CARLOS LOPES
(HP 09/11/2007)
O espírito de Spassky durante o match com Fischer pode ser bem aquilatado pela quinta partida (equivalente à sexta rodada, pois Fischer faltou à segunda). O norte-americano, que, quando jogava com as brancas, considerava um “princípio” começar pelo avanço do peão do rei, pela primeira vez na vida preferiu o chamado “gambito da dama” (a frase exata de Fischer, em seu livro de 1968, “My 60 Memorable Games”, quatro anos antes do match com Spassky, é: “eu jamais comecei uma partida com o peão da dama – por princípio”).
Era um lance psicológico – no entanto, não pouco arriscado. Spassky, após seu match de 1969 com Petrosian, era considerado o maior conhecedor no mundo de uma das variantes dessa linha, a variante Tartakower (alguns enxadristas a chamam “sistema T.M.B.”, sigla que vem do nome de seus principais desenvolvedores: Tartakower, Makogonov e Bondarevsky). Mais do que isso, a reputação de Spassky era a de jamais haver perdido um único jogo com essa linha (e, até onde pudemos verificar, essa reputação era justificada).
Por outro lado, em 1968, em seu livro “My 60 Memorables Games”, comentando sua partida com o iugoslavo Bertok (ed. cit., pág. 207), Fischer publicara uma análise dessa linha – e a seguiu, na partida de 1972 com Spassky.
Mas, depois de entrar em sua linha favorita, o campeão escolheu um caminho já refutado, dois anos antes, por seu compatriota Semyon Furman, em um famoso jogo pelo Campeonato Soviético. Era impossível que Spassky não conhecesse essa partida e, mais do que isso, não conhecesse o estudo que Furman publicou na URSS sobre o tema. Praticamente todas as revistas soviéticas de xadrez haviam registrado a partida e a análise de Furman.
Porém, pior ainda, o oponente que Furman derrotou na partida de 1970 foi Geller, que, em Reikjavik, era, exatamente, o principal analista de Spassky. Naquela altura dos acontecimentos, Geller também já havia analisado minuciosamente essa partida, em especial seu erro na 14ª jogada das negras – e descoberto uma alternativa, que aplicou com sucesso no ano seguinte, contra o holandês Jan Timman.
Mas Spassky, no entanto, repetiu, em 1972, o erro de Geller em 1970, como se tudo isso não existisse. E, frisamos mais uma vez, numa linha que era sua favorita – portanto, presumivelmente, sobretudo em se tratando de um jogador de seu nível, deveria estar interessado nas novidades a respeito dela, ainda mais quando as análises foram tão divulgadas.
Evidentemente, Spassky conhecia essas análises. Sua derrota nesta partida não foi por ignorância, mas pelo estado psicológico em que se encontrava – e já na quinta partida, de um match programado para 24 partidas.
O ERRO
No entanto, o match não começara mal para Spassky.
Na primeira partida, um erro de Fischer, tomando um peão desprotegido, lhe custou uma peça (um bispo) e dera a vitória ao campeão. Há muita coisa escrita sobre esse erro, aparentemente um erro crasso; a melhor análise, em nossa opinião, é a do próprio Fischer: segundo ele, simplesmente calculou errado, achando que o bispo poderia ser salvo depois de tomar o peão. O importante, aqui, é o motivo desse erro: Fischer, muitas vezes, tinha dificuldade em resistir a uma aparente vantagem material. Não por acaso, jogadores dispostos a sacrificar material (isto é, peões e peças) para obter uma posição melhor, ou um ataque, sempre foram, para ele, seus oponentes mais difíceis. O exemplo mais evidente é, naturalmente, Mikhail Tahl.
Mas esse problema é revelador de um efeito da insegurança de Fischer. Por isso, seu “calcanhar de Aquiles” eram as posições incertas. Ele necessitava estar seguro das sequências e posições que surgiriam. Avaliações gerais não eram suficientes para ele. Porém, tanto no xadrez quanto em qualquer outro campo da vida, muitas vezes é necessário tomar decisões sem que se esteja completamente seguro da sua correção, e, às vezes, até pouco seguro. Era nesses momentos que Fischer tendia a fracassar – inclusive, como nessa primeira partida do match de 1972, tendia a cometer o que os americanos chamam de “blunder”, isto é, um erro crasso.
No entanto, muitos diriam que a posição em que ele cometeu esse erro na primeira partida não era incerta, mas uma posição empatada. Pelo menos quando jogou – e errou –, Fischer, provavelmente, não tinha essa avaliação. Mas vamos admiti-la, porque, do ponto de vista objetivo, ela é verdadeira. Aqui está outra debilidade de Fischer: a dificuldade em se conformar com situações em que não é possível ganhar. Ele não tinha problemas em empatar uma partida perdida – v. seus comentários à partida com Walther, em “My 60 Memorable Games”. Mas, não era tranquilo diante de posições realmente empatadas. E, aí, ao forçar uma posição que não podia ganhar, a possibilidade de erro aumentava, como notou o mestre cubano Eleazar Jimenez-Zerquera, na análise de sua partida com Fischer na 15ª rodada do Memorial Capablanca de 1965.
É provável que Spassky fosse o jogador do mundo em melhores condições, do ponto de vista puramente enxadrístico, para colocar Fischer diante de situações do tipo das que mencionamos, em especial as do primeiro tipo. O problema é que não existe o “puramente enxadrístico”. Pelo menos não em jogos entre seres humanos.
Para vencer Fischer, Spassky teria que ser outro Spassky. Não outro enxadrista, mas outra pessoa. Diante de um oponente convicto – na época – de que era necessário “bater os russos pela América”, Spassky não estava convencido de que o lado em que estava, não o enxadrístico, mas o político, era o melhor. Isto, para dizer o mínimo. A impressão que ele passava – e ainda passa – é que achava o lado em que estava, pior que o do seu oponente.
Não era verdade, mas isso, também, não é culpa de Spassky – ou, pelo menos, não é somente, ou inteiramente, ou fundamentalmente, culpa de Spassky. Era essa a cultura que vinha se gestando na URSS desde 1956. Toda a ideologia de “emulação com os EUA” (no momento em que a URSS estava, depois do Sputinik, tecnologicamente à frente!) conduzia ao rebaixamento soviético diante dos norte-americanos. E este é apenas um aspecto secundário da questão: por que, na cabeça de muitos soviéticos, como Spassky, valeria a pena defender um país cuja história, na versão oficial, isto é, na versão de Kruschev, era uma história de crimes em massa?
Somente muitos anos depois essa versão seria abalada – e, hoje, encontra-se em frangalhos, daí a nova onda de livros anticomunistas sobre a história da URSS, que não seriam necessários, pois apenas repetem os anteriores, se não fosse para tentar costurar esses frangalhos.
Provavelmente, era pedir demais a Spassky que percebesse essas coisas, que na época não estavam claras nem para gente de muito mais responsabilidade do que ele.
Assim, Spassky entrou no match já derrotado. Não enxadristicamente derrotado, mas ideologicamente derrotado, numa guerra em que o xadrez era a forma sob a qual se travava uma batalha ideológica.
MEMORIAL
Pretextando a presença de câmeras de televisão, Fischer não compareceu à segunda partida do match. Não voltaremos, aqui, à questão da interferência de Kissinger, já abordada na parte anterior, nem nos deteremos em todas as miudezas levantadas ou provocadas por Fischer durante o match. Que Spassky haja se abalado tanto com elas, apenas demonstra o quanto ele já entrou batido nessa luta.
Para tornar sua situação mais complicada, houve uma série de desastres na preparação para o match. O maior deles, em nossa opinião, foi a realização, em novembro de 1971, de um torneio público, o Memorial Alekhine (logo com esse nome, e nessa hora!) com alguns dos principais jogadores soviéticos e de outros países – inclusive o americano Robert Byrne e o islandês Olafsson, conhecido amigo de Fischer. A atuação de Spassky, que chegou em sexto lugar (aliás, sétimo, pois, pelos critérios de desempate, Tahl acabou em sexto), somente serviu para fornecer uma demonstração pública de fraqueza. Mais ainda porque Petrosian, derrotado por Fischer no mês anterior, ficou em quinto lugar. Se os responsáveis pela preparação de Spassky queriam espargir um pouco de sangue para estimular o apetite dos tubarões, dificilmente encontrariam forma melhor. Se queriam esmagar psicologicamente o próprio jogador que preparavam, também seria quase impossível ideia mais brilhante.
Não por acaso, o chefe da preparação de Spassky era Alexander Kotov. Eis uma personalidade muito pouco abordada nos livros sobre história do xadrez. Já conhecemos (v. parte 6 deste artigo) o relato de Botvinnik, de como, nas Olimpíadas de Munique, Kotov, capitão da equipe soviética, tentou impor a ele, então campeão mundial, a submissão ao desejo americano de que pontuasse em branco contra Reshevsky.
Como jogador, o prestígio de Kotov era devido principalmente à sua vitória no Interzonal de Estocolmo, em 1952, a maior diferença de um primeiro colocado num Interzonal até que Fischer, em Palma de Mallorca, batesse o recorde por meio ponto. Mas, no ano seguinte, ficara em oitavo lugar no Torneio de Candidatos de Zurique, embora tenha sido o único a ganhar uma partida do vitorioso naquele torneio, Vassily Smyslov.
É verdade que seu prestígio era sombreado por uma história, segundo a qual tentara subornar o GM Alexander Tolush no Campeonato Soviético de 1945, não conseguindo o seu intento – Tolush ganhou a partida contra Kotov, o que fez com que este perdesse o terceiro lugar (acabou em sexto). Segundo outra versão, teria sido Tolush a oferecer-se para ser subornado, com o que concordou Kotov, mas não aceitou o preço – o total do prêmio correspondente ao terceiro lugar. Na duas versões, o papel de Kotov não é propriamente edificante.
Como autor, Kotov era responsável pela tentativa – aliás, bem sucedida após 1956 – de reabilitar Alekhine na URSS, com quatro volumes de uma alentada biografia enxadrística.
Porém, as obras mais conhecidas de Kotov são “Pense como um Grande Mestre” e “Jogue como um Grande Mestre”, os dois primeiros volumes de uma trilogia que se encerrou com o menos conhecido “Treine como um Grande Mestre”. Sobre este último livro, não podemos dar uma opinião, pois não o lemos. Os outros dois nos parecem exemplares daquilo que Lenin, falando de Bukharin, chamou de “pensamento escolástico”, ou seja, não dialético. Se os GMs raciocinassem apenas daquela forma, ou essencialmente daquela forma, o xadrez seria um jogo muito chato. Até mesmo o GM inglês John Nunn, autor que está mais longe da dialética e do comunismo que Bobby Fischer, notou a fragilidade da concepção de Kotov (cf. Nunn, “Secrets of Practical Chess”, Gambit Publications, 1998, págs. 7 e seguintes). Além disso, como observou um jogador brasileiro, Kotov parece ignorar, e mesmo desprezar, toda a dimensão psicológica do xadrez, o que não é pouca coisa, em se tratando de um livro sobre xadrez.
A partir do final da década de 50, Kotov tornou-se um dos principais dirigentes da Federação de Xadrez da URSS. Ao que parece, ele deu-se muito bem com as mudanças que ocorreram no país a partir dessa época.
Como chefe da preparação de Spassky, ele foi autor de algumas das mais arrogantes e histéricas declarações dessa época. Mas nada se comparou à ideia de colocar Spassky no Memorial que homenageava o ídolo de Kotov, Alekhine. Ao que parece – mas disso não temos certeza, embora nos pareça provável – ele foi um obstáculo a que Spassky levasse Geller como seu “segundo” para Reikjavik. E, nesse caso, a escolha de Spassky era inteiramente correta. Aliás, era a melhor possível: Geller não somente era um dos mais capazes analistas da URSS, respeitado pelo próprio Botvinnik, como era, também, um dos poucos jogadores que tinham derrotado Fischer – nada menos do que 5 vezes (contra 3 derrotas e 2 empates), e conseguira esse resultado jogando sempre as linhas favoritas de Fischer, ou seja, lutando no terreno do oponente.
KARPOV
Nesse sentido, Spassky foi capaz, em 1972, de uma partida brilhante, a 13ª do match, onde arrasou Fischer em 31 movimentos, usando a famosa Variante Gotemburgo da Defesa Siciliana (hoje conhecida como “variante do peão envenenado”), desenvolvida primeiramente pelos soviéticos, mas colocada em evidência pelo norte-americano desde 1961.
No entanto, num confronto que não era fundamentalmente enxadrístico, ganhou o lado mais decidido a derrotar o outro – Fischer venceu 7 partidas, empatou 11 e perdeu três, uma delas por W.O., fechando o match na 21ª partida.
Nos anos que se seguiram, a ascensão de Anatoli Karpov no xadrez mundial, sua vitória em 1974 nos matches contra Polugayevsky, Spassky e Korchnoi, a série de exigências de Fischer para disputar o título com Karpov, a aceitação da FIDE de quase todas essas exigências, e, mesmo assim, a recusa do campeão em enfrentar o desafiante, são fatos demasiado conhecidos para que tenhamos de nos debruçar sobre eles.
Não pretendemos analisar em profundidade os motivos de Fischer para não defender seu título. Faremos apenas uma observação: em quase todos os relatos sobre essa época, ressalta-se o medo pânico que Fischer tinha de perder, após a conquista de 1972.
Parece-nos que este medo existia, como existia antes do título – e, no entanto, nos momentos decisivos, Fischer sempre conseguiu encontrar forças para superá-lo. Além disso, não nos parece indiscutível que Karpov estivesse em condições de derrotar Fischer num match já em 1975. Embora, a verdade é que esta é uma daquelas questões para as quais cabe o verso de T. S. Eliot: “o que poderia ter sido é abstração”.
Portanto, em nossa opinião, há outro elemento – que, em geral, é subestimado, e, na maior parte das vezes, totalmente omitido.
Fischer havia empreendido a caça ao título, fundamentalmente, para, nas palavras do sutil Henry Kissinger, “bater os russos pela América”. E ele o tinha feito, não pela América, mas pelo establishment dos EUA. Três anos depois, é difícil considerar que essa motivação continuava a existir com a mesma intensidade. Nesse intervalo, houve Watergate, a queda de Nixon e Kissinger, os escândalos da CIA e a revelação de como os EUA estavam agindo no Vietnã.
No mesmo intervalo, Fischer havia se reaproximado da mãe, Regina, que não era propriamente, como já vimos, uma ardorosa defensora do status quo, muito pelo contrário. Não que tenha sido Regina a influenciá-lo a não disputar o título. Ao inverso, nos parece que foi o desencanto de Fischer com o uso de sua conquista pelo establishment, que fez com que ele se reaproximasse de sua mãe.
Se Spassky, três anos antes, tinha dúvidas sobre se valia a pena lutar pela URSS, agora era Fischer que não via grandes razões para empenhar-se em lutar por algo que já não lhe parecia a mesma coisa daquela época em que recebera o telefonema de Kissinger.
(continua)