Para Eduardo Costa, epidemiologista da Fiocruz, a pandemia do coronavírus tem que ser combatida no campo, pelas equipes da Saúde Pública, identificando os infectados e seus contatos, e propondo o isolamento dirigido. “Mesmo com toda a sabotagem de Bolsonaro, os governos devem garantir essas ações. O isolamento geral ajudou, mas não é suficiente para deter o vírus”
O jornalista Osvaldo Bertolino, do “Olhar 65”, que faz parte do portal PCdoB.org.br, recebeu, na segunda-feira (03), o epidemiologista Eduardo Costa, da Escola Nacional de Saúde Pública, órgão ligado à Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), para uma discussão sobre as propostas de enfrentamento da pandemia da Covid-19. Foram discutidas também as perspectivas das vacinas que estão sendo testadas no país contra o Coronavírus e a situação do Sistema Único de Saúde (SUS)
ENTREVISTA COM EDUARDO COSTA (*) POR OSVALDO BERTOLINO
Osvaldo Bertolino: Estamos aqui hoje com o Doutor Eduardo Costa em um bate-papo sobre essa questão a sanitária, sobre a saúde, sobre o SUS e o que podemos esperar daqui pra frente. Eu queria te perguntar o seguinte, eu estou lendo aqui um artigo seu que me chamou atenção quando você fala do SUS, o papel do SUS e a importância que teve os prognósticos da política no geral. Eu queria que inicialmente você abordasse esse tema. Provavelmente no futuro nós teremos muito mais problemas do que o grande problema que temos atualmente com o enfrentamento da pandemia da Covid-19. Inicialmente, como o senhor vê o SUS, o que ele é pra você?
Eduardo Costa: Eu participei da construção do programa do SUS, desde o seu início. Tive algumas divergências sobre sua formulação, talvez eu fosse um pouco mais radical do que eram as pessoas que estavam construindo a proposta, a partir de outros partidos, na ocasião. Nós fizemos uma boa dobradinha, através do meu líder na época, que era o Brandão Monteiro, junto com o Haroldo Lima. Isso foi importante em muitas coisas, de certa forma. Fechamos um pouco mais à esquerda esse consenso.
No início deste consenso, eu tenho uma ideia clara, não teve praticamente voto contrário nas votações da Constituição para a formulação do programa do SUS. Não só do SUS, do capítulo da Saúde na Constituição. Conseguimos aprovar o projeto. Muitas coisas vêm um pouco de trás. Entender que alguns setores trouxeram do passado a discussão da saúde, porque era fundamental a discussão desse tema no plano da soberania nacional. A questão era construir um projeto nacional de desenvolvimento, com essas coisas articuladas em prol da saúde. Tínhamos divergências, mas avançamos naquilo que dava para ser pactuado. Haroldo Lima e Brandão Monteiro colocaram em votação por exemplo – naquela época nós fazíamos assessoria ao Brandão Monteiro – a proposta de instituir o monopólio da importação de matéria-prima. Enquanto na votação geral tivemos mais 400 votos, com muito poucas abstenções, na votação do monopólio da matéria-prima, tivemos 114 ou 115 votos, que era uns 20%, ou mais um pouco, e que era, na verdade a esquerda. A esquerda que queria mudar o país. Alguns setores cediam muito no plano da soberania nacional e da economia nacional para sustentar um SUS. Você tem que pensar essas duas coisas articuladas.
“A questão era construir um projeto nacional de desenvolvimento, com essas coisas articuladas em prol da saúde”
Um exemplo típico, o mais famoso, que foi o da Inglaterra. Quando eles fizeram lá o SUS deles, em 1948, na prática em 1948, porque começou um pouco antes, mas foi neste ano que foi oficializado o seu NHS, a Inglaterra tinha uma indústria farmacêutica incipiente, era importadora, especialmente de outros países da Europa, da Alemanha, países que tinham mais desenvolvimento. Ela, no entanto, com o NHS, volta-se para a compra dentro do país. O Serviço Nacional de Saúde deles, eu sempre digo, não é Sistema Nacional de Saúde, é “Serviço Nacional de Saúde” foi estruturado de cabo a rabo. Tem que prestar o serviço à sociedade. E, para isso, necessita de uma carreira dos profissionais da saúde. Com isso, ela conseguiu desenvolver uma indústria, só pelas compras governamentais. Uma indústria fantástica, não só exportadora, que, inclusive, trouxe recursos nacionais para poder desenvolver mais o seu Serviço Nacional de Saúde. E nós não fizemos nada disso.
O SUS que temos tem muito boa intenção em muitas coisas, mas não cuidou de muitas coisas. Foi muito corporativo demais. O SUS pelo SUS. Era para se integrar num projeto nacional de desenvolvimento. Por não fazê-lo, estamos tendo muitas dificuldades.
“Era para o SUS se integrar num projeto nacional de desenvolvimento. Por não fazê-lo, estamos tendo muitas dificuldades”
Eu sempre falo do nosso papel nessa pandemia. Foi desastroso. Não temos outras palavras para dizer. Eu não acho que o desastre tenha sido exclusivamente nosso. Certamente o fator mais importante foi o governo Bolsonaro. Porque existem coisas que nós temos que dar jeito de qualquer modo. O que aconteceu? Não tinha máscara, uma coisa boba, mas não tinha máscara no país. Os reagentes, demoraram não sei quanto tempo. Foi uma baderna. Sinceramente, é inacreditável que o país entre daquele jeito, desorganizado daquele jeito na pandemia. Cada um por si, fazendo leitos em tudo quanto é canto, sem saber direito se aquele era o lugar que devia ou que não devia. Sem planificação.
Desde que foi criado, o SUS não tem um setor de planejamento das equidades. Então ele vai ao sabor dos movimentos, das necessidades, daqui e dali, no interesse de um deputado ou um outro interesse qualquer. Ele não consegue fazer um todo realmente harmônico.
“Desde que foi criado, o SUS não tem um setor de planejamento das equidades. Então ele vai ao sabor dos movimentos, das necessidades, daqui e dali, no interesse de um deputado ou um outro interesse qualquer. Ele não consegue fazer um todo realmente harmônico”
O “programa” tem uma palavra de ordem forte, que é a questão da saúde pública, mas, também, ele não é público. Cerca de 25%, mais ou menos, são pessoas que usam planos de saúde e, mais uma coisa, os que estão dentro do dito sistema público de saúde, se servem, em boa parte, de hospitais privados através do SUS. Isto é a drenagem do público para o privado.
Então tenho críticas, meu problema não é ser laudatório. Eu sei que sem o SUS, como na ditadura, não serve. Foi o passo que foi, digamos, politicamente possível, dar na época, mas eu não estou contente com aquilo não.
Assista ao vídeo
Olhar 65: Eu queria te perguntar o seguinte: Eu não sei se você viu uma entrevista que um representante da OCDE, o Frederico Guanais, diretor adjunto da divisão de saúde da OCDE, deu. Ele faz uma conta que me chamou atenção na entrevista para a BBC Brasil. Ele disse o seguinte, que o Brasil gasta em saúde 9,2% do PIB. Acima da média dos 37 países membros da organização, a maioria ricos, que gastam cerca de 8,8% do PIB. Mas ele disse que, no caso do Brasil, boa parte dessas despesas são privadas. A fatia de recursos públicos investidos nessa área representa apenas 4% do PIB, enquanto na média da organização ela é de 6,6% do PIB. Ou seja, o Brasil, um país mais pobre, tem mais investimentos privados na saúde do que público em relação aos outros países. Esses dados me parece uma coisa absurda não?
Eduardo Costa: Não é absurdo porque não é verdadeiro. Isso é uma contabilidade, não uma realidade. O Brasil escamoteou o processo de financiamento do SUS. O Brasil tem um sistema híbrido, que é público-privado, a palavra SUS não tem público no nome. Quando ele faz essas contas ele coloca como público só o que o SUS financia direto. Só que acontece o seguinte: mesmo esse financiamento direto, tem uma parte que vai para o hospital privado, quer dizer, é drenado para os hospitais privados. Ele entra na conta como se fosse público, mas é despendido em hospitais privados. Então a parte que vai mesmo para hospital público é menor do que esses 4%.
“O Brasil tem um sistema híbrido, que é público-privado, a palavra SUS não tem público no nome. Só o financiamento é público”
No entanto, vamos calcular melhor, de onde sai esse dinheiro que vai para o privado? Em primeiro lugar, não existe praticamente seguro privado no Brasil. São as empresas que fazem os seus funcionários pagarem os seus planos. A Fiocruz tem seu sistema de saúde, de seus funcionários, o Ministério da Saúde tem também, o Banco Central tem o seu seguro de saúde. A Câmara tem seu seguro saúde, etc. Todos são seguros privados, mas o dinheiro foi público. Só que, quando vai para a contabilidade, aparece como privado, mas é dinheiro público.
E tem mais uma coisa, mesmo essas empresas privadas que oferecem planos de saúde, eles podem abater do imposto de renda. Em alguns casos, da totalidade do que é entregue. Ou seja, é dinheiro público que está sendo subtraído. Isso daria um orçamento maior ao país.
E mais, todos aqueles que podem gastar mais com saúde têm retorno no imposto de renda. Os que têm menos não podem, por causa das alíquotas, etc. Então, nós temos um sistema privado praticamente todo ele financiado com dinheiro público. Só uma parcela é que não é.
Então, eu digo, essa contabilidade é fake (mentirosa). E é oficial, sendo fake. Esses órgãos internacionais vão repetir porque vão aparecer nos relatórios como sendo assim.
Quem financia a saúde no Brasil é o poder público. Que não tem condições de controlar o sistema, ou não quis.
“Quem financia a saúde no Brasil é o poder público. Que não tem condições de controlar o sistema, ou não quis”
E ainda passou uma enorme parcela de poder do SUS para o setor privado, ao instituir a Agência Nacional de Saúde. O país ainda tem que gastar para administrar os planos privados. Gasta dinheiro público para poder articular melhor os planos privados. Nós somos uns bons parceiros do setor privado.
Muita gente não gosta que eu fale essas coisas, mas elas são absolutamente verdadeiras. Dá para comprovar, eu escrevi sobre isso e ninguém diz que não é. Só não gostam. Querem continuar a viver num mundo de fantasia.
A entrevista deste diretor da OCDE é típica desse setor mundial que, especialmente a partir do neoliberalismo, fincou pé em algumas decisões. No setor saúde foi fundamental para eles levarem o possível do setor saúde para o setor privado. E eles foram os maiores advogados de que essas visões entrassem no sistema brasileiro. Eles fizeram de tudo para impedir que um país como o Brasil tivesse um serviço estatal público de saúde como os europeus são até hoje.
“Eles fizeram de tudo para impedir que um país como o Brasil tivesse um serviço estatal público de saúde como os europeus são até hoje”
Os europeus não têm essa conversa lá não. Todos são sistemas públicos mesmo. Não tem quase nada de privado. Às vezes, na Espanha, tem lá uma clínica privada para cirurgia plástica. No espírito público, os esforços são dirigidos para as coisas mais necessárias, etc. Há algumas coisas privadas, mas eles resistiram e mantiveram como essencialmente públicos. Como eu disse, eles são serviços, não são sistemas. O serviço pressupõe o Estado fazer o “delivery”, como eles chamam, isto é fazer a entrega do serviço. Ele tem que executar. No caso do sistema, há o contrato para a prestação do serviço. Públicos, privados, estaduais, municipais, etc.
“Não temos uma carreira de profissionais de saúde no Brasil. Temos carreira de ciência e tecnologia, temos a carreira na educação. Na saúde, vamos encontrar as carreiras isoladas, por categoria”
E haja coordenação para isso. É muito complicado. Não tem nem uma carreira dos profissionais de saúde. Não temos uma carreira de profissionais de saúde no Brasil. Temos carreira de ciência e tecnologia, temos a carreira na educação. Na saúde, vamos encontrar as carreiras isoladas, por categoria. O ente é o Ministério da Saúde, que pratica em alguns lugares. Não construímos a estrutura central. Estamos dispersos e desarticulados. Divididos até em questiúnculas políticas de menor tamanho. Em suma, nós temos um financiamento público para subsidiar a existência pluralista do setor privado.
Olhar 65: Eu queria que você falasse um pouco agora dessa questão das vacinas da Covid-19. Qual a perspectiva das vacinas? Pode-se dizer que tem uma guerra das vacinas na geopolítica, China, Rússia?
Eduardo Costa: Eu acho que nós temos uma situação, de novo, complexa. No Brasil nada é simples, não tem nada simples, né? Houve essa corrida mundial pelas vacinas, que teve a participação de todos, mas todo mundo já estava preocupado com dois pontos principais: um, como é que ele é financiado, aí houve maneiras muito diversificadas, houve doação, a crise pegou muito nisso, houve financiamento grande para poder desenvolver as vacinas, em geral em termos de doação, foi feito também com outros tipos de recursos.
E depois o segundo ponto, era como se distribui isso, era fundamental acabar com a questão de manutenção de patentes e houve um clima político positivo. Nós tivemos aqui no Brasil, de certo modo, o azar da sorte, porque a preexistência da doença, ela tendo se mantido todo esse tempo aqui, transformou o Brasil num lugar bom para se testar a vacina. E com uma população que está acostumada a isso. É mais complexo nos Estados Unidos as pessoas aceitarem fazer teste de vacina. E aí se dispuseram, três países, que estão com suas vacinas adiantadas, a fazerem acordos com o Brasil para isso. Isso propiciou possibilidades boas. A do Instituto Butantan, em acordo com a China, com a Sinovac, não tem patente, não paga royalties, nada disso.
Logo depois dessa, apareceu o acordo da Fiocruz com a Astrazeneca, que é uma empresa multinacional, a segunda maior da Inglaterra. Aí entra um processo que nós não conhecemos direito de contratos, que não estão abertos, e normalmente não se abre mesmo o detalhe, mas que recebeu o apoio muito rápido do governo. Na verdade, esse processo, como você sugeriu, de certo modo sugere que houve uma participação muito direta do governo Bolsonaro, interessado que não fosse a chinesa, segundo dizem. Isso interpretando um pouco quem são as figuras e o que eles dizem da China. Devem ter pensado que iam injetar um comunismo aí pela vacina.
Aquela vacina da China tem uma rota mais segura, a do vírus inativado. Muito conhecida, uma rota muito segura. Pode não ser a mais moderna, mas eles têm a outra também, eles desenvolveram a outra também, que é recombinante, na base do adenovírus. Esta vacina também está na fase três, já pode começar a fase três. Mas foi feito o acordo com essa, da Astrazeneca. A China está decidida, na verdade, a fazer disso um bem global.
‘A China está decidida, na verdade, a fazer de sua vacina um bem global”
Evidente que isso entrou, o problema é tão forte, que tem que fazer. Na verdade, há ainda os negócios da transferência de tecnologia e o Brasil abraçou isso. Não se pode ser contra. A população está querendo muito a perspectiva de vacina, se tiver duas, uma antes da outra, acho que isso a gente pode entender. O atabalhoamento, de certo modo, é compreensível. Mas, o governo federal demorou quase um mês para fazer o contrato. Eles devem ter pensado bastante.
Eu só não acredito, primeiro, que essa vacina vá ficar pronta em janeiro assim para todo mundo, mesmo que ela seja tudo muito bem. Os testes usam relativamente poucas doses. Nós conhecemos os muitos atrasos na produção, a gente sabe que isso não é uma coisa tão simples de botar em segurança na rua. Porque o problema da vacina é esse. Você está dando uma coisa que tem que ser muito segura, porque é para todo mundo, e todo mundo é uma quantidade enorme de pessoas. Um pequeno risco, se transforma em um grande problema. Então, nós temos que ir com cautela também. Não dá para ser afobado nisso, não.
Aí eu sempre digo, é muito difícil a gente ter uma vacina disponível numa quantidade boa antes do meio do ano que vem. Muito difícil. Agora, fizemos esse contrato com a Astrazeneca, num primeiro momento foram gastos 128 milhões de dólares, mais 500 e tantos milhões que a Fiocruz terá que usar para preparar uma área lá dela para produção. O Butantã também terá que fazê-lo para produzir, vai precisar preparar uma área industrial melhor para eles, ou mais ampla, para não parar com as outras vacinas. São recursos que valem, na ciência e tecnologia, são investimentos que a gente precisa ter. Mas não adianta ter, se ao mesmo tempo não tiver um projeto nacional. Senão as coisas estancam.
Aí daqui a pouco, você tem que importar outras coisas todas, porque só centra numa. Na saúde, você tem um leque de necessidades, um projeto mais amplo do que um focado apenas numa coisa. Então, a gente tem que trabalhar muito num planejamento para o desenvolvimento nacional. E uma boa perspectiva é fazer isso no campo da saúde. Exatamente porque existe um sistema público que dá uma possibilidade melhor de trabalho.
“Então, a gente tem que trabalhar muito num planejamento para o desenvolvimento nacional. E uma boa perspectiva é fazer isso no campo da saúde. Exatamente porque existe um sistema público que dá uma possibilidade melhor de trabalho”
Exatamente por essa característica, de ser um serviço público, que, portanto, você coloca como objetivo atingir todo o país com os serviços. Do contrário, você fragiliza, dividindo aos pedaços, estados, municípios, etc.
Um episódio, por exemplo, que a gente viu quando eu estava em Farmanguinhos (Fábrica de medicamentos da Fiocruz). Nós fizemos uma primeira portaria no Ministério da Saúde para um processo novo de aquisição de matéria-prima. Muito bem. Foi feita a portaria, tudo funcionou. Ministério encampou e tocou. Nenhum dos outros estados adotou a portaria. Então pegaram a lei brasileira, quer dizer, a lei nacional, e não valeu para os estados. Depois teve um laboratório que fez parecido, um pouco aqui e ali. Mas, ficaram servindo aos sistemas antigos. Mais tarde, muito mais tarde, as coisas mudaram mais. Então, esse é que é o problema, nós estamos num sistema. Mas exatamente quando fragmenta a decisão, há mais dificuldade de implantação, de fazer andar, de sustentação. O interesse político, às vezes eleitoral imediato, altera muito as perspectivas também. E a coisa sólida que eu vejo nos sistemas públicos de saúde na Europa é que eles se mantém bastante fora da nomeação partidária. Abrem para todos os diálogos que são comunitários e partidários, da sociedade como um todo, mas eles trabalham muito dentro de um quadro de referência técnico, mas também histórico. Porque essa questão do técnico isolado não existe. Essa coisa de ficar defendendo científico e técnico, é piada também. Essa coisa se não está alicerçada na história institucional, serve para qualquer coisa. Você diz qualquer coisa e vai valer. O que é necessário é uma estrutura institucional organizada, que é capaz, ao longo do tempo, com diferentes governos, de ter uma proposta séria, para a população inteira.
Olhar 65: Gostaria que você comentasse sobre a OMS. Tem uma guerra aí, os Estados Unidos acusam a OMS, jogam isso para cima da China. Todas essas confusões e essas complexidades que você levanta aí. A gente pode ver isso também em âmbito geopolítico mundial, o que tem alí é completa falta, no caso do governo dos Estados Unidos, de compromisso com algo que seja efetivo para enfrentar a pandemia. Não é isso?
Eduardo Costa: Evidente, isso marcou todo o tempo. Deixe eu falar mais um pouco sobre isso, porque é uma história cara para o Brasil. O Brasil é um dos responsáveis, exatamente pela posição do pós-guerra. Nós tivemos alguns grandes acertos na política internacional. Um desses acertos foi, certamente, na nossa posição, que se refletiu na Assembleia da ONU. Inclusive aquelas coisas, que não me lembro agora direito, do Osvaldo Aranha, de sua participação, e depois, a principal, fazer o segundo mandato, porque o primeiro foi provisório, o segundo mandato mais importante da OMS. Ele foi ocupado por um brasileiro (Marcolino Candau), por mais de 20 anos, cinco mandatos seguidos. Só depois, na ditadura, ele acabou saindo.
“A OMS foi ocupada por um brasileiro (Marcolino Candau), por mais de 20 anos, cinco mandatos seguidos. Só depois, na ditadura, ele acabou saindo”
Ele construiu tudo, a OMS estava esvaziada quando ele entrou. O motivo é que os soviéticos tinham se retirado, por causa da politicagem. Ele conseguiu fazer a recuperação, botar cento e quarenta e poucos países, quando ficou todo mundo querendo sair. OMS estava dividida na guerra fria. Ele conseguiu manter a coisa, uma coisa aqui outra para lá. Ele conseguiu trazer todo mundo para uma posição da saúde.
Hoje a gente está vendo muita dificuldade, porque a própria ONU, hoje, está mais complicada, muito mais fragilizada. Depois, especialmente da guerra do Iraque, do que fizeram lá pelo Oriente Médio, foi um horror, né? A OMS está muito fragilizada. A OMS não é mais o mesmo órgão. E talvez não consiga fazer muita coisa mesmo, porque corre para um lado, leva uma porrada, corre para outro lado, outra porrada.
E agora está nessa história que você está vendo por aí, inclusive eles abraçaram a questão do isolamento social indiscriminado e levaram muito tempo para entender que não dava para ser só daquele jeito. Levaram muito tempo.
E os Estados Unidos também ficaram fazendo, a Europa caiu nisso, e aí nós vimos que quem sabia trabalhar direito, foi à margem da OMS. Quem trabalhou direito foi à margem, que não era potentado e tal. Os ensinamento vieram mais da China, da Tailândia, do Vietnã, da Ásia. Depois, quando chegou aqui na América Latina, como é que pode, o Uruguai, Paraguai, Bolívia, todos trabalham melhor do que a gente. Todo mundo fez o que tinha que fazer, porque não ficou só no discurso do isolamento, na política anti-Bolsonaro, claro, Bolsonaro não dá em nenhum lugar. Eles foram para o serviço de saúde para ajustar e organizar a vigilância epidemiológica, o controle de casos no território.
“Os ensinamento vieram mais da China, da Tailândia, do Vietnã, ou seja, da Ásia”
Nós que temos 286 mil agentes de saúde, de certo modo, retiramos esse exército de campo e ficamos só querendo o geral, do isolamento, e essa estratégia tem um problema entrópico: aos poucos vai desgastando. As pessoas têm problema psicológico, seja o que for, é um desgaste. E a gente não disparou ainda a ação de vigilância, o Ministério não orientou, ou não foi capaz, os estados com mais clareza, um ou outro sim, já começou, isso foi agora.
“Eles foram para o serviço de saúde para ajustar e organizar a vigilância epidemiológica, o controle de casos no território”
Estão começando agora a organizar a vigilância epidemiológica, a busca ativa de casos, para fazer o rastreamento dos casos. Só agora nós estamos conseguindo dar uma resposta adequada, em parte eu diria porque a OMS só colocou isso em abril. Mas, mesmo assim, colocando isso dependendo, como se fosse assim: para sair do isolamento temos que fazer isso. Então, não sai do isolamento nem faz isso. Quando, desde do início, era para fazer junto as coisas. Então eu acho que a OMS, como todo órgão técnico, muito complexo no mundo que nós temos hoje, demorou. E essas orientações de isolamento social indiscriminado, isso daí é de um idealismo fantástico.
“Então eu acho que a OMS, como todo órgão técnico, muito complexo no mundo que nós temos hoje, demorou. E essas orientações de isolamento social indiscriminado, isso daí é de um idealismo fantástico”
Elas vieram a partir de uma visão de que não tem trabalhador para fazer a alimentação. Porque, há setores essenciais. Não fizeram nenhum programa para esses setores. Os trabalhadores ficaram totalmente esquecidos. E todo mundo, esquerda, direita, chamando isolamento! isolamento!
Está bem, e o que vão fazer com os que não se isolam, porque não dá para isolar? Os médicos estão morrendo, não tem programa. Não há programa de verdade para os trabalhadores de saúde do front. Os frigoríficos, todo mundo adoecendo, toda a cadeia de alimentação a partir do frigorífico, um lugar confinado, com temperaturas baixíssimas, adoecendo. Eles levaram até o Centro-Oeste, neste circuito da última expansão da epidemia dentro do Brasil. Não teve programa para eles. Nada. Pode pegar outros, desde o entregador de rua, até o feirante, tudo sem programa, entendeu? Só isolamento para todo mundo. Agora quem sustenta tudo isso, não tinha programa nenhum.
“Os médicos estão morrendo, não tem programa. Não há programa de verdade para os trabalhadores de saúde do front. Os frigoríficos, todo mundo adoecendo, toda a cadeia de alimentação a partir do frigorífico, um lugar confinado, com temperaturas baixíssimas, adoecendo. Não teve programa para eles”
A saúde, tem que fazer rastreamento, busca ativa. Tem que fazer uma série de coisas para fazer a interrupção da transmissão no pequeno lugar. Você vai fazendo coisas, apagando um foco aqui, apagando um foco ali, entendeu? Junto com o grande, com o isolamento geral possível. Claro que assim vai mais rápido. Mas, como nós não fizemos isso junto com o grande, que teve uma certa efetividade, reduziu aquele R de 3 para 1, aproximadamente, 1,3. Mas isso tem um limite. Agora, nós não fizemos nada do resto para poder acabar com a transmissão. É muito chato para nós da saúde pública, porque nós estamos muito imobilizados do ponto de vista sanitário. Numa defensiva, procurando o que não existe. Quer dizer, não temos projeto político que seja capaz de afastar esse governo imediatamente. Talvez não tenhamos nenhuma sustentação suficiente para isso, mas temos que encarar. A gente teve que encarar trabalhar na ditadura também.
“O isolamento geral teve uma certa efetividade, reduziu aquele R de 3 para 1, aproximadamente, 1,3. Mas isso tem um limite. Tem que ir a campo também para interromper a transmissão”
Olhar 65: E tem também o esgotamento das medidas tomadas pelo governadores e prefeitos…
Eduardo Costa: Não vou dizer que não teve lugares que fizeram certo no Brasil. Tem sim. Mas só que não adianta fazer sozinho. São Leopoldo, no RS, por exemplo, buscaram os casos nos frigoríficos e acabaram com os problemas deles, continuaram fazendo direitinho, mas não adianta se o vizinho não faz. O cara trabalha lá e vem aqui. Esse é o problema das regiões metropolitanas, como esta de Porto Alegre. Você tem lugares que trabalham muito bem, mas não estão de fronteira fechada com o vizinho. As pessoas trabalham em lugares diferentes de onde moram. Então, isso é muito importante em áreas metropolitanas. A gente está procurando orientar de como fazer.
Acho que o PCdoB criou uma boa perspectiva ao abrir essa discussão, inclusive no comitê Central, sobre esse tema. A discussão foi no sentido de denunciar, mas também de procurar soluções para o nosso povo. Não dá para a gente dizer apenas para ficar em casa e ponto. Não estamos diante de um problema simples. Não pode é a gente se retirar. Eu considero isso uma questão ética da saúde. Tem o profissional de saúde lá no front. Por que o profissional de saúde pública vai se retirar, como fez praticamente? Ficando com mais discurso do que prática. Logo numa epidemia. Que falta de senso! Está recuada a área da saúde pública.
“Acho que o PCdoB criou uma boa perspectiva ao abrir essa discussão, inclusive no comitê Central, sobre esse tema”
‘Não podemos deixar de enfrentar essa situação. E o resultado mais importante tem que ser o fortalecimento do SUS, que não respondeu adequadamente ao problema. É competente na área hospitalar, mas falhamos no planejamento das ações de combate à pandemia. Agora, estamos da dependência de uma vacina. Não que eu diminua a importância da vacina. A prioridade agora é proteger a vida. Não é só a classe média que, uma parte dela está também em risco maior, mas é principalmente o nosso povão trabalhador. Nós temos que protegê-lo, é um compromisso ético, profissional e político.
SÉRGIO CRUZ
(*) Eduardo Costa possui graduação em Medicina pela Fundação Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (1966), doutoramento em medicina, registrado na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (1967), mestrado em saúde pública pela Escola Nacional de Saúde Pública, registrado na Universidade Federal do Rio de Janeiro (1968) e doutorado em London School of Hygiene & Tropical Medicine – University of London (1981). Auxiliar de ensino, professor assistente e mais tarde professor titular de epidemiologia por concurso público (1977) da Escola Nacional de Saúde Pública (Fiocruz), com intensa atividade acadêmica e institucional até o fim da década de 90, com trabalhos pioneiros na área de doenças infecciosas e crônicas, modernização institucional da Fiocruz e no ensino de saúde pública.
Com atividade política estudantil na década de 60, participou da luta pela legalidade democrática, participando da vida política na redemocratização brasileira. A capacitação científica e a formação política passaram a abrir oportunidades no campo da gestão de saúde e de ciência e tecnologia, iniciadas em 1983, sem deixar de atuar em seu campo científico da epidemiologia e saúde pública, viabilizando assim contribuições de relevo na gestão pública por ação executiva e pela participação em Conselhos, entre eles: Conselho Estadual de Educação, Conselho Estadual de Controle de Agrotóxicos, Conselho Estadual de Meio Ambiente, Conselho Estadual de Saúde, Conselho Nacional de Saúde. Foi Secretário de Estado da Saúde do Rio de Janeiro no governo Leonel Brizola. Foi assessor da bancada do PDT na Constituinte de 1988. No campo internacional, foi Coordenador Nacional do Acordo de Cooperação Técnica Brasil-Reino Unido para Reforma do Setor Saúde e representante do Brasil no CEPI (Coalizão para Preparação para Epidemias e Inovações). Atualmente é Assessor de Cooperação Internacional da Escola Nacional de Saúde Pública da Fiocruz.