CARLOS LOPES
(HP 16/11/2007)
Devido à sua importância para o tema de que nos ocupamos na parte anterior deste artigo – e, inclusive, pelo marcante estilo literário – tomamos a liberdade de, parcialmente, reproduzir a seguinte mensagem de mestre Hélder Câmara. Para os não aficionados em xadrez, o Mestre Internacional Hélder Câmara, duas vezes campeão brasileiro, três vezes vice-campeão, integrante da equipe brasileira nas Olimpíadas de Lugano, Siegen, Nice, La Valetta e Tessalônica, além de participante em vários outros eventos internacionais, relevante teórico – a ele se deve a Defesa Câmara, também chamada de Defesa Brasileira – é uma das glórias do xadrez brasileiro. Porém, sobretudo, é homem de profunda cultura humanista. Eis a sua mensagem:
“SP. 13 nov 2007.
“Caro Carlos Lopes, apenas algumas observações sobre o seu precioso e preciso trabalho: o Zukhar era realmente um eficientíssimo parapsicólogo, com PhD na Universidade de Leningrado, onde havia uma cadeira específica nessa área, que foi estimulada até em demasia pelas autoridades soviéticas, mas que agora está desativada.
“Zukhar, que já trabalhara com Korchnoi, sentava-se na primeira fila de espectadores do match Karpov x Korchnoi e, não obstante espesso vidro colocado no proscênio, ele teria conseguido influenciar negativamente na atuação de Korchnoi – segundo alegavam os secundantes do descarado apátrida. Daí, porque ele se valeu desses dois aventureiros da seita Ananda Marga para criar uma pantomima em Baguio, ameaçando também abandonar o match, se Zukhar não fosse colocado, no máximo, na oitava fileira de cadeiras distante do palco – para que as suas ondas mentais não influenciassem negativamente na mente de Korchnoi. E assim foi feito!
“Quando o match ficou igualado em 5 x 5, foi a vez da Delegação Soviética fazer suas exigências: se Zukhar não se sentasse onde quisesse, aquilo seria considerado como uma acusação espúria contra Karpov e ele (Karpov) não jogaria mais! Aí, foi a vez da FIDE ceder, e Zukhar sentou-se na primeira fila do teatro. É claro que isso valia muito mais como provocação e, quem sabe, como uma insinuação de que Zukhar podia realmente interferir no resultado da partida – capaz de perturbar uma mente sempre deturpada como a de Korchnoi. Se isso teve influência ou não sobre Korchnoi (é possível que tenha tido, não por causa de Zukhar, mas pela cabeça fraca do próprio Korchnoi), o fato é que ele jogou uma defesa inédita em seu repertório, a Pirc – sendo facilmente derrotado.
“Depois disso, criou-se a lenda de que a KGB ameaçara a esposa e o filho (Igor) de Korchnoi para que ele perdesse a partida. E, mais, eles seriam proibidos de deixar a URSS para se encontrar com o ‘papai’ Korchnoi (que há muito estava amancebado com uma coroa chamada Petra – com quem vive até hoje). Aqui, vem a parte cômica dessa história: a KGB (….) liberou mulher e filho de Korchnoi para deixarem a URSS e se unirem a ele, desmascarando com isso o seu blefe (!). E o que fez Korchnoi? Recusou-se terminantemente a recebê-los na Suíça, sendo que todos conhecem o processo que o seu filho Igor moveu contra ele, por danos morais e materiais!
(….)
Um abraço amigo, Hélder Câmara.”
Com esta inestimável ajuda, encerramos as nossas considerações sobre Korchnoi e sua entourage. Naturalmente, elas não seriam necessárias se até hoje não houvesse alguns incautos – outros, nem tão incautos assim – que ainda repetem a propaganda reacionária de 30 anos atrás, como se fosse o suprassumo da verdade. Embora, é forçoso reconhecer que, na atualidade, esse besteirol permanece insepulto principalmente devido a Kasparov.
KARPOV
Já que começamos por um rescaldo da parte anterior deste artigo, voltemos por um momento às relações entre Botvinnik e Karpov.
Há um ano, quando Karpov esteve no Brasil, um amigo, Ubirajara Nascimento Rodrigues, diretor do Clube de Xadrez Virtual (CXV), entidade que se dedica ao xadrez por e-mail, pediu-me que formulasse alguma pergunta ao ex-campeão mundial. De pronto, sugeri a ele a única pergunta que veio à mente: “qual foi a influência de Botvinnik em sua carreira?”. Transcrevemos a resposta de Karpov, na entrevista a Ubirajara:
“Por algum tempo estudei na Escola de Botvinnik e a coisa mais importante que ele me passou foi que você tem que trabalhar muito o xadrez e se preparar muito seriamente, trabalhar todos os dias. Isso é muito importante” (o conjunto da entrevista pode ser encontrado em: http://www.cxv.com.br/html/varios/AnatolyKarpov.htm).
Isso foi tudo. Nem uma palavra a mais. Nenhuma observação sobre estilo ou sobre análise, ou sobre escolhas de linhas ou planos estratégicos – um conceito que Botvinnik desenvolveu e ao qual Karpov sempre foi rigorosamente fiel.
Bruce Pandolfini (mais conhecido, pelos que assistiram ao filme “Lances Inocentes”, como o treinador, interpretado por Ben Kingsley, do garoto Josh Waitzkin) escreveu que as partidas de Karpov são sempre “didáticas”, ou seja, são claras de uma tal forma que sempre ensinam alguma coisa a quem as refaz. É verdade. Mas essa é uma característica comum entre Karpov e Botvinnik.
Havia outras características em comum. Ambos eram membros do PCUS. Karpov, além de deputado eleito para o Soviete Supremo, foi membro do Comitê Central do partido.
Porém, é verdade que, nisso, tanto pode haver uma fonte de identidade quanto de discrepâncias: os comunistas da época em que Botvinnik se formou eram aqueles que ergueram um país arrasado; que, sob cerco, construíram uma indústria poderosa e coletivizaram o campo; que enfrentaram uma luta feroz dentro do país contra a quinta-coluna capitulacionista; que, logo em seguida, tiveram de resistir e vencer a invasão nazista, com rios de sangue encharcando a sua terra; e que, depois de tudo isso, comandaram a nova reconstrução do país. Em suma, gente que estava próxima dos personagens de Ostrovsky, em especial o Pavel Korchagin de “Assim Se Forjou o Aço”.
Karpov, nascido em 1951, não conheceu essas épocas de sofrimento e heroísmo, exceto de forma indireta. Como alguns outros milhões de membros do PCUS dessa época, Karpov viu o país ser corroído por dentro – pelo acomodamento, espírito burocrático, bajulação ao ocidente e, simplesmente, pela traição – sem saber o que estava acontecendo, e, portanto, sem saber o que fazer diante do cada vez mais cinzento ambiente que surgiu a partir de 1956. No entanto, mesmo sem saber o que fazer, mesmo paralisados e intimidados, eles não eram trânsfugas. Faziam, e fizeram, o que podiam – isto é, o que a sua consciência lhes permitiu fazer – pelo país e pelo seu povo. O papel de trânsfuga estaria destinado a uns poucos, aos Gorbachev, Yeltsyn e Kasparov.
POLÍTICA
É interessante, do ponto de vista histórico, observar que a partir de 1972 a disputa pelo título de campeão mundial de xadrez torna-se abertamente política. Mesmo com o abandono de Bobby Fischer, não se voltou ao estado anterior, em que a luta política ficava em segundo plano em relação à disputa enxadrística. Daí, ser totalmente inútil – e mentiroso – ignorar essa dimensão agudamente política que o xadrez, em especial a luta pelo título mundial, adquiriu. Não por acaso, Kasparov não a ignora. Seu ponto de vista é, somente, o da direita em relação a essas disputas. Na verdade, “Meus Grandes Predecessores” somente pode ser lido como uma auto-justificativa da posição reacionária e colaboracionista do autor. O resto, inclusive o xadrez, é apenas uma espécie de excipiente químico.
O caráter de Kasparov começou a ficar nítido logo depois de encerrado o primeiro match com Karpov. E, notemos, ele foi precoce: tinha apenas 22 anos. Em relação a Korchnoi, ele possuía algumas lastimáveis vantagens, além da precocidade de caráter, ou da ausência dele: não era um histérico, exceto em momentos extremos; sempre esteve mais para a conduta fria. Ou, diria um psiquiatra, estava mais para sociopata do que para neurótico.
Logo depois do primeiro match, Kasparov propôs que o lugar de campeão fosse considerado vago. Era uma proposta absurda. Depois de cinco meses e 48 partidas, quando o match foi anulado pelo presidente da FIDE, o resultado estava em 5-3 para Karpov, que, inclusive, havia sido contra a anulação. Por que, então, considerar vago o título?
Não era apenas a popular “guerra de nervos”. A pressão era para que o próximo match começasse do zero, sem considerar os resultados do primeiro. Evidentemente, o principal prejudicado com isso seria Karpov, uma vez que teria cinco vitórias desconsideradas e, Kasparov, apenas três.
Quanto à “guerra de nervos”, o problema é que os soviéticos, em geral, não estavam acostumados com isso dentro do seu próprio país – e, menos ainda, dentro do PCUS, ainda que ela existisse. Fazia 30 anos que toda a ideologia oficial era uma negação das formidáveis tensões inerentes à construção de um novo regime social. E, relembremos, não apenas Karpov, mas também Kasparov, eram membros do PCUS. O último, além do mais, era dirigente nacional da Juventude Comunista (Komsomol). O fato é que tanto Karpov quanto a maioria dos soviéticos não conseguia entender o sentido do que Kasparov fazia. Em suma, subestimavam – ou, mesmo, ignoravam totalmente – a malignidade de suas ações, seu oportunismo e falta de escrúpulos. Daí a sua popularidade nesse momento, em especial entre os jovens, criados, fazia anos, no culto à ilusão.
Porém, a mídia imperialista – e, provavelmente, os serviços de “inteligência” ocidentais – perceberam logo qual era a questão. Isso, aliás, foi o mais peculiar no caso. Desde o início de sua carreira, os inimigos da URSS perceberam que podiam contar com Kasparov. No entanto, este jamais foi algum “dissidente”. Como podiam, então, estar tão bem informados sobre Kasparov?
Se algum espiroqueta reacionário interpretar essas questões como tentativa nossa de dizer que Kasparov já era, antes dos 22 anos, um agente da espionagem ocidental, isto será apenas porque se trata de um espiroqueta.
A questão é outra. Na década de 80, após a chegada de Ronald Reagan à Casa Branca, houve uma mudança no foco da política imperialista em relação à URSS. Até então era nos chamados “dissidentes” – algumas almas penadas sem quase respaldo algum dentro do país – que se depositavam as esperanças da mídia e dos órgãos de governo dos EUA.
Nos anos 80, isso mudou. Percebeu-se que com essa gente pouco se poderia fazer para sabotar a URSS por dentro. Os chamados “dissidentes” eram uma quinta-coluna, mas de uma ineficiência tremenda, que fazia questão de colocar um rótulo na testa e estar longe de qualquer atividade pública real – ou seja, faziam questão de cortar suas ligações com o povo e com os órgãos que detinham o poder na URSS.
Assim, o foco mudou para dentro do próprio PCUS e do governo. De certa forma, era a volta da política seguida pelos alemães nos anos 30 do século XX. Naqueles anos, registraram pessoas insuspeitas, como Joseph Edward Davies, embaixador dos EUA em Moscou, e até o príncipe e lorde Mountbatten – que, além de primo do rei da Inglaterra, era sobrinho da última czarina –, os soviéticos haviam acabado com o espaço para a quinta-coluna dentro do Estado soviético e do PCUS.
Isso teve efeitos duradouros. O foco nos “dissidentes” não era apenas uma opção dos governos imperialistas. Era também porque não tinham outra opção. Esta somente surgiria nos anos 80, quando os 30 anos anteriores de progressivo culto ao mercado, defensiva ideológica e conciliação começaram a brotar em frutos amargos e, de resto, venenosos – finalmente havia, depois de três décadas de gestação dentro do PCUS e do Estado soviético, uma camada que poderia ser aproveitada com muito mais sucesso do que aqueles indigentes, quer dizer, “dissidentes”.
PRIVILÉGIO
Portanto, incensar Kasparov era plenamente coerente com essa nova política imperialista. Para muitos, era algo estranho, pois eles nunca agiram dessa forma quando o título mundial de xadrez era disputado por dois soviéticos. Mas, também, jamais houve antes um “soviético” da marca de Kasparov disputando o título.
Assim, quando Kasparov comparou a situação, depois do match anulado, com a situação após a morte de Alekhine, em 1948, as moscas, que já voejavam em torno dele há algum tempo, ficaram particularmente assanhadas. Evidentemente, havia uma diferença entre a situação de 1985 e a de 1948: Karpov estava vivo. Mas o problema era exatamente esse: Karpov era um representante do regime que queriam matar.
Logo, Kasparov se tornou, na propaganda, um perseguido pelos soviéticos, que estariam prejudicando sua preparação e, especialmente, negando a ele a ajuda de analistas do mesmo porte daqueles que estavam com Karpov. Hoje, ninguém sério repete mais essas coisas. Kasparov escolheu e demitiu quem ele quis da sua equipe – naturalmente, dentre aqueles que aceitaram fazer parte dela.
Porém, há outro aspecto: o GM Valery Salov demonstrou convincentemente que Kasparov foi privilegiado em relação a Karpov na assistência durante os matches. O que era perfeitamente coerente com a defensiva em relação à campanha deflagrada a partir do ocidente. Aliás, não era a primeira vez que acontecia algo semelhante.
(continua)