O governo federal cortou R$ 8,2 milhões em despesas discricionárias (que são ligadas a serviços públicos, mas sobre as quais o governo pode decidir como e quanto gastar) da Fundação Nacional do Índio (Funai). A decisão ocorreu logo após as mortes do indigenista Bruno Pereira e do jornalista britânico Dom Phillips, no Vale do Javari (AM), em junho deste ano.
Levantamento do projeto Data Fixers, em parceria com a agência de dados públicos Fiquem Sabendo, mostra que a fundação chegou a receber um crédito suplementar de R$ 12,3 milhões após o crime. No entanto, para cumprir o teto de gastos, o valor acabou sendo cortado a pedido do próprio Jair Bolsonaro.
Portarias de junho e setembro mostram que R$ 8,2 milhões em despesas discricionárias previstas para o ano foram anuladas. A medida prejudica a compra de equipamentos, material de consumo, mão de obra terceirizada e despesa com deslocamentos, entre outras necessidades.
Enquanto a tesourada acontecia, servidores da fundação reivindicavam a necessidade de mais recursos para a manutenção do trabalho na região. O órgão também enfrenta um déficit no quadro de funcionários.
A Funai funciona com 46% de funcionários aptos, sendo que metade já pode se aposentar. Segundo o Sindicato dos Servidores Públicos Federais, em 30 anos, foram realizados apenas três concursos para contratação de servidores.
No mesmo ofício, datado de 29 de julho, a Coordenadoria Regional do Vale do Javari, também menciona a identificação de possíveis crimes ambientais na região, como garimpo, pesca e extração de madeira ilegal, e pediu mais segurança e estrutura de trabalho para os servidores que atuam no Vale do Javari.
A decisão reforça a política de ataques aos diretos dos povos indígenas por parte do governo Bolsonaro. Ele também impôs um bloqueio de R$ 250 milhões previstos para a saúde desses povos no orçamento para 2023. O valor bloqueado corresponde a 15,6% da dotação orçamentária total prevista.
Sob o governo de Jair Bolsonaro (PL), a Funai tem implementado uma política anti-indigenista, marcada pela não demarcação de terras, perseguição a servidores e lideranças indígenas, somada a uma militarização de cargos estratégicos e a esvaziamento de quadros da entidade.
As denúncias fazem parte de um dossiê de 172 páginas produzido pelo Inesc (Instituto de Estudos Socioeconômicos) e pela INA (Indigenistas Associados – Associação de Servidores da Funai).
O documento, produzido em meio ao desaparecimento de Bruno e Dom, aponta esvaziamento orçamentário, assédio institucional, alinhamento com a agenda ruralista e omissões na esfera judicial.
O texto ressalta também que não houve, na prática, nenhum avanço nas demarcações desde 2019. Destaca, aind, que não há meta para isso no planejamento estratégico para 2020-2023 – à exceção dos casos em que houve pressão do Ministério Público Federal.
Mesmo na composição de grupos de trabalho para atender a determinações da Justiça, a Funai tem atrasado processos e remanejando servidores como prática protelatória, acusa o documento.
“As alterações constantes na composição dos grupos de trabalho se relacionam a duas estratégias antidemarcatórias: por um lado, a de escolher politicamente seus membros, para garantir que os envolvidos estejam também comprometidos com ‘nem 1 cm de terras indígenas’ demarcadas; por outro, a de engambelar a Justiça”, aponta o documento.
Após ter tido barrada pelo STF a intenção de atrelar a fundação ao Ministério da Agricultura, Bolsonaro nomeou para a presidência do órgão o delegado da Polícia Federal Marcelo Xavier. A decisão, aponta o documento, foi uma manobra para alinhar a Funai a interesses ruralistas.
A Funai foi criada em 1967. Mas, apesar de ter sido firmada durante a ditadura, a militarização atual do órgão é sem precedentes. Até o lançamento do dossiê, apenas duas das 39 coordenações regionais da fundação são chefiadas por servidores de carreira.
Nas demais chefias, até a data, 19 postos estavam sob a tutela de oficiais das Forças Armadas, três por policiais militares e dois por policiais federais. No alto escalão, a diretoria é composta por dois policiais e um militar, além do presidente, conforme o documento.