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“O escândalo da criptomoeda tão somente expressa, com cores mais fortes, o cotidiano das operações realizadas a cada minuto por todos os cantos do nosso planeta, cada vez mais financeirizado e conectado pelas redes digitais”
PAULO KLIASS*
O mais recente escândalo envolvendo o Presidente da Argentina, Javier Milei, deixa a nu algumas das características mais perversas do financismo globalizado contemporâneo. O representante da extrema direita, que ocupa os gabinetes da Casa Rosada, ofereceu apoio e credibilidade a uma jogatina envolvendo operações com criptomoeda. Uma loucura! O chefe do Estado nunca escondeu sua predileção por essas fantasias liberaloides associadas ao sistema financeiro, equivocadamente classificadas pela grande imprensa como “anarco-libertárias”, e levou uma enorme quantidade de cidadãos e empresas a verem seus recursos virarem pó quase que instantaneamente.
Trata-se da criptomoeda conhecida por $Libra, que foi criada pela empresa Meteora e estava sendo negociada na plataforma Júpiter. Para alavancar a operação, Milei fez propaganda em sua conta no X e teve início uma corrida em setores do mercado financeiro em direção a esse produto. Ocorre que a natureza puramente especulativa desse tipo de transação fez com as cotações despencassem em poucas horas, tendo os papéis perdido 93% de seu valor. A irresponsabilidade do Presidente configura claramente um crime contra a economia nacional e as forças de oposição vão apresentar sua proposta de instaurar um processo de impeachment em razão disso.
A questão a ser ressaltada é que o evento argentino não se caracteriza como uma exceção, “apenas” uma aventura tresloucada de um governante irresponsável. Muito pelo contrário! O escândalo da criptomoeda tão somente expressa, com cores mais fortes, o cotidiano das operações realizadas a cada minuto por todos os cantos do nosso planeta, cada vez mais financeirizado e conectado pelas redes digitais. Na verdade, a crise econômico-financeira de 2008/9 foi um dos sinais de alerta para os riscos que o sistema econômico globalizado e desregulamentado apresentava para a própria Humanidade. Ela teve início no mercado de títulos financeiros estadunidense, rompeu os diques atingindo as Bolsas de Valores, quebrando bancos e levando empresas de grande porte à falência.
CRIPTOMOEDAS SÃO A PONTA DO ICEBERG
Tendo em vista a interdependência dos mercados, aquela crise atravessou o Oceano Atlântico e instalou-se também no continente europeu. Uma das principais consequências daquele período foi a flexibilização das regras do chamado Consenso de Washington, ou seja, do arcabouço doutrinário do neoliberalismo. Assim, aspectos da austeridade fiscal foram deixados de lado, nos próprios países do centro do capitalismo, para salvar o sistema de uma crise que parecia ser contundente. Os estados nacionais foram chamados a realizar despesas orçamentárias para evitar um desastre maior. O setor público em vários países voltou a recuperar um certo protagonismo, inclusive por meio da reestatização de empresas que haviam sido privatizadas anteriormente. O próprio ideário liberal mais extremo foi também amortecido, com a adoção de várias medidas para regulamentar a sanha selvagem das livres forças de mercado em determinadas situações.
No entanto, apesar de vários alertas apresentados por economistas críticos do modelo em que está assentado o financismo global, nada foi feito para regulamentar os mercados e produtos financeiros que estavam na base do desencadeamento daquela crise. O crescimento descontrolado de setores e atividades sem nenhum lastro na economia real não foi objeto de regulação e fiscalização nos espaços nacionais e muito menos nas esferas internacionais. O surgimento de tais “produtos inovadores” no cardápio do financismo parasita e especulativo oferecia a narrativa falaciosa de serem instrumentos para acalmar os mercados e oferecer uma suposta segurança aos operadores.
Explodiram, assim, operações de mercado futuro e outros modelos conhecidos genericamente como “derivativos”, que nada mais são do que aplicações sem nenhum respaldo na realidade econômica objetiva e concreta. São títulos lastreados em títulos, que por sua vez estavam também lastreados em títulos e assim sucessivamente. Como a lógica de funcionamento dos mercados financeiros é a busca desenfreada apor resultados a curto prazo, os especialistas já denunciavam antes de 2008 a existência de uma bolha grave no conjunto do sistema e que uma mera fagulha poderia provocar uma corrida no interior dos mercados e a perda patrimonial dos valores envolvidos.
MERCADO DE DERIVATIVOS: MONUMENTAL E SEM CONTROLE
Pois desde aquela época o movimento especulativo só fez crescer em escala global, com crescimento da importância relativa de novas modalidades de aplicações, como as criptomoedas, e da ampliação do espaço ocupado pelas empresas não-bancárias (as fintechs, que têm sua origem no inglês financial technology) atuando como verdadeiros bancos e sem nenhum controle da parte de seus bancos centrais e outros órgãos reguladores. Tendo em vista a ausência de controle e a expansão contínua e permanente da porção de capital especulativo e parasitário, os riscos de uma nova crise global só fizeram aumentar.
As estatísticas coletadas e apresentadas pelo Banco de Compensações Internacionais (BIS) são bastante preocupantes. Esta instituição multilateral é apresentada como o “banco central dos bancos centrais”, mas infelizmente não consegue se impor como tal. As informações divulgadas por ela oferecem um cenário em que o descolamento da esfera financista em relação à economia real é estarrecedora. De acordo com os boletins da instituição, o movimento de crescimento do estoque de operações com derivativos em escala global é impressionante. A última informação disponível refere-se a junho de 2024.
Assim sendo, o total de recursos aplicados nesses papéis em todos os países superou a marca de US$ 700 trilhões. Considerando-se as estimativas do Fundo Monetário Internacional (FMI) para o PIB global da ordem de US$ 110 trilhões, percebe-se claramente o nível de alavancagem de tal volume de aplicações financeiras puramente especulativas. Apenas em títulos classificados como “derivativos”, o total representa um valor próximo a 7 vezes a somatória de bens e serviços de todos os países do mundo. Ou seja, vivemos permanentemente em uma situação de risco de uma nova crise, quadro que é ainda mais reforçado por um cenário de desregulamentação completa deste tipo de atividade.
REGULAR O FINANCISMO PARA EVITAR OUTRA CRISE
Os derivativos se baseiam em títulos relativos a taxas de juros, taxas de câmbio, preços de “commodities” e outros itens, sob o argumento de que ofereceriam seguros para os agentes do lado real da economia. No entanto, utilizando um argumento próximo ao anarco-libertarianismo de figuras como Milei, os grandes operadores do sistema financeiro internacional resistem como podem a qualquer tipo de regulamentação dos mesmos. A situação se torna ainda mais complexa caso adicionarmos os valores, igualmente trilionários, que circulam no submundo das operações financeiras, geralmente associados a atividades ilegais e criminosas, a exemplo do tráfico de armas, de drogas e de pedras preciosas. As criptomoedas se somam a esse universo de operações de alto risco e de regulamentação ainda inexistente.
Dessa forma, a operação estimulada por Milei representa apenas a ponta de um imenso iceberg que ameaça de forma permanente o conjunto das economias do mundo contemporâneo. Assim como as criptomoedas viraram pó em um piscar de olhos na Argentina, não é nada improvável que o volume superdimensionado e desregulamentado dos derivativos em escala internacional volte a sacudir os mercados do financismo globalizado. A inexistência de regulamentação de tais atividades é um convite à sanha especulativa e irresponsável dos operadores a serviço do grande capital.
*Paulo Kliass é doutor em economia e membro da carreira de Especialistas em Políticas Públicas e Gestão Governamental do governo federal.