CARLOS LOPES
(HP 10/10/2007)
Algum sujeito de espírito, parece que Miguel de Unamuno, disse que “o xadrez é um excelente exercício para melhorar a capacidade de jogar xadrez”. Nada pode ser acrescentado a esse raciocínio, exceto que também é válido para o salto com vara ou para a porrinha. A diferença é, apenas, a de que ninguém jamais pretendeu que as pessoas ficassem – ou fossem – mais inteligentes por saltar com vara ou apostar uns cobres nos palitinhos. Já o xadrez…
As pessoas que jogam xadrez não o fazem porque são mais inteligentes ou para ficar mais inteligentes. Jogam porque gostam de jogar xadrez. Como consequência, é possível ser um ás do xadrez, e, ao mesmo tempo, ser um cretino em outros campos da vida. Muito antes de Kasparov, Alexander Alekhine foi a primeira demonstração dessa estranha convivência – estranha apenas em função das fantasias que cercam o jogo.
Nascido numa família muito rica, filho de um latifundiário czarista e da herdeira de um império industrial, Alekhine saiu da Rússia em 1921. Já era, então, famoso como jogador. Apesar de um incidente na Ucrânia, em que foi preso como espião contrarrevolucionário (era a época da guerra civil), as autoridades soviéticas o liberaram para disputar o campeonato de Moscou (janeiro de 1920) e a Olimpíada de Xadrez de Todas as Rússias (outubro do mesmo ano) – que seria considerada como o I Campeonato da URSS, quando esta foi organizada, em 1922. Ele venceu os dois torneios. Porém, mais do que a oportunidade de jogar xadrez, os soviéticos ofereceram-lhe emprego como tradutor na Internacional Comunista e o nomearam secretário do Departamento de Educação Comunista.
No entanto, logo em seguida, ele preferiu juntar-se àquela malta de foragidos russos que se reunia em Paris. Naturalizou-se francês e até frequentou a Sorbonne, supostamente para formar-se em Direito com uma tese sobre o sistema penitenciário chinês – as atuais instâncias de pós-graduação ainda não existiam, mas a embromação acadêmica já tinha, há muito, feito a sua estreia. A tese não foi aprovada, até porque ele jamais chegou a elaborá-la – o que não o impediu de intitular-se “Dr. Alekhine” para o resto da vida.
Mas, foi antes de sair da Rússia que ele começou a série de casamentos com senhoras algo alucinadas, em geral tão decrépitas quanto endinheiradas, a que se refere Hans Kmoch em “Grandes Mestres Que Eu Conheci”.
Amigo de Alekhine por longos anos, seu “segundo” (analista para partidas adiadas) durante o match de 1934 pelo campeonato mundial, e árbitro do match seguinte, Kmoch rompeu com o então campeão mundial durante a II Guerra, quando vivia com a esposa na Holanda invadida pelos nazistas. Foi então que um jornal alemão, editado no país ocupado, publicou um artigo de Alekhine intitulado “Xadrez ariano e xadrez judaico”. Referindo-se à sua derrota no match de 1935, dizia: “O árbitro Kmoch é casado com uma judia, logo qualquer um pode imaginar como ele era objetivo”.
Com efeito, a esposa de Kmoch, Trudy, era judia – e não é preciso dizer muito mais: “Sob o olho vigilante da Gestapo, tais declarações podiam significar a morte (….). Minha mulher e eu já estávamos em constante medo de que ela pudesse ser deportada. A acusação de Alekhine foi aterrorizante”, escreveu, depois, Kmoch. Acrescente-se que este último, austríaco, era “cidadão do Reich”, ou seja, após a anexação da Áustria, estava sujeito às leis raciais da Alemanha, em que o casamento com uma judia era crime punível, inclusive, com a morte.
A necessidade de relembrar o rol de canalhices perpetradas por Alekhine durante a guerra – em que também ele era oficialmente cidadão de um país ocupado, a França – reside em que hoje apareceram vários apologistas a relevar essa conduta indecente. A última versão é a de que “não foi provado” que Alekhine escreveu os artigos que apareceram com a sua assinatura nos jornais nazistas. Isso é exatamente o que não precisa de prova. Se ele apenas os assinou, pior. E, se esses artigos não existissem, sobrariam os seus alegres retratos em torneios nazistas, no momento em que uma série de grandes jogadores recusavam-se a participar dessas promoções nos países ocupados – e, sobretudo, sua longa estadia como hóspede do “governador-geral” da Polônia, SS-Obergruppenführer (general das SS) Hans Frank, executado em Nuremberg por crimes contra a Humanidade.
Porém, sobre os apologistas de Alekhine, bastam alguns trechos do relato de Kmoch – escrito pouco antes de sua morte, em 1973 – que reproduzimos aqui porque “Grandes Mestres Que Eu Conheci” não foi publicado em livro (há uma tradução em inglês, “Grandmasters I Have Known”, nos arquivos da revista eletrônica “ChessCafe.com”):
“Algum tempo atrás, escrevi um artigo sobre Alekhine. Já que ele era um contemporâneo meu que eu havia conhecido bem por muitos anos, senti que poderia evitar a costumeira apresentação dele como um grande gênio do xadrez e modelo de virtude. Ao invés disso, escrevi sobre sua personalidade e sobre minhas próprias experiências com ele, o que significava mostrá-lo, entre outras coisas, como um alcoólatra, um oportunista político e um anti-semita no estilo nazista.
“Quando meu artigo apareceu na Deutsche Schachzeitung, uma revista sobre xadrez de Berlim, enfrentei considerável menosprezo por parte de alguns ardorosos arianos. Um professor alemão insistiu que nunca tinha visto Alekhine bêbado e que, portanto, Alekhine não podia ter sido um alcoólatra. Outro professor alemão explicou tudo apontando a minha própria inferioridade. Um homem que em Viena costumava pertencer somente a clubes arianos de xadrez, condenou meu artigo como irreconciliável com o fato de que eu uma vez fora segundo de Alekhine.
“Muito mais tarde, alguns nobres especialistas em cobrir de cal a realidade, gente da mesma categoria dos professores alemães acima mencionados, explicaram que Alekhine foi forçado a escrever aqueles infames artigos. Mas isso é simplesmente uma variante da história do bêbado que borrou as calças e depois queria saber quem era o culpado”.
Porém, em 1927, quando Alekhine se tornou campeão, a consciência geral ainda era a de que os nazistas não passavam de alguns palhaços. Somente quando lhe pareceu que os nazistas iriam ganhar a guerra, é que Alekhine começou publicamente a bajulá-los. Antes, tomou bastante cuidado, inclusive para que os soviéticos não o vissem como um inimigo, apesar de sua condição de emigrado da Rússia.
A explicação é que nenhum outro país contava com tanta simpatia nos meios enxadrísticos quanto a URSS. Esta, aliás, havia sido governada por um enxadrista, Lenin, e era agora dirigida por outro, Stalin, ambos conhecidos como fortes jogadores. Quando o grande Lasker foi obrigado, após a tomada do poder por Hitler, a sair da Alemanha, preferiu Moscou como local de moradia, em vez de Londres, onde havia, a princípio, se asilado. Posteriormente, foi encontrar-se com seu amigo Albert Einstein, nos EUA.
A FUGA
O primeiro problema de Alekhine, depois de ganhar o título mundial, foi o mesmo de antes: José Raul Capablanca. Por acordo mútuo, havia sido acertado que haveria um match-revanche. Alekhine rompeu o compromisso – e é impressionante a energia que investiu para fugir a um novo confronto.
Não era uma fuga apenas do match-revanche. Alekhine fugiu de qualquer enfrentamento, mesmo em torneios, com Capablanca. Numa atitude que só seria vista muitas décadas depois, exigiu, em certas ocasiões, que a inscrição de Capablanca não fosse aceita, como condição para sua participação em torneios – tal como Kasparov faria com o Grande Mestre Valery Salov, é verdade que, nesse último caso, por razões políticas, e de forma mais covarde que Alekhine, pois Salov não era Capablanca, e, em meio à queda da URSS, tinha a mídia contra ele.
O outro método de Alekhine, ao saber que Capablanca seria um dos participantes de um torneio em que já estava inscrito, era, na última hora, fazer exigências financeiras extorsivas, a serem cumpridas em prazo exíguo (v. p. ex., sua carta de 19/05/1932 a um dos organizadores do Torneio de Pasadena, Califórnia).
Quando do falecimento de Capablanca, em 1942, Alekhine diria que “morreu o maior jogador de todos os tempos, um gênio como nunca se verá novamente”. Próximo da própria morte solitária em Portugal, deixou escapar: “Não entendo, nem agora depois de tantos anos, como consegui ganhar de Capablanca no match de 1927”.
Em suma, Alekhine queria manter o título contra alguém que tinha certeza de que era melhor do que ele. Há quem não concorde com esta avaliação sobre Capablanca. Mas esta era a avaliação de Alekhine. Conta Reuben Fine que, no início dos anos 30, Capablanca mostrou a ele a montanha de correspondência mantida com Alekhine e/ou seus representantes, com o objetivo de realizar um novo match. Tudo perfeitamente inútil. Alekhine estava fugindo de jogar uma simples partida, quanto mais um match.
No entanto, em 1936, Alekhine não conseguiu evitar o confronto com Capablanca. Era um dos torneios mais importantes do mundo, o de Nottingham, Inglaterra, e Alekhine estava com o prestígio abalado, por sua derrota contra Euwe no ano anterior – somente no ano seguinte ele recuperaria o título mundial, precisamente, num match-revanche. Assim, aceitou participar de Nottingham, mesmo sabendo que Capablanca estaria lá.
A partida foi especialmente tensa. Os jogadores evitaram sentar-se um em frente ao outro – faziam sua jogada e depois iam andar pelo salão, esperando a resposta do oponente. Alekhine ficou em posição superior. E foi então que o talento estratégico de Capablanca se impôs sobre o jogo eminentemente tático de Alekhine. Entre os que analisaram a partida, somente o velho Lasker – aos 68 anos – percebeu a sutileza. Eis o relato de Capablanca:
“Durante o transcurso da partida, meu contrário adquiriu uma magnífica posição, e, em um determinado momento, viu que mediante uma pequena manobra podia ganhar a qualidade [“ganhar a qualidade”=trocar um bispo ou cavalo, peças menores, por uma torre, peça maior]. Atirou-se e ganhou a qualidade, mas depois perdeu a partida. Muitos dos mestres mais fortes ali presentes puseram-se a estudá-la. Todos partiam do momento em que começava a manobra para ganhar a qualidade. Todos afirmavam que a manobra era correta, e buscavam o erro em algo posterior. Assim estiveram por muito tempo, e nisso chegou Lasker. Colocaram-no a par do resultado e lhe mostraram a posição; mas logo que começaram a demonstrar-lhe a manobra para ganhar a qualidade, ele interrompeu e disse: ‘Não, isso nunca’. O velho mestre havia percebido o que os outros não haviam visto: que ganhar a qualidade era um erro, e que meu contrário não somente perdia a vantagem que lhe dava sua magnífica posição, mas que, com qualidade e tudo, tinha uma posição perdida. Havia percebido que a combinação não havia sido feita pelo meu contrário, mas por mim, ao permitir-lhe ganhar a qualidade. Assim, disse: ‘Você, sem dúvida, respirou aliviado quando viu que seu adversário mordeu o anzol’. (….) A verdade é que Lasker foi o único alí presente que se deu conta do verdadeiro valor daquela posição, assim como das possibilidades que ela continha” (transcrito de “Ultimas Lecciones”, pela revista Ajedrez en Cuba, Vol. II-16, nº 26, set./1998).
Há algo inteiramente fora do comum neste texto: Capablanca, que sempre se mostrou amistoso com os oponentes, inclusive nas análises dos jogos que ganhou deles, nesse caso não cita o seu nome. Nem mesmo o chama de “oponente”, em geral o termo que os enxadristas preferem para designar seus adversários. Até mesmo esta última palavra é usada, no texto, somente por Lasker. Capablanca prefere chamá-lo de “meu contrário”. O que Alekhine, sob vários aspectos, e essencialmente, era.
A.V.R.O.
Assim, Alekhine preferiu indicar como seus desafiantes jogadores mais fáceis de bater do que Capablanca. O seu favorito foi Bogolyubov, também um “russo branco”, que ele dominava sem dificuldades.
Alekhine bateu Bogolyubov em 1929 e 1934. Depois disso, os litros de álcool começaram a deixar suas sequelas. Em 1935, Capablanca, que interrompera brevemente sua trajetória no xadrez entre 1931 e 1934, voltara a ser o principal jogador do mundo. Mas Alekhine continuava a sua fuga. Escolheu como desafiante o matemático holandês Max Euwe, um excelente teórico, depois presidente da FIDE.
Encharcado em bebida, apesar de ter escolhido o desafiante – não resistira à atrativa bolsa oferecida – Alekhine perdeu o título mundial. Euwe venceu, com 9 partidas ganhas, 8 perdidas e 13 empates. Porém, o novo campeão – um homem de caráter, que se recusaria, durante a ocupação nazista da Holanda, a participar dos torneios organizados pelos invasores – manteve sua palavra em relação ao match-revanche, acordado antes. Assim, Alekhine recuperou o título em 1937, depois do supremo sacrifício de deixar, por algum tempo, as bebidas alcoólicas – para ele, o xadrez era um vício mais importante.
Mas havia se chegado a um limite. O sistema pelo qual o campeão escolhia seu próprio desafiante entrara em falência. A rigor, apodrecera em público, depois da escandalosa conduta de Alekhine. Era impossível continuar daquele jeito, com um campeão à caminho da demência, mantendo o título devido, exclusivamente, a uma regra injusta. Em 1937, a entidade mundial, a FIDE, tentou apontar como desafiante a Salo Flohr, jogador tcheco-eslovaco (após a invasão de Hitler ao seu país natal, naturalizado soviético) que fizera sensação nos anos precedentes. Alekhine, simplesmente, ignorou a indicação. Veremos como, 60 anos depois, Kasparov imitaria Alekhine.
Foi esse estado geral de incômodo, colocando em questão a legitimidade do título mundial, que fez com que Alekhine aceitasse a realização de um torneio para apontar o desafiante – além, evidentemente, do estipêndio que lhe ofereceram os patrocinadores do torneio, a cadeia radiofônica holandesa A.V.R.O. (Algemene Vereniging Radio Omroep). Ainda que, exceto o escândalo que poderia advir de sua recusa, nada havia que obrigasse Alekhine a respeitar o resultado do torneio.
O Torneio A.V.R.O. reuniu, em novembro de 1938, os oito maiores jogadores do mundo: Capablanca, Alekhine, Max Euwe, o campeão soviético Mikhail Botvinnik, Salo Flohr, o estoniano Paul Keres (a Estônia ainda não fazia parte da URSS), o norte-americano Reuben Fine e o polaco-americano Samuel Reshevsky.
Em meio ao torneio, Capablanca sofreu um acidente vascular cerebral. Mesmo assim, quis cumprir a tabela até o final. Empatou uma das partidas com Alekhine e perdeu a outra. Chegou em sétimo, à frente de Salo Flohr, que fora afetado pelos acontecimentos em seu país – desde 29 de setembro, após o Pacto de Munique, a invasão nazista da Tchecoslováquia era uma questão de (muito pouco) tempo.
Alekhine conseguiu apenas o sexto lugar, um ponto acima de Capablanca – 7 em 14 possíveis.
O A.V.R.O. foi vencido pelo norte-americano Reuben Fine e pelo estoniano Paul Keres, ambos com 8,5 pontos, logo acima do maior jogador soviético, Mikhail Botvinnik. Mas, antes que os vencedores acertassem regras para o desempate e a disputa do título com Alekhine, começou a II Guerra Mundial. Depois dela, o xadrez soviético emergiria como hegemônico pelo próximo quarto de século.
(continua)