CARLOS LOPES
(HP 14/11/2007)
No match entre Anatoli Karpov e Garry Kasparov, em Moscou, 1984, depois de apenas nove partidas, o score já estava em quatro a zero a favor de Karpov. Nem mesmo um mês havia se passado desde o início do match – a primeira partida foi em 10 de setembro; a nona, em 5 de outubro.
Tudo indicava que o campeão manteria o título pela terceira vez. No entanto, seguiu-se uma série impressionante de 17 empates. Pelas regras vigentes no passado, 26 partidas com o score de 4-0 seriam mais do que suficientes para que Karpov mantivesse o título – e por uma das diferenças mais dilatadas de toda a história do xadrez.
Mas as regras haviam sido mudadas – desde 1978. Não havia mais número fixo de partidas – venceria o match quem ganhasse seis partidas, independente do número total. Em suma, aceitaram-se as exigências de Fischer em 1975, embora, nem assim, ele enfrentara Karpov, perdendo o título por abandono.
Bem mais importante do que o autor das exigências – Fischer, como agora parece ter em parte percebido, foi um joguete na guerra contra os soviéticos – era o significado dessa mudança de regras: voltara-se, exatamente, à regra do match entre Capablanca e Alekhine, travado em 1927, ou seja, 57 anos antes.
Naturalmente, já se sabia no que redundava essa regra, quando os oponentes eram razoavelmente equilibrados: num oceano de empates e na decisão pelo esgotamento de um dos contendores. Uma espécie de maratona da morte enxadrística. A nova regra, instituída quando os soviéticos voltavam a ter a hegemonia do xadrez mundial, favorecia o desafiante contra o campeão, quanto mais não seja pelo ímpeto em conquistar o título – ninguém é capaz de ter o mesmo ímpeto para conservá-lo, sobretudo depois de fazer isso mais de uma vez.
Como nos antigos filmes de Hollywood, o pistoleiro mais jovem tem muito mais gana de matar o pistoleiro veterano, do que este de matar o mais jovem. Além disso, há uma vantagem intrínseca de ser mais jovem. Os campeões, como é óbvio, com o passar dos anos tendiam a ter mais idade do que os desafiantes – e vencer seis partidas, em um match com número ilimitado de partidas, passaria a ser cada vez mais, para o campeão, algo parecido com o suplício de Tântalo.
No caso de Karpov, pior ainda, pois se sabia que a saúde do campeão, apesar de não alcançar os extremos de Mikhail Tahl, não era, propriamente, o que se chama uma saúde de ferro.
Apesar disso, na 27ª partida, Karpov venceu outra vez. Agora o match estava em 5-0. Nenhum campeão conseguira antes uma tal façanha, sobretudo quando tinha contra si toda a mídia mundial e, inclusive, boa parte da soviética, que torcia sem inibições por Kasparov, assim como a maior parte da audiência que comparecia quase todos os dias à Sala das Colunas da Casa dos Sindicatos, onde se travava o match. Bastava mais uma vitória para que continuasse com o título.
Depois de mais três empates, na 31ª partida, Karpov conseguiu outra vez ficar em posição superior. Era possível tentar a vitória – e fechar o match. O próprio Kasparov, posteriormente, admitiu que as chances de Karpov vencer essa partida eram mais do que boas. No entanto, o campeão acabou por aceitar o empate proposto pelo oponente e, segundo várias testemunhas, parecia “aliviado” quando o jogo terminou. Essa partida foi jogada no dia 7 de dezembro de 1984 – portanto, o match já durava três meses.
Na partida seguinte, a 32ª, Karpov perderia pela primeira vez.
No decorrer das 48 partidas do match – finalmente anulado pelo presidente da FIDE, o filipino Florencio Campomanes – o campeão perderia 10 quilos e não estava mais à beira da exaustão. Já havia passado esse limite. Quando o match foi interrompido, o score estava em 5-3.
Porém, bem antes disso, havia começado a cruzada. Ou, melhor, a cruzada que havia começado com o artigo de Arrabal (ver parte 1 deste artigo), quando Kasparov nem era conhecido no ocidente, de repente agudizou-se.
Depois da 12ª partida, quando Kasparov propôs o empate no 21º lance, o GM Harry Golombek, um conhecido – por desastrado – árbitro da FIDE, publicou no “Times”, de Londres, um artigo. Segundo ele, seu preferido, Garry Kasparov, estava empatando porque os comunistas ameaçavam a sua família, e prometiam cumprir as ameaças, se ele vencesse o match. Hoje, que conhecemos bem a sra. Clara Kasparov, essa história parece um delírio. E parece um delírio pela simples razão de que é um delírio. Diante da ilustre genitora de Kasparov, o mais provável é que os comunistas soviéticos, havia duas décadas cultivando o apaziguamento, saíssem correndo…
ALBURT
Em março de 1985 – portanto, um mês após a última partida deste match – Lev Alburt, um desertor da URSS que se transformara em campeão dos EUA, escreveu em “Chess Life” (a revista da Federação dos EUA – USCF) que Karpov ingeria estimulantes durante o match. Era isso, supõe-se, o que explicava o fato de não haver se rendido a Kasparov, apesar do suplício de Tântalo em que a FIDE transformara a disputa do título mundial.
A prova, segundo Alburt, era a presença do dr. Vladimir Zukhar no match em que Karpov defendera o título pela primeira vez, sete anos antes, em Baguio, Filipinas, contra Korchnoi. O artigo de Alburt afirmava que, ao contrário do que se pensava, Zukhar era um especialista em estimulantes.
Esse “ao contrário do que se pensava” era sacado para resolver um grave problema da história de Alburt: em 1978, durante o match de Baguio, o mesmo dr. Vladimir Zukhar foi acusado de ser um parapsicólogo da KGB, que faria parte da delegação de Karpov com a função de hipnotizar, ou influenciar por telepatia, o seu oponente. Toda a imprensa americana e europeia havia publicado e republicado esse suposto currículo de Zukhar. Agora, seu nome reaparecia no artigo de Alburt como especialista em estimulantes…
Era pouco provável que Zukhar mudasse de profissão em apenas sete anos. Mas não era isso o que Alburt dizia: segundo seu artigo, já em 1978, Zukhar era responsável por administrar estimulantes a Karpov. Portanto, supõe-se, estavam também explicadas as derrotas de Korchnoi – só podiam ser porque Karpov usava estimulantes.
Porém, Alburt desertara para os EUA em 1979. Se sabia de alguma coisa sobre Zukhar, levara seis anos calado, enquanto a imprensa norte-americana fazia um carnaval com a história do “parapsicólogo da KGB”. Mas Alburt poderia ter recebido informações, ou boatos, mais recentes da URSS. No entanto, ele não se preocupou com essas minudências conhecidas como fontes, ou com detalhes tais como critérios de verossimilhança, esse negócio que só serve para atrapalhar a vida de propagandistas aplicados.
Em meio a uma mistura de abacaxis com rodas de velocípedes, Alburt, porém, disse algo interessante. É verdade que, para isso, ele torce mais uma vez o parafuso, por pouco não ingressando no torneio de candidatos do velho Juqueri. Diz ele que Zukhar passou a trabalhar com a equipe de Kasparov. Como podia ser isso? Quem estava tomando estimulantes era Karpov; a prova disso era que Zukhar, que o acompanhou no match de 1978, era “especialista em estimulantes”, e não “parapsicólogo”; mas, agora, era com Kasparov que ele trabalhava. Por acaso, Kasparov estava usando estimulantes? Não, segundo Alburt. Era Karpov quem usava os estimulantes. Se o amigo leitor não entendeu, não fique preocupado. Isso não tem a menor importância.
Mas, continua Alburt, Zukhar havia revelado a Kasparov e sua equipe que Karpov “entraria em colapso” se o match fosse muito longo. Logo, concluía Alburt, por isso Kasparov esticou o match, inclusive propondo empate atrás de empate.
A história pode ser, e era, absurda, mas não a descrição da tática de Kasparov. Foi mais ou menos – ou, talvez, foi exatamente – o que ele fez.
Quanto a Zukhar, era apenas um psicólogo, professor da Universidade Central de Moscou, que há longos anos acompanhava Karpov. Somente isso (cf. Karpov e Baturinsky, “From Baguio to Merano”, Pergamon Press, 1986).
Note-se que o indefectível coronel Edmonson, em seu livro sobre o match de 1978, também refere-se a Zukhar apenas como “consultor psicológico”, apesar de seu ponto de vista ser, naturalmente, oposto ao de Karpov e Baturinsky – chefe da delegação soviética em 1978 – no livro citado. A CIA estava, evidentemente, informada sobre quem era Zukhar. Mas, certamente, não foi por isso que Edmonson manteve-se fiel à verdade quanto a ele. O motivo de sua moderação ficará claro em seguida (cf., E. B. Edmonson, “Chess Scandals: The 1978 World Championship Match”, Pergamon Press, 1981).
MUDANÇA
Kasparov não começou o match com essa tática. Pelo contrário, nas sete primeiras partidas jogou nitidamente para decidir o match o mais rápido possível. Na oitava, pela primeira vez, propôs o empate depois de apenas 20 jogadas. Mas, na seguinte, confiando na sua preparação doméstica contra a linha pela qual Karpov optou, reincidiu em tentar decidir logo – e o final foi ganho pelo campeão, um dos melhores finalistas da história do xadrez.
A partir daí, Kasparov, nitidamente, mudou. O que teria acontecido?
Somente muitos anos depois, soube-se que seu ex-professor, Mikhail Botvinnik, num erro pelo qual pagaria caro, fora em socorro de Kasparov, propondo exatamente que ele esticasse ao máximo o match, pois, argumentou, com isto a vantagem passaria para o lado do desafiante. Certamente que, nisso, entrava em consideração, também, a diferença de idade. Mas não principalmente. Kasparov tinha 21 anos, mas Karpov tinha apenas 33. Não era isso o mais relevante.
Botvinnik conhecia Karpov tão bem quanto conhecia Kasparov. Os dois eram produtos da sua escola. No entanto, nessa hora, preferiu um de seus pupilos contra o outro. Resta saber por quê. Nisso temos apenas hipóteses.
Mas, antes que aventemos essas hipóteses, resta dizer que Karpov era um excelente jogador de torneio – até hoje, ele é o jogador que mais venceu torneios, e o campeão que durante o seu reinado mais jogou e ganhou em torneios. No entanto, Botvinnik sabia que ele não tinha um desempenho semelhante em matches.
Desde que ganhara o título, após a recusa de Bobby Fischer em defendê-lo, Karpov havia mantido o título nada menos que duas vezes – mas as duas contra Korchnoi, um jogador vinte anos mais velho. E ele era, sem dúvida, um jogador melhor do que Korchnoi.
Este, aliás, quando soviético, já era o mais detestado pelos colegas, basicamente por problemas de caráter. Depois de sua deserção para o ocidente, fizera o possível para bater os recordes de todos os anticomunistas anteriores, juntos e somados. Sua posição política parecia, para que os leitores tenham uma ideia, um pouco à direita do reverendo Moon, dono do jornal favorito de Reagan, o “Washington Times”. Em 1978, até mesmo Mikhail Tahl, que geralmente não tinha inimizades, somou-se à equipe de Karpov para ajudá-lo a derrotar Korchnoi.
(Aqui, achamos necessário um parênteses. Alguns leitores podem estranhar a forma como nos referimos a Alburt e Korchnoi – como desertores – apesar dos próprios americanos assim os tratarem. Hoje, muitos que não viveram aqueles anos não têm – e não podem ter – consciência de que havia uma guerra entre os EUA e a URSS. Não se chamou àquele período de “guerra fria” por acaso. Talvez o adjetivo “fria” fosse inapropriado. Mas não o substantivo “guerra”. Passar para o outro lado, e essa era a questão de Alburt e Korchnoi, no meio de uma guerra, tem o nome de deserção, embora possa haver nomes piores.)
O fato é que no primeiro match com Korchnoi, em Baguio, Filipinas, onde o psicólogo Vladimir Zukhar foi acusado de ser um parapsicólogo da KGB, Karpov não permitiu que acontecesse com ele o que acontecera com Spassky.
Em meio a um batalhão da mídia, Korchnoi apareceu para a primeira partida com óculos de lentes espelhadas. Karpov reclamou que o reflexo nos óculos de Korchnoi estava atrapalhando a sua visão (“Os óculos eram como dois espelhos, e, quando Korchnoi levantava sua cabeça, a luz das numerosas lâmpadas sobre o tablado era refletida nos meus olhos”, descreveu Karpov em “From Baguio to Merano”). Mas os árbitros decidiram a favor dos óculos de Korchnoi.
Quatorze jogos depois, Korchnoi reclamou que Karpov estava girando a sua cadeira. O árbitro dirigiu-se a Karpov, que respondeu: “eu paro de girar, se ele tirar os óculos”. Mas a FIDE decidiu proibi-lo de girar a cadeira.
Não nos deteremos em cada questão ridícula aprontada por Korchnoi. Basta observar que o aparato montado em torno do desafiante, uma campanha de mídia que repetia a história de como a família de Korchnoi estava sendo perseguida na URSS – e ocultava o fato de que ele abandonara a família – acabou ruindo depois da descoberta de dois criminosos em sua entourage.
PROCURADOS
Eram dois pilantras, sempre vestindo batas indianas, que eram chamados de Dada e Didi. Os nomes verdadeiros eram Steven Dwyer e sua presumível mulher, Victoria Shepherd. Os dois americanos eram membros de uma seita indiana denominada “Ananda Marga” e estavam condenados a 17 anos de cadeia, por tentativa de assassinato. A seita, aliás, tinha um símbolo muito interessante: uma estrela de seis pontas tendo em seu interior um sol com uma suástica no centro.
Na 18ª partida, quando o score já estava em 4 a 1 para Karpov, Dada e Didi fizeram uma palhaçada na plateia, supostamente à guisa de meditação para neutralizar os poderes de Zukhar. Na partida seguinte, apesar da segurança filipina querer barrá-los, a FIDE deixou-os entrar mais uma vez.
Até o fim do match, que durou mais 14 partidas, a presença dos criminosos foi um elemento extra de tensão. O próprio “segundo” de Korchnoi, o GM Raymond Keene, demitiu-se em função da presença dos dois condenados (“eu declinei de qualquer pagamento pelo match vindo da parte de Korchnoi no prêmio e sugeri que ele doasse o dinheiro para seus gurus da Ananda Marga” – Keene, “Karpov-Korchnoi: Massacre in Merano”, Batsford, 1981).
Mesmo assim, Korchnoi não se separou deles, e nem a FIDE impediu sua ação, mesmo quando seu presidente, Florencio Campomanes, denunciou, após a 21ª partida, que sua esposa havia recebido um telefonema ameaçando-a de morte. Estranhamente, Campomanes parecia ter perdido o poder.
Enquanto isso, Korchnoi apareceu na 20ª partida vestido com uma bata indiana. Depois, promoveu uma entrevista coletiva em que Dada e Didi mostraram os exercícios de yoga que vinham ensinando ao seu patrão.
Não é espantoso que, em meio a essa confusão, Karpov tenha permitido que Korchnoi empatasse o match em 5-5 na 31ª partida. Porém, logo na partida seguinte, completou as seis vitórias que fechavam o match. A atitude de Korchnoi foi não reconhecer o resultado. Mas isso não tinha, também, a menor importância.
Três anos depois, em 1981, o desafiante seria outra vez Korchnoi. O que demonstra que, com exceção de Karpov, o xadrez soviético – e, de resto, o mundial – ainda não saíra da entressafra.
Mas, desta vez, Korchnoi não teve a menor chance. Em apenas 18 partidas, o campeão conseguiu vencer seis, contra duas do desafiante.
ERRO
A recuperação do xadrez soviético devia-se, outra vez, ao fundador da escola soviética de xadrez. Juntamente com suas pesquisas na área da informática, onde se dedicara ao que, então, parecia impossível – elaborar um programa de computador que analisasse as posições no tabuleiro – Botvinnik havia fundado uma escola no sentido literal da palavra. Os dois próximos campeões mundiais seriam seus alunos, Karpov e Kasparov, além de vários outros grandes enxadristas da nova geração. Mesmo afastado das competições a partir de 1970 – e da disputa do título mundial a partir do início da década de 60 – ele continuava sendo o esteio do xadrez soviético. A falta de consideração mostrada para com ele era capaz de feri-lo, mas não de abatê-lo – em 1970, no match URSS x resto do mundo (um evento de que Botvinnik, com razão, não gostava), designaram para ele o oitavo tabuleiro.
Voltamos aqui à questão: por que Botvinnik resolveu ajudar Kasparov contra Karpov?
O historiador estoniano Valter Heuer relata uma entrevista que fez com Botvinnik em 1990. Nela, perguntou sobre as acusações de que o velho campeão teria “instigado” a suposta prisão de Keres. A resposta de Botvinnik foi que essa história fora abanada por Karpov quatro anos antes – portanto, em 1986 – numa entrevista ao jornalista alemão Bernd Nielsen-Stokkeby. Em “The Keres-Botvinnik Case”, Taylor Kingston cita as conclusões de Nielsen-Stokkeby, após pesquisar a acusação: “Eu considero que as palavras de Karpov são uma mentira”.
Resta saber porque Karpov mentiu – ou, talvez, tenha apenas repetido algo que ouviu. Mesmo assim, ele conhecia Botvinnik bastante bem – e devia muito a ele. Por que, então, fez essa declaração?
As datas não podem deixar de ser levadas em consideração. Teria Karpov dado a declaração ao jornalista alemão em função de seu ressentimento pela ajuda de Botvinnik a Kasparov?
Sabe-se que Karpov não foi um aluno fácil para Botvinnik. Durante os primeiros tempos, ele resistiu ao aprofundamento na teoria do xadrez, o forte de Botvinnik. E também a recíproca foi verdadeira: o jovem Anatoli Karpov, então com 12 anos, a custo suportou Botvinnik como professor. Este, segundo alguns, subestimava o aluno. Posteriormente, Karpov diria que o trabalho de casa passado por Botvinnik realmente o ajudou, forçando-o a consultar livros de xadrez e a ser mais disciplinado. Mas, nessa declaração está embutida uma certa crítica a Botvinnik, ao se referir especificamente ao “trabalho de casa” – e nenhuma palavra sobre as aulas e a escola propriamente dita.
Mas, terão sido esses precoces problemas entre Botivinnik e Karpov que determinaram a decisão de ajudar Kasparov – e a declaração posterior de Karpov? Não sabemos com certeza, mas nos parece que há algo de verdadeiro nisso. No entanto, como veremos, havia mais identidade entre Karpov e Botvinnik do que entre este e Kasparov.
(continua)