que a ideia de jerico de que o agronegócio nos tirará da atual situação, talvez seja injusta para com os jericos.
O que não impede a latifundiária filo-petista Kátia Abreu ou o latifundiário filo-tucano Blairo Maggi de repeti-la na mídia, que, para variar, é tão ignorante quanto reacionária.
AGRÁRIO
A política de favorecimento ao agronegócio não passa de uma forma degenerada da famosa “vocação essencialmente agrícola”, que seria inerente ao Brasil, segundo as múmias da República Velha – incluindo uma assombração que permaneceu no período posterior, o sr. Gudin, o ideólogo mais primitivo do entreguismo, e, também, o führer da macaqueação fascista, Plínio Salgado.
No entanto, na República Velha a agricultura – mesmo sem a pecuária – era 40% do PIB. Ao contrário de hoje, que ela – com a pecuária – é apenas 5% do PIB, havia, pelo menos, alguma base real para os ideólogos do “essencialmente agrícola”.
Apesar disso, no início do século passado, essa já era uma concepção absolutamente antinacional. Nas palavras de Getúlio Vargas:
“A partir de 1930 (…) passamos a compreender o verdadeiro objetivo da nossa expansão, repudiando o errôneo conceito econômico do primeiro período republicano, que nos impunha o agrarismo como fatalidade geográfica e nos levou aos males da monoprodução. Os revolucionários de outubro convenceram-se de que o lugar-comum de país essencialmente agrícola era uma expressão falsa, convindo apenas aos interesses da usura internacional, à política dos grupos domésticos e aos industriais sustentados pelos favores aduaneiros. (…) Já em várias oportunidades sublinhei a verdade bem conhecida a respeito da dependência em que ficam os países produtores de matérias-primas em relação às potências industriais” (Getúlio Vargas, discurso no Aeroporto Santos Dumont, 11/11/1940).
Quase três anos depois, em Volta Redonda, discorrendo sobre o problema siderúrgico, Getúlio diria:
“Não será exagero atribuir, historicamente, a nossa conduta de incompreensão e passividade ao provincialismo que a Constituição de 1891 estabeleceu e ao reclamo dos países industriais interessados em manter-nos na situação de simples fornecedores de matérias-primas e consumidores de produtos manufaturados. Aquela expressão ‘país essencialmente agrícola’, de uso corrente para caracterizar a economia brasileira, mostra em boa parte a responsabilidade do nosso atraso” (Getúlio Vargas, Volta Redonda, 7 de maio de 1943).
No entanto, a situação atual da agropecuária – e indústrias diretamente derivadas, como a do etanol – é pior que aquela denunciada por Getúlio. Não apenas pela estúpida desnacionalização, que torna o setor mais um ralo de recursos para o exterior. Mas, também, porque o “agronegócio” está arrasando com o conjunto da agricultura – isto é, com seus setores mais importantes, aqueles que produzem para o mercado interno – de uma forma que a oligarquia cafeeira jamais fez. Sem falar das finanças dos Estados dominados pelo agronegocismo, saqueados através da criminosa “lei Kandir”, que isenta do pagamento de ICMS as mercadorias destinadas à exportação.
PASSADO
O comércio exterior – não a atividade prática de vender ou comprar mercadorias a outros países, mas a concepção de que o mercado externo deve ser principal em relação ao mercado interno – sempre foi, desde a República Velha, passando pela ditadura, uma utopia econômica dos pusilânimes, dos carcomidos, dos entreguistas, e sempre com resultados desastrosos para o país, vale dizer, para seu povo.
Nada há de mais colonial – ou colonialista – do que essa suposta crença nas virtudes do mercado de outros países às custas do nosso mercado nacional.
Portanto, não é surpreendente que a malta antinacional apresente o comércio externo como a solução para os problemas nacionais, escamoteando que o comércio exterior é função, precisamente, da economia interna, da economia nacional.
É verdade, houve época em que a dinâmica da nossa economia – e, em geral, das economias periféricas – era determinada “desde fora”, como ressaltou Raúl Prebisch e a CEPAL nas décadas de 40 e 50 do século passado. Não foi uma época economicamente gloriosa, nem para o nosso nem para outros países – e isso acabou há muito:
“Em épocas passadas, antes da grande depressão, os países da América Latina cresceram ao serem impulsionados, de fora para dentro, pelo crescimento persistente das exportações. Nada nos autoriza a supor, pelo menos por enquanto, que esse fenômeno venha a se repetir com intensidade análoga, a não ser em casos muito particulares. Já não existe a alternativa entre continuar crescendo dessa maneira, vigorosamente, ou crescer para dentro, através da industrialização. Esta última passou a ser o modo principal de crescimento” (R. Prebisch, “O desenvolvimento econômico da América Latina e alguns de seus problemas principais”, 1949, in “Cinquenta Anos de Pensamento na CEPAL”, Vol. 1, org.: Ricardo Bielschowsky, trad.: Vera Ribeiro, Record, 2000, p. 78).
Estas palavras foram escritas há 67 anos. Como diz o mesmo autor, no mesmo texto, “[a industrialização dos novos países] não constitui um fim em si, mas é o único meio de que estes dispõem para ir captando uma parte do fruto do progresso técnico e elevando progressivamente o padrão de vida das massas” (cf. ibid., p. 72).
Na época, Prebisch argumentava contra uma teoria – melhor dizendo, um preconceito – que, infelizmente, saiu outra vez do túmulo há poucas décadas:
“Em matéria de economia, as ideologias costumam acompanhar os acontecimentos com atraso, ou então sobreviver a eles por demasiado tempo. É certo que o raciocínio concernente aos benefícios econômicos da divisão internacional do trabalho é de incontestável validade teórica. Mas é comum esquecer-se que ele se baseia numa premissa que é terminantemente desmentida pelos fatos. Segundo essa premissa, o fruto do progresso técnico tende a se distribuir de maneira equitativa por toda a coletividade, seja através da queda dos preços, seja através do aumento correspondente da renda. Mediante o intercâmbio internacional, os países de produção primária conseguem sua parte desse fruto. Sendo assim, não precisam industrializar-se. Ao contrário, sua menor eficiência os faria perderem irremediavelmente os benefícios clássicos do intercâmbio.
“A falha dessa premissa consiste em ela atribuir um caráter geral àquilo que, em si mesmo, é muito circunscrito. Se por coletividade entende-se tão-somente o conjunto dos grandes países industrializados, é verdade que o fruto do progresso técnico distribui-se gradativamente entre todos os grupos e classes sociais. Todavia, se o conceito de coletividade também é estendido à periferia da economia mundial, essa generalização passa a carregar em si um grave erro. Os imensos benefícios do desenvolvimento da produtividade não chegaram à periferia numa medida comparável àquela de que logrou desfrutar a população desses grandes países. Daí as acentuadíssimas diferenças nos padrões de vida das massas destes e daquela, assim como as notórias discrepâncias entre as suas respectivas forças de capitalização, uma vez que a massa de poupança depende primordialmente do aumento da produtividade.
“Existe, portanto, um desequilíbrio patente e, seja qual for sua explicação ou a maneira de justificá-lo, ele é um fato indubitável, que destrói a premissa básica do esquema da divisão internacional do trabalho” (ibid., pp. 71-72, grifo nosso).
Se isso era verdade há quase 70 anos, hoje, pretender que o comércio exterior determine a dinâmica da economia nacional parece um delírio – e, realmente, do ponto de vista dos países não-imperialistas, é um delírio. No máximo, seria apenas um jeito pouco original de pretender que o rabo balance o cachorro…
A rigor, é tão absurdo que não é difícil perceber que apenas serve para esconder outros – e inconfessáveis – interesses, em geral a submissão a interesses antinacionais, ou seja, imperialistas. No caso menos malévolo, seria (como foi) uma tentativa de fazer o país crescer sem se chocar com as relações de dependência, ou seja, colaborando com os monopólios financeiros imperialistas. A crise atual, que tem essa origem, ainda que agravada (e muito) pela posterior adesão do PT ao neoliberalismo, em 2011, é uma demonstração trágica das consequências dessa política.
HISTÓRIA
Em janeiro de 1984, quando a ditadura, já cadavérica, resistia a ser enterrada, José Honório Rodrigues escreveu:
“Situação político-econômico-social igual a esta é inédita na história do Brasil. Em nenhum momento de nossa vida pública, mesmo contando a longa fase colonial, esteve o Brasil tão próximo do colapso total. (…) Estamos dominados por uma crise – a maior da nossa história – e pela mais completa incompetência que jamais desgovernou o país. (…) Na gravidade inigualável da situação brasileira, entre os vários momentos de ruptura – e os houve e graves – desde a Independência até 1964, nenhum atingiu o período de colapso total, de colisão social, de descalabro econômico igual ao deste que vemos hoje”.
Frisava o grande historiador brasileiro: “estamos agora às vésperas (…) da grande colisão social, caso não se evite a tempo. Tudo colabora para isso, as forças sociais econômicas e políticas, e a rápida transformação da violência individual em violência social, tal como já existiu no Brasil, em graus variados”.
Ele lembrava que “a ruptura é o momento em que o projeto político não acolhe mais os interesses sociais da maioria do povo. A ruptura é um macrofenômeno histórico de grande tensão social que rompe as padrões tradicionais de convívio, relações de classe e de propriedade”.
José Honório Rodrigues enxergava, na ditadura que foi derrubada um ano depois, “o mais longo processo histórico de decomposição político-social e econômica” da história brasileira, devido, precisamente, à submissão aos interesses externos, imperialistas: “A dependência aparece para mostrar que as relações econômicas são um ato político”.
Ou seja, sua ênfase é na política econômica da ditadura, porém, também, nos problemas estruturais, vale dizer, na economia política implícita nas relações de dependência em relação às matrizes externas:
“As características de uma economia dependente são várias. As transações estrangeiras constituem uma parte relativa e uma larga porção do produto nacional, e as exportações se concentram em poucos produtos primários. Além disso, a maior parte das importações e exportações se realiza com a economia dominante e o fluxo do capital também se efetua principalmente com a economia dominante.
“A economia dependente tornou-se, assim, uma auxiliar principal dos regimes autoritários; enfim, uma ciência sinistra. Sinistra porque tem levado os países subdesenvolvidos ou em desenvolvimento – os do chamado Terceiro Mundo – às mais desastradas situações, revelando a sua incapacidade, especialmente em relação à chamada ‘economia política’”.
E, para frisar a falácia da suposta negação da política em economia (isso que, hoje, o pervertido Meirelles chama de “critérios técnicos”):
“Os economistas têm perturbado a economia, que era muito melhor quando governada pelos bacharéis e engenheiros que aprendiam economia política.
“Esses 20 anos de economia monetarista – um modelo sinistro antinacional, que deixa o povo morrendo de fome para exportar, de achatamento salarial – resultaram numa conjuntura (temporária) dificílima, que se transformou numa situação estrutural (durável) que exige reformas econômicas, sociais e políticas profundas”.
É fácil supor o que José Honório – falecido em 1987 – diria de uma “economia monetarista” que deixa o povo morrendo de fome para importar.
Mas, apesar de, naquele momento, na sua opinião, “a falta de liderança civil ou/e militar torna mais grave o futuro da questão nacional e ameaça o nosso destino”, ele via a solução no horizonte:
“O triunfo da democracia virá com as eleições diretas imediatas, (…) o respeito aos direitos humanos, a liberdade de reunião e pensamento, a liberdade sindical e outras medidas” (cf. J.H. Rodrigues, “As quase-rupturas na história do Brasil”, in “Ensaios Livres”, org.: Lêda Boechat Rodrigues, Ed. Imaginário, 1991, pp. 49-56).
CONTORÇÕES
José Honório Rodrigues era um democrata – e não se considerava mais que isso. Apesar de todos os juízos discutíveis que expôs sobre a história da Independência, o que fez dele um grande historiador foi a sua profunda identificação com o povo brasileiro – que aparecia, às vezes, de maneira simples, como em sua paixão carioca pela praia e pelo Flamengo.
A crise do final da ditadura, realmente, não foi pequena. Por exemplo: “Entre 1979-84 a renda per capita declinou 25%, o percentual das pessoas com renda domiciliar per capita inferior à linha de pobreza aumentou de 38,78% em 1979, para 48,39% em 1984” (cit. Bárbara Regina Vieira Lopes, “Políticas públicas nos anos 90: um panorama sobre o incentivo ao setor tecnológico no Brasil durante o primeiro mandato de FHC (1995-1998)” FFC/Unesp, Marília, 2011, p. 54).
Parece extraordinário que a crise atual seja maior ainda – evidentemente, ao contrário daquela outra, a crise provocada pela política tucana do PT não teve um II PND anterior que pudesse proporcionar alguma recuperação, como a de 1985. A ditadura não era tão antinacional quanto alguns adeptos de pantominas pseudo-esquerdistas…
Porém, voltemos aqui a um ponto importante daquela época – pois tem relação direta com os problemas de hoje.
Não foi apenas o sr. Delfim Netto, com a sua fracassada política de “exportar é o que importa”, que, durante a ditadura – ao acabar com o que restava do II Plano Nacional de Desenvolvimento (II PND) – apresentou o comércio exterior como a varinha (?!) de condão para um suposto crescimento – por isso mesmo baseado, necessariamente, no arrocho salarial, pois é isso o que alguns fariseus, inclusive Dilma & Temer, chamam de “competitividade”.
Em 1968 – antes, portanto, do primeiro “milagre” de Delfim – o sr. Bresser Pereira apresentou a mesma tese, apenas com adereços diferenciados, até porque existiam, apenas, para esconder a fuga da realidade e da luta, um problema que não afetava Delfim, mas era central para um ex-nacional-desenvolvimentista que não queria se apresentar como adesista (sobrinho de Barbosa Lima, Bresser, antes de 1964, foi, inclusive, colaborador de “O Semanário”, jornal que expressava a posição da ala mais radicalmente nacionalista do PTB).
Devido à sua última invenção, o neo-desenvolvimentismo ou “novo desenvolvimentismo” – que, além de alguns iludidos, logo encontrou aqueles pobres adeptos que sempre estão dispostos a adotar qualquer teoria ou falta de teoria que lhes permita combinar subserviência com pose “de esquerda” – é interessante, hoje, rememorar o que dizia, então, o sr. Bresser.
Fascinado pelas multinacionais automobilísticas, escrevia ele:
- “… o fato de os lucros dessas empresas irem beneficiar acionistas no exterior pouco significa em comparação com o estímulo ao desenvolvimento econômico do país que representaram” (cf. L.C. Bresser Pereira, “Desenvolvimento e Crise no Brasil”, Zahar, 1968, p. 45, grifo nosso).
Resumindo: a espoliação do país pelo capital estrangeiro, com o inevitável rebaixamento salarial causado, inclusive, pelas remessas ao exterior, não tinha importância. Essa era, também, a posição de Roberto Campos, Bulhões, etc., com os resultados que hoje conhecemos.
Porém, não havia alternativa para o Brasil senão a de se conformar, pois, dizia Bresser, “dentro do quadro internacional, o Brasil está situado na área privativa dos Estados Unidos, e esta superpotência, dentro de uma perspectiva tipicamente imperialista (a história tem demonstrado que basta ser verdadeira grande potência para ser imperialista), tem deixado sempre claro, depois da experiência cubana, que qualquer revolução de esquerda na América Latina implicará intervenção americana” (cf. L.C. Bresser Pereira, op. cit, p. 185).
Se os EUA deixaram claro que não querem países independentes na América Latina, que se há de fazer, senão se submeter?
No entanto, mesmo não sendo um iluminado, nem um sujeito muito corajoso, Bresser percebeu que não tinha provado o ponto – isto é, não tinha demonstrado que era impossível um desenvolvimento independente no Brasil.
Daí, recorreu a um velho truque – transformou o que deveria ser a sua conclusão em premissa:
“… partimos da premissa de que as oportunidades de substituição de importações e redução do coeficiente de importações estão basicamente esgotadas. Nesses termos, a única alternativa que resta para o Brasil, para aumentar seu Produto Nacional, é aumentar, concomitante e proporcionalmente, suas exportações. Se não é mais possível reduzir o coeficiente de importações, ou seja, a participação porcentual das importações no Produto Nacional, isto significa que, quando este cresce, aumentarão também as necessidades da indústria de importar máquinas e matérias-primas. Logo, o desenvolvimento para dentro, que praticamos até recentemente, não é mais possível: impõe-se o aumento das exportações” (cf. op. cit., p. 192, grifo nosso).
Não lhe passava pela cabeça que era possível um processo de substituição de importações também quanto às máquinas, para não falar nas matérias-primas. Como, aliás, diante da crise da década de 70, fez até a ditadura, no governo Geisel, com o II Plano Nacional de Desenvolvimento (II PND), cujo centro foi, exatamente, a substituição das importações de insumos industriais, máquinas e equipamentos (bens de capital ou bens de investimento).
Mas, por que essa possibilidade não passava pela cabeça de Bresser? Pela mesma razão que não passava pela cabeça de outros: porque eram submissos, por consequência, achavam que era impossível ao país desenvolver tecnologia além de certo limite – aliás, muito baixo. Portanto, só nos restava importar, ou comprar de filiais de empresas estrangeiras (o que é uma importação indireta), as máquinas que necessitássemos, e não apenas as máquinas, mas também os produtos de consumo que concentrassem algum grau mais alto de tecnologia.
Assim, a tese do “esgotamento” do processo de substituição de importações, lançada por Maria da Conceição Tavares em 1963, e desde aí adotada pela pseudo-esquerda, significava (e significa) apenas que eles não consideravam possível que a indústria nacional fabricasse as máquinas que a economia necessitava para crescer.
O II PND acabaria por demonstrar o significado real da tese do “esgotamento”. Como já foi observado, houve certos elementos que estavam na oposição à ditadura porque, na verdade, estavam à direita do regime.
Bresser, em seu texto, transferiu para a economia – vale dizer, para a realidade – o que era apenas a sua intimidação subjetiva, o seu esmagamento ideológico. Depois, quando ministro nos governos Sarney e Fernando Henrique, repetiria essa manobra, com consequências desastrosas.
De passagem, a declaração de que “a única alternativa que resta para o Brasil, para aumentar seu Produto Nacional” era através do aumento das exportações, estava à direita até mesmo da política proposta por dois paraninfos econômicos do que havia de pior na ditadura, Roberto Campos e Mário Henrique Simonsen (v. o livro dessa dupla: M.H. Simonsen e R.O. Campos, “A Nova Economia Brasileira”, José Olympio, 1974).
PLANO
A espécie de intimidação exibida por Bresser, Tavares e outros não acometia o ministro de Planejamento do governo Geisel. Em depoimento realizado em 2002, João Paulo dos Reis Velloso conta como a substituição de importações do II PND começou:
“O Brasil produzia apenas 15% do petróleo que consumia, ou seja, importava 85% e o preço do petróleo em outubro de 1973 passou em vinte dias de 3 dólares por barril para 12, isso teve um impacto terrível na nossa balança comercial, que era mais ou menos sem déficit, sem superávit, equilibrada. Mas o pior não era isso, havia o ovo da serpente, que naqueles estudos que nós tínhamos feito no Ipea [Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada], nos anos 60, um diagnóstico da indústria que mostrou o seguinte: o Brasil é grande importador dos chamados insumos industriais básicos, como siderurgia, petroquímica, metais não ferrosos; todas as grandes matérias-primas para a indústria. Nós éramos potencialmente muito competitivos nessas áreas, mas éramos grandes importadores. Quando eu fui consultado pelo Geisel, eleito, não empossado presidente, eu disse: ‘Olha, presidente, nós temos de cuidar dessas duas coisas, senão o Brasil não vai voltar a crescer, acabou o milagre e acabou para sempre’” (cf. “BNDES: um banco de história e do futuro”, BNDES/Museu da Pessoa, 2012, p. 60).
O secretário-executivo do Ministério de Velloso, Marcos Pereira Vianna, colocado por Geisel na presidência do BNDES, delineia, também fortemente, o quadro inicial do II PND:
“A regra fundamental do programa do governo Geisel era substituir as importações de forma competitiva, em termos internacionais. Não era substituir por substituir a custos elevadíssimos. Era substituir importações de quê? De celulose e papel. O Brasil tem um território com condições e dimensões continentais; tem clima e calor. A combinação calor e umidade é o que faz a planta crescer. Não é como na Escandinávia ou no Canadá, onde ela cresce no verão e descansa no inverno. Aqui ela cresce o ano inteiro. Em sete anos, o eucalipto está adulto, com uns 35 centímetros. Lá, uma árvore chega ao ponto de corte com oitenta anos, aqui chega em sete. Se for usada uma boa tecnologia da parte industrial, a produtividade da terra é dez vezes maior. Era essa a substituição. O Brasil era importador de papel, de fertilizantes, especialmente fertilizantes fosfatados. A indústria não era indústria. Importava-se rocha fosfática, importava-se ácido fosfórico para Cubatão, onde era misturado e ensacado para ser usado na agricultura. Dali, o fertilizante atravessava a Serra do Mar, de caminhão ou trem, e ia para Minas, para Goiás, a milhares de quilômetros. A indústria era localizada no litoral por quê? Porque era feito apenas o ensacamento do que vinha da indústria de fora. E nós tínhamos rochas fosfáticas abundantes em Araxá, em Minas, e naquela região serrana, de São Paulo. Então, fizemos construir usinas de fertilizantes em Araxá, a Arafértil, e a Fosfértil. A matéria-prima local já estava perto do centro de consumo. Saía mais barato e era mais eficiente. Então, foi essa a substituição de importações deflagrada” (idem, p. 60).
Há, neste depoimento do ex-presidente do BNDES, uma observação bastante significativa:
“Os programas de substituição de importações, os investimentos na área de insumos básicos, bens de capital, deram certo. (…) no final da década de 70, eu disse: ‘Este modelo está esgotado, acabou. Nós temos que repensar o modelo de crescimento brasileiro e agora o fator dinâmico é o mercado interno’” (idem, p. 61).
Foi exatamente no final da década de 70 – mais precisamente, em 1979 – que o governo Figueiredo, com Delfim na Fazenda, liquidou o II PND e implantou o “exportar é o que importa”, de triste memória.
NEO-INTERESSES
É óbvio que o desenvolvimento centrado no mercado interno também leva – ou levaria – a um aumento das exportações. Nisso, até mesmo Simonsen e Campos concordam, implicitamente, quando falam em crescer “gradualmente destinando à exportação os excedentes da produção interna” (é verdade que, para aumentar esses “excedentes”, queriam até mudar a dieta do brasileiro para vender mais “proteínas” no mercado externo: cf. Simonsen e Campos, op. cit., p. 204, grifo nosso).
Porém, o que o sr. Bresser propôs no trecho que citamos (e no conjunto do seu livro de 1968) é que a base do crescimento do país fosse o mercado exterior, ou seja, o mercado de outros países. Mesmo numa época em que os EUA e seus monopólios dominavam o comércio internacional muito mais que hoje, depois do crescimento da China.
Aqui, e já há 48 anos, está, de corpo inteiro, o neo-desenvolvimentismo. Toda a ênfase atual na taxa de câmbio do sr. Bresser, e demais neo-desenvolvimentistas, tem como “premissa” a de que somente o mercado externo pode nos salvar.
Isto, em seu livro de 1968, é uma consequência de mais outra “premissa” – aliás, já indicada na premissa do “esgotamento”: a de que o desenvolvimento com base nacional, portanto, o nacional-desenvolvimentismo, é inviável no Brasil.
Também, aqui, não é pela consideração de fatores objetivos que Bresser acha isso, mas porque, segundo ele, “as lideranças capitalistas tradicionais, ou seja, os empresários e os políticos profissionais, e as novas lideranças, a saber, os militares e os tecnocratas, dificilmente adotarão o nacionalismo desenvolvimentista como ideologia. Os grupos marginalizados, por sua vez, como os estudantes, os operários, os intelectuais de esquerda, também não adotarão tal ideologia. Poderão no máximo apoiá-la, na falta de alternativa melhor” (cf. Bresser Pereira, op. cit., p. 213).
Não se sabe que delegação os empresários, políticos, militares, estudantes, operários e intelectuais brasileiros deram ao sr. Bresser para que falasse em seu nome. Porém, mesmo que fosse verdade o que ele diz sobre a subjetividade desses setores, a questão é que não existe desenvolvimento verdadeiro que não seja com base nacional, que não seja independente, não importa a consciência momentânea das forças sociais e políticas.
Esta é uma questão objetiva, que não depende da opinião de fulano ou beltrano.
No entanto, analisemos a afirmação de Bresser.
Por que os empresários, políticos e militares (deixemos de lado os “tecnocratas”, pois sabe-se lá o que isso quer dizer) “dificilmente” adotarão o nacional-desenvolvimentismo?
Primeiro, se a questão é de “dificuldade”, a argumentação de Bresser não existe, pois não se pode argumentar contra algo somente porque é difícil. Aliás, os acontecimentos históricos mais decisivos, são sempre difíceis – a começar pela manutenção e desenvolvimento da vida no planeta Terra.
E por que os estudantes, operários e intelectuais não adotarão o nacional-desenvolvimentismo?
Se eles, como diz Bresser, poderão apoiá-lo “na falta de alternativa melhor”, porque não o apoiarão? A falta de alternativa melhor é, aliás, o melhor motivo que pode existir para se apoiar alguma coisa. Anormal seria se eles preferissem apoiar a alternativa pior…
Portanto, quem não apoia ou apoiaria o nacional-desenvolvimentismo – porque renegou-o, após o golpe de 64 – é o sr. Bresser. Mas ele pretende estender a sua opção a toda a sociedade brasileira, pois acha mais fácil não assumir a responsabilidade e atribuí-la a outros – e nós sabemos, pelo que disse sobre as “dificuldades”, que ele sempre prefere o mais fácil.
Mas, o motivo que faz com que tenha essa opinião sobre o nacional-desenvolvimentismo está logo em seguida, no texto de Bresser: porque os americanos são contra. Literalmente:
“Nem o Governo americano nem as empresas estarão dispostos a apoiar um Governo que adote uma ideologia autenticamente nacionalista. Não importa que esse nacionalismo seja moderado, racional, fundamentado. Terá sempre um espírito de conflito, contrariará sempre certos (não todos) interesses norte-americanos. E é claro que nesse momento será impossível compreensão, quanto mais apoio a um Governo com semelhante ideologia” (cf. idem, p. 214).
Realmente, será difícil realizar um projeto nacional no Brasil com apoio do governo dos EUA e das corporações monopolistas e financeiras americanas…
Bresser resolve mais essa dificuldade, concluindo que “o nacionalismo desenvolvimentista é portanto a menos provável das ideologias capitalistas possíveis. Na verdade, é muito pouco provável que seus eventuais apoiadores venham um dia a assumir o poder no Brasil”.
Ou seja, resolve a “dificuldade” desistindo de qualquer desenvolvimento nacional independente.
Tanto é assim que ele resolveu decretar o fim do “entreguismo” – e até da palavra “entreguismo”.
Depois de se referir a uma suposta luta ideológica “do nacionalismo contra o cosmopolitismo”, ele anota, ao pé da página: “Preferimos essa expressão [cosmopolitismo], em lugar de ‘entreguismo’, que possui uma conotação valorativa evidente”.
Como se “cosmopolitismo”, ao esconder o caráter entreguista do entreguismo (perdão, leitores), também não tivesse “uma conotação valorativa evidente”.
Entretanto, para quem quisesse afetar ainda uma pose progressista, não era fácil assumir a própria capitulação ideológica em 1968 – pois equivalia a aderir, publicamente, à ditadura, o que poucos ex-nacionalistas fizeram.
Daí, o sr. Bresser acaba por concluir que não há solução para o Brasil:
“A conclusão inevitável a que temos que chegar portanto (…) é a de que a viabilidade do desenvolvimento capitalista para o Brasil é hoje muito pequena. Não possuímos uma bola de cristal, mas toda esta análise nos leva, necessariamente, a concluir que as perspectivas a médio e longo prazo do desenvolvimento capitalista no Brasil são sombrias. (…) Vimos, todavia, que por uma série de razões, que vão desde o poder econômico e numérico da classe empresarial e da classe média no Brasil até à situação de subordinação em que nos encontramos, face ao imperialismo americano a nos vigiar, que qualquer solução socialista apresenta também um grau de viabilidade diminuto” (pp. 214-215).
Portanto, já que não podemos ser nem uma coisa nem outra, nos resta ser colônia. Este é o segredo de Polichinelo da opção pelo mercado externo do sr. Bresser.
ESCOLA
“Desenvolvimento e Crise no Brasil” foi escrito pelo sr. Bresser há quase 50 anos.
No entanto, não se diferencia, em essência, de suas concepções atuais – ou daquelas que esposou quando ministro das demissões no governo Fernando Henrique.
Entretanto, para deixar mais clara a questão atual, um dos pupilos de Bresser (este se intitulando, também, “pós-keynesiano”), diante da monstruosa crise de hoje, escreveu recentemente:
“A recuperação do nível de atividade econômica exige expansão da demanda agregada, do contrário, as empresas não irão produzir pelo simples fato de que não terão para quem vender! Dada a capacidade ociosa prevalecente hoje na indústria e o alto nível de endividamento das empresas do setor privado, não podemos esperar que a expansão da demanda agregada venha a partir do investimento privado. O aumento do desemprego e a contração do crédito bancário também impedem que a demanda agregada seja gerada a partir dos gastos de consumo das famílias. Por fim, a crise fiscal da União e dos demais entes federativos torna inviável o uso de política fiscal anticíclica nos próximos (muitos) anos. A única saída é incentivar as exportações de produtos manufaturados, o que exige manter uma taxa de câmbio competitiva” (J.L. Oreiro, “2017: Crescimento Zero?”, DCI, 08/12/2016, grifo nosso).
Resta saber, sobretudo em época de crise nas economias centrais, para quem exportaríamos esses “manufaturados”? Para a China? Para os EUA? Para a Alemanha ou para o Japão? Para os mercados já ocupados pelos chineses, americanos, japoneses e alemães?
Talvez para o Mercosul e demais países da América Latina.
Mas a exportação para a Argentina (fundamentalmente, reexportação, pelas multinacionais, de carros e caminhões montados com componentes importados ou importados já como produto acabado, além da reexportação dos próprios componentes importados) atingiu, em 2015, US$ 13,4 bilhões.
Para o Chile (petróleo bruto e carne bovina, principalmente), atingiu US$ 4 bilhões.
Para o México (pauta semelhante àquela em relação a Argentina), US$ 3,8 bilhões.
E para os outros países latino-americanos, se comparadas ao PIB do Brasil, as exportações não tiveram significação.
É muito pouco, pouquíssimo, para mover uma economia do tamanho da nossa, menos ainda para tirá-la do atual abismo.
Aliás, computadas todas as exportações, para todas as partes do mundo, elas são apenas 13% do PIB. Se computadas apenas as exportações de manufaturados, elas são menos de 5% do PIB.
A suposta saída pelas exportações revela, assim, o seu caráter de fuga a enfrentar os problemas da realidade.
Além disso, que política econômica é necessária para que o Brasil exporte mais manufaturados? Sem o desenvolvimento interno da indústria, isto é, da indústria nacional, como se pode falar em aumentar a “exportação de manufaturados”? Uma “taxa de câmbio competitiva” (R$ 3,80 por dólar, segundo o neo-desenvolvimentista acima) é insuficiente para recuperar a devastação dos governos Dilma e Temer.
Apesar de ser uma questão importante, a taxa de câmbio serve, aos neo-desenvolvimentistas para fugir à questão crucial da taxa de juros.
A principal função de baixar a taxa de juros, para eles, consiste em desvalorizar o real para permitir um aumento das exportações.
O que é inteiramente insuficiente, como vimos, para tirar o país do abismo.
Colocada a questão nos devidos termos, baixar a taxa de juros – com um correlato aumento do investimento público – tem a função de permitir que as empresas nacionais vivam, pois elas estão estranguladas pelas taxas atuais.
Mas o crescimento implica, também, em aumentar o salário real.
O objetivo – tanto da redução da taxa de juros, quanto do aumento de investimento público, quanto do aumento no salário real – é, precisamente, aumentar a “demanda agregada”, isto é, aumentar as despesas com consumo e com investimento (máquinas, equipamentos, construções), para possibilitar o crescimento.
Evidentemente, não estamos, aqui, falando de mais um voo de galinha, mas de um crescimento – um desenvolvimento – que contemple as nossas necessidades e esteja à altura de nossos recursos.
Basear (supostamente) o desenvolvimento no mercado externo, pelo contrário, significa, em primeiro lugar, promover um arrocho salarial permanente para rebaixar o preço externo das mercadorias.
É sintomático que, ao criticar o tucano Samuel Pessoa – aquele neoliberal que se diz feliz com a queda do salário real, porque ela evitaria o desemprego (estamos vendo…) – os neo-desenvolvimentistas tenham recebido a resposta de que a sua política também implica em rebaixamento do salário real.
Diante disso, que é verdade, resolveram concordar com Pessoa. Como disse o sr. Oreiro, a política neo-desenvolvimentista “implica uma redução do salário real e da participação dos salários na renda no curto-prazo”. Porém, “a perda de salário real será apenas temporária, sendo revertida no médio e longo-prazo (minhas estimativas com Nelson Marconi para o caso brasileiro apontam para um prazo de 6 a 7 anos)” (cf. J.L. Oreiro, “Novo-Desenvolvimentismo, Câmbio Real e Poupança Doméstica: uma réplica a Samuel Pessoa”, 09/08/2016, grifo nosso).
Resta saber qual a diferença – de essência, não de aparência – disso para o neoliberalismo.
Do ponto de vista dos trabalhadores – que, se houvesse alguma possibilidade deles submeterem-se, teriam de viver quase uma década com salário real rebaixado em relação aos já baixos níveis atuais (sem garantia alguma de que sua submissão garantisse a reversão) – não existe, absolutamente, nenhuma diferença essencial.
Do ponto de vista do conjunto dos empresários nacionais, que produzem para o mercado interno – portanto, dependem do salário real para encontrar compradores para suas mercadorias – também há nenhuma diferença.
Sobretudo com o grau de desnacionalização já existente na economia – coisa que não incomoda os neo-desenvolvimentistas.
A situação é tal que os superávits comerciais com o exterior nada significam, exceto como sintoma de uma economia devastada. A questão, portanto, é reconstruir o país – reconstruir a economia nacional com base no mercado interno e nas empresas nacionais, privadas e estatais.
Com a experiência histórica que já acumulamos, não é uma tarefa impossível, nem tão difícil quanto parece a alguns.
Desde que não se fuja da luta.