CARLOS LOPES
(HP 23/11/2007)
A avaliação de que o encerramento do primeiro match favoreceu a Kasparov não é somente nossa. Em artigo publicado pela revista espanhola “Jaque”, o enxadrista e historiador uruguaio Maiztegui Casas, depois de mencionar que foi o socorro de Botvinnik que salvou seu “aluno predileto” da derrota, refere-se à atitude do velho campeão diante da decisão da FIDE: “Sem dúvida, consciente de que o verdadeiro favorecido naquela decisão era seu aluno (fato que somente se pode negar por fanatismo ou estupidez), ele apoiou a decisão de Campomanes e levou Kasparov pela mão até o título mundial” (Lincoln R. Maiztegui Casas, “Mijaíl Botvínik o la muerte de un superviviente – Un régimen, una escola, un hombre”).
Devemos o conhecimento deste artigo a um amigo, Fabrício Teixeira, ex-campeão estadual master do Rio de Janeiro e ás do xadrez rápido – único grande jogador de partidas de 1 minuto que conheço. Fabrício, conhecido nas polêmicas da Internet pelo pseudônimo de Romário, é uma inestimável fonte de informações e documentos sobre a história do xadrez.
Mas, continua o professor Maiztegui Casas, sobre a relação entre Kasparov e o maior dos jogadores soviéticos:
“Kasparov lhe deu o agradecimento da vaca atolada no pântano [fábula sobre a ingratidão equivalente à nossa do escorpião]. Quando Botvinnik discordou de alguns aspectos da sua conduta desportiva, rompeu com ele e dedicou-se a criticá-lo, vilipendiá-lo e até ridicularizá-lo de maneira permanente.
“No entanto, ninguém foi capaz de adivinhar a que extremos ele podia chegar. Em uma atitude que constitui todo um monumento à mesquinhez e à ingratidão, Kasparov se opôs a que Botvinnik fosse convidado a assistir as Olimpíadas de 1994 em Moscou, pretendendo que, se ele queria ver as partidas, que pagasse o seu ingresso, como qualquer um”.
Por desnecessário, não faremos comentários. Apenas acrescentaremos a informação de que Kasparov foi o principal organizador dessa Olimpíada, por sinal, a mais caótica de todas elas. Daí seu poder de determinar ou de vetar quem seria ou não convidado, em um evento que, oficialmente, era promovido pela FIDE – precisamente, a entidade contra a qual Kasparov estava abertamente amotinado desde 1993.
Por último, Botvinnik não esteve lá. Nem Karpov.
MOSCOU
Em 1990, cheguei a Moscou no mesmo dia em que começava, em Nova Iorque, o quinto match entre Karpov e Kasparov pelo título mundial. Impressionou-me, imediatamente, como os jovens – quase todos enxadristas, mais ou menos como no Brasil quase todos os jovens batem uma bola – torciam por Kasparov. Eles repetiam histórias que já haviam saído cinco anos antes na imprensa ocidental como se fossem fatos e verdades – mesmo depois que, em nosso lado do mundo, a destrutiva e empulhadora autobiografia de Kasparov, “Filho da Mudança”, nas palavras do GM Jonathan Tisdall, “foi muito eficiente para causar uma lenta, mas crescente onda de popularidade em direção a Karpov, que continua até hoje” (cf., Seirawan e Tisdall, “Five Crowns”, I.C.E., 1991 – a edição brasileira, de 2004, é uma tradução bastante ruim).
Em Moscou, perguntei a Dimitri, um jovem bastante inteligente – com apenas 20 anos ele dominava bastante bem o português e tinha um conhecimento extenso, ainda que não muito profundo, da obra de Lenin e dos clássicos da literatura mundial – por que ele dizia que Karpov era um protegido da burocracia. Não soube explicar. Karpov era um protegido porque era óbvio que ele era um protegido.
Que Deus nos livre das coisas “óbvias”! Em resumo, interpretei depois, aquilo era o que a imprensa dizia e, portanto, para Dimitri isso era o equivalente da verdade. Aliás, era a própria verdade.
Não era mais apenas a imprensa estrangeira que elevava Kasparov a um pedestal mais alto que Capablanca – e, principalmente, apresentava Karpov como um privilegiado por Brezhnev e outros dirigentes. A imprensa soviética – que, de facto, já havia deixado de ser soviética -, também. A rigor, ela repetia o que a outra publicara e continuava publicando. O que, em uma, era tentativa de usar um renegado em prol de seus interesses, na outra era repulsiva bajulação por parte daqueles que, no socialismo, achavam que o ideal maior de suas vidas era ser capitalistas. A isso, sob Gorbachev, se denominava “glasnost”. Kasparov, naturalmente, era o ídolo dessa gente.
Cinco anos antes, em 1985, a situação não era exatamente essa – mas já era indisfarçável o favorecimento a Kasparov também na imprensa soviética, o que não era um problema fácil para Karpov. Até mesmo Botvinnik, quando enfrentou Tahl, arfara sob o peso do apoio da imprensa a um oponente. Petrosian, falecido no ano anterior, ressentira-se disso durante, praticamente, toda a sua carreira no xadrez. E Karpov, do ponto de vista tanto ideológico quanto psicológico, não era um Botvinnik. Nem mesmo era um Petrosian.
No entanto, sua reação, durante o match, surpreendeu.
Na primeira partida, estava claramente inseguro. Demorou demais logo no quarto lance, claudicando na abertura – e, no entanto, estava jogando a Defesa Nimzoíndia, que alguns (por exemplo, Ludek Pachman, que já foi o autor mais lido entre os enxadristas) consideram, com alguma razão, a base do xadrez moderno. Na 20ª jogada, não reconheceu um erro de Kasparov – respondeu a esse erro com outro erro. Logo em seguida, perdeu um peão – e, com esse peão, a partida.
Na segunda, Karpov conseguiu evitar a derrota – ou, talvez, o mais correto seja dizer que, devido a seus erros, Kasparov desperdiçou a vitória, e não passou de um empate. Logo em seguida, Karpov pediu adiamento da próxima partida, um adiamento muito precoce, antes que um décimo do match fosse disputado.
A terceira foi um empate em 20 jogadas – por proposta de Kasparov, e aceito pelo campeão.
Mas, quando as previsões em relação a Karpov já eram as mais pessimistas, na quarta partida ele partiu para o ataque. Depois de 63 movimentos, com um adiamento pelo meio, ganhou a partida. O match estava empatado. Na seguinte, conseguiu rechaçar o ataque de Kasparov e venceu outra vez. Karpov estava, agora, à frente no score. Depois da quinta partida, derrotado seguidamente duas vezes, foi Kasparov quem pediu adiamento do próximo jogo.
Seguiram-se 5 empates, mas Karpov parecia ter-se recomposto.
Porém, na 11ª partida, quando o jogo estava equilibrado, Karpov cometeu um erro incrível para um Grande Mestre, no 22º lance. Os nervos pareciam falhar no momento decisivo. O match estava, outra vez, empatado.
Depois de quatro empates, Kasparov realmente fez um jogo excepcional na 16ª partida, e venceu, depois de 40 movimentos, passando à frente no score. Mas, na 19ª, quando venceu outra vez, nitidamente foi Karpov que causou sua própria derrota, com mais um erro muito pouco característico dele.
Foi nesta partida que Kasparov, ao adiar a continuação, encontrou uma forma de demonstrar seu desrespeito ao oponente: jogou no tabuleiro o lance que selava no envelope, isto é, o lance que deveria ser secreto. Não houve medida por parte da arbitragem – do ponto de vista formal, revelar o próprio lance secreto não era proibido. Mas era evidente a intenção: passar desdém pela capacidade de análise do outro jogador, e de sua equipe. Portanto, um atitude anti-esportiva. Não foi por acaso que ele havia feito uma campanha tão escandalosa para afastar Gligoric da arbitragem.
Kasparov fez a mesma coisa no jogo seguinte, também sem protestos (nem isso) do árbitro. Nesta partida, Karpov tinha uma ligeira vantagem quando foi adiada a continuação, e, quando retomada, tentou a vitória até o 83º movimento, quando o empate foi inevitável.
No entanto, na partida que veio a seguir, foi Kasparov quem fracassou e jogou a vitória pela janela, devido a um erro no 40º movimento. Outro empate, e ele ainda estava à frente no score.
Mas a 22ª partida foi, finalmente, uma vitória típica de Karpov, isto é, uma vitória estratégica. Assim, ele diminuiu a distância e, com o empate na 23ª partida, a decisão foi para o último jogo do match. Para manter o título, Karpov precisava ganhar. Para conquistá-lo, bastava a Kasparov empatar.
A ESCOLHA
Essa última partida condensa os problemas de Karpov nessa época. A começar pela escolha da abertura. Certamente, a ideia de abrir com o peão do rei era partir para o ataque desde o início. Mas, numa partida decisiva, em que se precisa ganhar, isso é uma temeridade contra um forte jogador tático, como era o caso de Kasparov.
Além disso, é evidente que esta não é a única forma de atacar – sobretudo quando a força de Karpov sempre foi alicerçada na estratégia e a debilidade de Kasparov não está na tática. A abertura que Karpov escolheu facilitava os recursos táticos e, sobretudo, as ameaças táticas, em que seu oponente era muito forte. Ou seja, Karpov escolheu o terreno do adversário para travar a luta, não o seu terreno.
É possível que essa escolha tenha sido determinada por considerações psicológicas – Bronstein, em 1951, surpreendeu Botvinnik ao escolher as linhas favoritas do oponente. Se foi essa a razão, a avaliação sobre Kasparov estava inteiramente errada e pior ainda estava a avaliação sobre a situação em que se travava a partida. Daremos um exemplo clássico, para que o leitor não aficionado em xadrez tenha ideia da questão a que estamos nos referindo.
Existe uma famosa partida decisiva de Lasker, travada contra ninguém menos do que Capablanca, em que a complexidade desses problemas de avaliação psicológica são particularmente nítidos.
No torneio de St. Petersburg de 1914, em que participaram todos os grandes jogadores da época – dando origem ao título de Grande Mestre, como foi mencionado na primeira parte deste artigo – Capablanca estava à frente de todos, quando, na 18ª rodada, enfrentou Lasker, então campeão mundial.
Com apenas dois jogos para completar a tabela (enquanto Capablanca tinha ainda mais três – contra Tarrasch, Marshall e Alekhine – que, posteriormente, venceu), a única chance aritmética de Lasker ser o vencedor do torneio era bater Capablanca nessa partida. Já para o grande jogador cubano, bastava um empate com Lasker para conquistar o primeiro lugar.
Como Karpov na 24ª partida do segundo match com Kasparov, Lasker jogava com as brancas, ou seja, iniciava o jogo. Precisando vencer, e com a vantagem de começar a partida, esperava-se que ele fosse logo para o ataque. Surpreendentemente, Lasker escolheu uma linha, a chamada “variante das trocas” da Abertura Ruy López (ou Abertura Espanhola), conhecida por ser pouco agressiva – a rigor, notória como uma boa escolha quando o jogador com as brancas queria apenas empatar. No entanto, ele precisava da vitória – e contra Capablanca!
Demolindo os prognósticos dos que assistiam ao torneio, Lasker ganhou o jogo – e o primeiro lugar no torneio, deixando Capablanca em segundo.
Em seu livro “Os Grandes Mestres do Tabuleiro” (1930), Ricardo Reti, o mestre tcheco que, 10 anos depois de St. Petersburgo, pôs fim a oito anos de invencibilidade do cubano (ver a segunda parte deste artigo), analisa a partida de Lasker em 1914 e faz a seguinte observação:
“Não é admissível que Lasker considere essa variante como forte (….). Portanto, é preciso supor que novamente são motivos psicológicos que o induzem a empregar essa variante em momentos transcendentais. Examinando-se as circunstâncias em que se encontrava Lasker, conclui-se que ele escolheu essa variante sempre que pôde supor em seu oponente a intenção de limitar-se a conseguir um empate. Se jogamos uma partida com a firme intenção de não empreender um ataque e de não arriscar-se, de só simplificar [ou seja, trocar peças, eliminando-as do tabuleiro]; se já tomamos de antemão essa determinação, tendo chegado a um estado de ânimo pacífico; então é muito difícil mudar de intenção durante a partida e jogar repentinamente com base num acirrado ataque. Porém, é inerente à ‘variante das trocas’ que as negras devem jogar no ataque e pela vitória, não pelo empate, pois, se decidimos pela simplificação, esta conduzirá para onde as brancas querem: a um final perdido para as negras. Este é o motivo psicológico pelo qual Lasker adota a ‘variante das trocas’ em partidas decisivas, quando acredita que desde o início seu oponente joga com a intenção de empatar”.
Ou seja, se Capablanca queria, ao menos, empatar, deveria, diante da linha escolhida por Lasker, ter jogado pela vitória. Ele não o fez – e perdeu a liderança do torneio, que mantinha desde seu início, no último momento.
Avaliações psicológicas desse tipo não são fáceis. Trata-se de escolher o terreno psicológico mais favorável para si e menos favorável para o oponente. Por isso, determinadas linhas que teoricamente (ou seja, lógica e matematicamente) são pouco sólidas, continuam sendo praticadas com sucesso – pois a escolha da linha tem de levar em consideração não apenas o elemento puramente teórico, ou seja, abstrato, mas a figura concreta do oponente, seu estilo, conhecimento, preferências, e, sobretudo, as condições reais em que se trava a partida.
Não parece ter sido por motivos desse tipo que Karpov, na última partida do segundo match, escolheu abrir com o peão do rei. Ou, mais exatamente, não parece ter sido em função de uma avaliação psicológica precisa de Kasparov que a linha de Karpov foi escolhida. Pelo contrário, a motivação psicológica parece ter sido a oposta – tentar vencer o oponente em seu campo de batalha favorito, talvez exorcizasse as ofensas e infâmias que ele, Karpov, vinha sofrendo, diariamente, já havia mais de um ano.
Infelizmente, esse é um mau motivo, determinado por uma auto-estima em estado de conservação algo precário. Kasparov sacrificou dois peões para criar uma posição dificílima, e Karpov errou, perdendo uma peça, a partida e o título de campeão mundial de xadrez.
SEVILHA
Não tomaremos o tempo do leitor com a descrição em minúcias dos cinco matches entre Karpov e Kasparov. Nem com as mesquinharias, que não foram em número modesto.
Diremos apenas que o match-revanche, no ano seguinte, seguiu mais ou menos o padrão deste, e que, na disputa seguinte, Karpov foi outra vez o oponente de Kasparov, que não conseguiu vencê-lo.
Mas Karpov também não conseguiu vencer – o match em Sevilha terminou empatado, devido a seus erros. Na 11ª partida, quando em nenhum momento anterior Kasparov conseguiu estar à frente do score, houve o que Tisdall, com razão, chamou de “erro gritante” por parte de Karpov.
Entretanto, na 16ª partida, Karpov igualou, vencendo de forma brilhante. A partir daí, Kasparov tentou empatar – se o score se mantivesse igualado até o fim das 24 partidas, ele manteria o título. Karpov aumentou a pressão, pois precisava de mais uma vitória e um empate para reconquistar o título. E, realmente, na penúltima partida, depois de uma jogada brilhante de Karpov, Kasparov ficou em desvantagem e acabou por cometer um erro crasso. Em situações de pressão, ele reagia pior do que Karpov. O problema é que, nos cinco matches, foi este que teve de agüentar a pressão.
Bastava a Karpov, agora, empatar na partida final. Foi um jogo em que ambos os jogadores tiveram a vitória e a desperdiçaram. Mas o último erro foi de Karpov, perdendo a partida e a oportunidade de reconquistar o título.
A partir desse momento – embora já tenha começado antes – Kasparov voltou-se abertamente contra o que restava da estrutura do xadrez mundial, construída após a II Guerra. De certa forma – aliás, de todas as formas – aquela também era uma criação soviética, com seus freios ao comercialismo, seus limites ao vale-tudo e seus ideais de uma comunidade mundial.
Sobretudo, a atividade de Kasparov iria voltar-se contra a escola soviética de xadrez, que não era um mero estilo de jogar, mas toda uma visão de mundo aplicada ao xadrez, que tinha por consequência uma determinada forma de jogar. Talvez por isso tenha se tornado tão raivoso em relação ao homem a quem devia a sua formação enxadrística, Mikhail Botvinnik. Aliás, devia a ele o título de campeão mundial. Talvez fosse exatamente isso o que ele não podia suportar em Botvinnik: dever algo a alguém – e, pior ainda, todos saberem o quanto ele devia. E Botvinnik era, precisamente, o fundador da escola soviética em xadrez.
Não se tratava apenas de uma tendência sociopática de querer submeter a tudo e a todos – havia interesses bem concretos a açulá-lo e condições políticas novas, nas quais seriam muito úteis as suas tendências anti-sociais. Reagan – ou, melhor, os que usavam esse decrépito canastrão – já estava em campo. Na URSS, Kasparov foi um dos dois heróis que eles conseguiram arrumar. O outro era Bóris Yeltsin. Uma dupla interessante: um sociopata e um alcoólatra.
(continua)