CARLOS LOPES
(HP 12/10/2007)
Depois da II Guerra, nenhum outro esporte – admitindo seja um esporte – se tornou um palco tão acirrado da luta político-ideológica quanto o xadrez. O que, sem dúvida, tem relação com o imaginário que o cerca, a que já nos referimos.
Voltemos a 1946, quando, num quarto de hotel no Estoril, Alekhine morria sem amigos, sem admiradores e sem mulheres, banido dos torneios e competições – depois de vencido o nazismo, todos preferiam ver a lepra em pessoa no salão de jogos do que ver Alexander Alekhine circulando por lá.
Muita coisa mudara desde o torneio A.V.R.O, de 1938. A começar pelos dois desafiantes do campeão apontados por esse torneio. O americano Reuben Fine não tinha mais o xadrez como interesse principal: era agora um psicanalista, e não queria mais disputar o título.
Como demonstrou Edward Winter, somente 27 anos depois Reuben Fine, em seu livro sobre a vitória de Fischer, iria aparecer com a história de que havia declinado da disputa porque pressentira uma conspiração soviética para empalmar o título (cf. Reuben Fine, “Bobby Fischer’s Conquest of the World’s Chess Championship”, NY, 1973, págs. 4/5).
Em 1989, numa carta para “Chess Life”, Fine, aliás, forneceria uma nova versão dessa conspiração.
No entanto, em fevereiro de 1948, num telegrama à redação da “Chess Review”, Fine disse outra coisa: que suas “obrigações profissionais” (“professional duties”) o impediram de disputar o título. Em novembro do mesmo ano, na mesma revista, ele próprio escreveu que “eu estava trabalhando na minha dissertação de doutorado. Retirei-me [da disputa] porque não me preocupei em interromper minha pesquisa”. E, 10 anos depois, em 1958, ele reafirmaria, em seu livro “Lessons from My Games”: “Na época, eu havia iniciado minha nova profissão como psicanalista e estava impossibilitado de jogar” (págs. 151/152, cit. por Winter, “Unsolved Chess Mysteries – 9”).
As explicações bamboleantes de Fine não são apenas uma exibição de suas debilidades de caráter. São, também, a mostra de como a mal chamada “guerra fria” interferiu no xadrez. Somente quando Nixon e Kissinger – veremos depois a importância do último para a questão – chegaram à Casa Branca, é que Fine inovou os seus motivos para não disputar o campeonato mundial no imediato pós-guerra, isto é, 27 anos antes.
O outro desafiante apontado pelo A.V.R.O. era o extraordinário jogador estoniano Paul Keres. Mas agora a Estônia era uma das nações da URSS. Keres se tornara, portanto, cidadão soviético. E recém escapara de um julgamento, por ter participado de torneios organizados pelos nazistas durante a ocupação. Ao contrário do que uma vasta propaganda afirma, Keres jamais esteve preso, nem nessa época nem depois (v. o artigo do historiador estoniano – e pouco disposto em relação aos russos – Valter Heuer, “The Troubled Years of Paul Keres, the Great Silent One”, publicado em “New In Chess” nº 4, 1995).
Mas é evidente que ele esteve sob investigação após a guerra.
A argumentação de Keres – que enviou uma carta a Molotov, ministro das Relações Exteriores – era a de que, estritamente, havia participado dos torneios promovidos pelos nazistas como jogador, sustentando-se durante a guerra com essa atividade. Jamais havia, ao contrário de Alekhine, passado desse limite. Não é inteiramente verdade, pois havia algumas declarações anti-soviéticas de Keres que foram publicadas pelos nazistas – mas, em geral, a tônica delas estava mais na independência da Estônia do que em ser contra a URSS. A questão política é que a Estônia estava ocupada pelos nazistas e não pelos soviéticos.
Também não é verdade, tal como alguns até hoje afirmam, que Paul Keres só tenha participado, durante a II Guerra, de torneios realizados em seu país. Cidades como Munique, Salzburg e Praga não ficam na Estônia. É verdade que Keres legitimou a vitória de Alekhine nos torneios que os nazistas organizaram nessas cidades, uma vez que era o único outro grande jogador a participar dessas promoções. Os outros eram mediocridades hoje esquecidas, exceto Bogolyubov – que, na época, descia aceleradamente o plano inclinado da decadência. Mas é necessário ressaltar, a seu favor, que Keres recusou-se a disputar um match pelo campeonato mundial com Alekhine durante a guerra, um match que somente serviria para a propaganda nazista.
Posteriormente, o maior jogador soviético, Mikhail Botvinnik, faria uma defesa de Keres. Até por essa razão – embora não somente por ela – é impressionante que haja grassado a propaganda de que Keres foi impedido por Stalin de enfrentar Alekhine, e, no torneio que decidiu, em 1948, o novo campeão mundial, foi obrigado a perder para Botvinnik.
O conteúdo dessa propaganda é claro: Botvinnik não teria adquirido sua predominância sobre os demais por suas qualidades como jogador, mas porque era um privilegiado de Stalin, que até mesmo mandara a KGB (esta não existia ainda, mas o rigor histórico não é uma característica da propaganda anticomunista) obrigar Keres – “com uma arma apontada para a cabeça”, diz um dos adeptos da tese – a perder para o oponente (Taylor Kingston, em “The Keres-Botvinnik Case: A Survey of the Evidence”, 1998, faz uma ampla revisão do que foi escrito sobre o assunto. O autor, um anticomunista, mas não um estúpido, depois de observar que não há prova, nem base nos resultados e no transcorrer das partidas, que sustente essa versão – e que tanto a viúva de Keres, Maria, quanto as pesquisas do estoniano Heuer, desmentem-na – conclui: “Francamente, poucas coisas me dariam mais prazer do que dizer que Keres, sob todos os aspectos um dos mais gentis cavalheiros que já avançaram um peão, foi trapaceado pelo mal-humorado stalinista Botvinnik. Poderia se chegar a isso, mas ainda não foi possível chegar a tanto [It may yet come to that, but has not quite yet]”. Nos 9 anos que decorreram desde que o artigo de Kingston foi publicado, todos os arquivos da URSS foram abertos – e nada foi descoberto que corroborasse a propaganda anticomunista).
Esse tipo de coisa, evidentemente, não depende da realidade. Depende da estupidez e da dominação ideológica que faz com que alguns aceitem a mais absurda propaganda, mesmo a mais idiota, como se realidade fosse.
1948
A partir de 1941, Botvinnik havia surgido como o maior jogador do mundo. De certa forma, os soviéticos haviam mudado a forma de se jogar xadrez. Como observou Andrew Soltis em seu livro sobre Fischer (“Bobby Fischer Rediscovered”, 2003), os soviéticos desenvolveram a estratégia no sentido de superar as concepções vigentes na primeira metade do século XX, que tiveram seu principal expoente em Capablanca – o cuidado em conservar o material (ou seja, evitando a desvantagem quanto ao número de peças e peões), a abertura tranquila, da qual os oponentes saíam iguais ou quase iguais e, em seguida, o meio-jogo dirigido para obter um final superior.
Em vez disso, os soviéticos começavam a luta mais intensa logo na abertura da partida, mesmo que fosse necessário temporariamente (ou não) perder algum material e criar algumas debilidades.
Porém, apesar de banido das competições, a FIDE não destituiu Alekhine do título, nem mudou a regra pela qual ele, e somente ele, poderia apontar o seu desafiante. Assim, quando Alekhine morreu, em março de 1946, o título estava vago. Chegou-se, então, a um acordo para a realização de um torneio que apontasse o novo campeão. O torneio foi jogado em Haia e Moscou entre os seis principais jogadores do mundo, que se enfrentaram cinco vezes entre si: o ex-campeão Max Euwe, os soviéticos Mikhail Botvinnik, Paul Keres e Vassily Smyslov, o polaco-americano Samuel Reshevsky e o polaco-argentino Miguel Najdorf – os dois últimos, considerados os melhores do continente americano, após a retirada de Fine.
Botvinnik venceu amplamente: conquistou 14 pontos em 20 possíveis, três pontos acima de Smyslov, segundo colocado.
Começara um novo período para o xadrez. Em seguida, foram criadas regras para a disputa do título de campeão. Haveria torneios zonais, reunindo os países do mundo que eram membros da FIDE. Os vencedores desses torneios seriam classificados para o Torneio Interzonal, que apontaria os qualificados para o Torneio de Candidatos. O vencedor deste enfrentaria o campeão num match pelo título. O campeão manteria o título em caso de empate neste match, e, em caso de derrota, teria direito a um match-revanche.
Essas novas regras mantiveram-se inalteradas até 1963, quando os kruschevistas permitiram o primeiro atropelo na disputa. Na época, não acharam ruim a consequência desse atropelo: livraram-se de Botvinnik, para eles um “símbolo do stalinismo”. Mas estavam abrindo a porta do inferno, como se veria nos anos seguintes.
BOTVINNIK
O novo campeão foi, provavelmente, o mais difamado homem da história do xadrez. Vimos acima como um autor ocidental, apesar de contestar as acusações a ele, o descreve como um “mal humorado stalinista”. Por que “mal humorado”? Somente porque este é o estereótipo que está na cabeça de quem escreve essas coisas. Sem dúvida, Mikhail Moseievitch Botvinnik era comunista. É um fenômeno típico dos efeitos da propaganda que os mesmos que acusam Botvinnik – e os soviéticos – de trapacearem, não discutem o fato, pois é impossível colocar isso em dúvida, de que ele foi um dos maiores jogadores que já existiram. Aparentemente, não se importam em admitir as duas coisas ao mesmo tempo.
Botvinnik não era notável apenas no xadrez. Formado aos 20 anos (1931) em engenharia elétrica, ele foi um dos pioneiros da eletrônica, e, depois, da informática. Após a conquista do título mundial, interrompeu várias vezes a sua participação nas competições em função desses interesses profissionais.
Em xadrez, foi o professor de gerações de soviéticos. A escola que fundou, em Moscou, funcionou durante muito tempo como uma graduação superior para os jogadores da URSS. Não por acaso, formaram-se lá tanto Karpov quanto Kasparov – dois campeões mundiais.
Um excelente jogador brasileiro disse uma vez a este autor que considerava o estilo de Botvinnik “muito humano”. Não poderia haver maior contraste com isso do que a descrição de Kasparov sobre o “estilo frio, impiedoso” de Botvinnik (ver a segunda parte deste artigo).
Realmente, há algo no jogo de Botvinnik que é muito bem descrito pela palavra “humano”: ele não faz malabarismos ou ilusionismos no tabuleiro. Seus planos estratégicos são claros e inteligíveis e seus recursos táticos jamais se chocam com a estratégia. Como é evidente em seus textos, não se considera um gênio, mas um esforçado estudioso. Por isso, boa parte de suas vitórias foram devidas a uma rigorosa preparação anterior ao jogo, levando sempre em conta as características dos oponentes que ia enfrentar.
Referimo-nos, acima, ao inventado “caso Keres”. Com ele, o padrão da propaganda anticomunista foi estabelecido. Embora, pensando bem, não restava muito a esses propagandistas senão acusarem os soviéticos de trapaceiros. O que mais podiam fazer, em um esporte onde seus inimigos tinham uma hegemonia tão grande que, entre 1948 e 1972, todos os campeões e todos os desafiantes do campeão, foram soviéticos?
Assim, o circo estava pronto para a próxima batalha ideológica – naturalmente, sem que a anterior fosse jamais encerrada. Não se encerram batalhas que são travadas, antes de tudo, no plano da fantasia, senão quando um dos lados deixa de existir. Afinal, até hoje a “Veja” está tentando passar a figura de Che Guevara como o contrário do que ele foi – e certamente deve haver ainda uma meia dúzia de idiotas para acreditar…
Em 1948, mesmo ano da conquista de Botvinnik, realizou-se em Saltsjöbaden, Suécia, o primeiro Torneio Interzonal – etapa do processo para apontar o próximo desafiante do recém campeão. O soviético David Bronstein conquistou o primeiro lugar, classificando-se para o Torneio de Candidatos, a ser realizado em 1950. Nesse torneio, realizado em Budapeste, Bronstein também saiu vencedor. Era ele, portanto, o desafiante do campeão mundial.
Quando eles se reuniram para disputar o match decisivo, Botvinnik estava havia três anos sem participar de competições, dedicado a seus afazeres profissionais. E Bronstein, de todos os jogadores soviéticos, era aquele que Botvinnik detestava – do ponto de vista político, pessoal e enxadrístico. Deste último ponto de vista, Bronstein era um jogador sobretudo tático – o que, para um estrategista que dependia tanto de estudar e prever antecipadamente o que o oponente faria, é sempre uma dificuldade.
Bronstein era filho de um condenado por envolvimento nas conspirações dos “kulaks” – a burguesia agrária – contra o Estado soviético. Alguns relatos afirmam que o pai de Bronstein era um “bukharinista ativo” na década de 30 – isto é, um integrante da conspiração direitista de Bukharin, desbaratada em 1937/1938. O fato é que ele foi condenado em 1937 – e colocado em liberdade condicional em 1944. As histórias posteriores de Bronstein sobre essa época e seu modo habitual de agir – p. ex., era um desses jogadores que frequentemente se referem a si mesmos na terceira pessoa (“então o mestre decidiu mover tal peça”, etc.) – mostram bastante bem porque ele não cativava a simpatia de Botvinnik.
Apesar de não poder ainda legalmente morar em Moscou, foi permitido ao pai de Bronstein assistir ao match – o que, depois, serviu para que seu filho apresentasse essa permissão como uma tentativa de lembrá-lo do que poderia acontecer se vencesse o match… No entanto, mesmo no seu livro mais ressentido, “Aprendiz de Feiticeiro” (a edição inglesa é de 1995), onde chama seu oponente de 1951 de “um deus de lata da cultura socialista”, ele não se atreve a dizer que foi obrigado a perder de Botvinnik, embora, talvez, sejam piores as insinuações: “Um monte de absurdos foi escrito sobre isso. (….) Eu estava sujeito a uma forte pressão psicológica de várias fontes e cabia a mim render-me ou não a essa pressão”.
Passaram-se muitos anos até que Kasparov, em “Meus Grandes Predecessores”, tentasse promover Bronstein a “fundador do xadrez moderno” (sic). Só há uma razão para essa descoberta histórica de Kasparov: o anticomunismo de Bronstein. Não há dúvida que Bronstein era um brilhante tático, dos maiores que já houve. Mas a sua falta de profundidade estratégica sempre lhe foi fatal em momentos decisivos.
Na URSS, não era crime ser anticomunista, se o cidadão ficasse no terreno das ideias. O que constituía crime era conspirar contra o Estado – como, aliás, acontece em todos os tipos de Estado. Assim, a Federação de Xadrez da URSS forneceu a Bronstein os melhores analistas do país – seus “segundos”, cuja principal função era analisar as partidas adiadas, foram Boleslavsky, Furman e Konstantinopolsky. Do mesmo nível era um dos “segundos” de Botvinnik – seu amigo Salo Flohr. Melhores analistas que estes na URSS, só havia um: o próprio Botvinnik.
Muito já se escreveu sobre esse match de 24 partidas. Para os objetivos deste artigo, basta relatar que Bronstein abandonou as linhas de jogo que usava habitualmente e incorporou as linhas que, notoriamente, eram as favoritas de Botvinnik. Isso parece ter surpreendido o campeão.
A duas partidas do final do match, Bronstein estava um ponto à frente de Botvinnik. Precisava apenas de uma vitória – ou de dois empates. Nesse clima começou a 23ª partida. Numa posição ganhadora no 41º lance, Botvinnik adiou a partida, selando seu 42º lance (ao pedir adiamento da continuação da partida, o jogador era obrigado a colocar num envelope lacrado o seu próximo lance).
No entanto, Botvinnik selou um lance errado. E, sobretudo depois de conversar com Salo Flohr, sabia disso. Portanto, no dia seguinte, quando a partida reiniciou, ele sabia que o máximo que podia fazer era lutar tenazmente por um empate – o que deixaria Bronstein a meio ponto do título, com apenas uma partida para o encerramento do match.
Porém, aconteceu uma dessas coisas tão comuns quando os nervos falham nos momentos decisivos. Apenas um lance depois, quem errou foi Bronstein. E Botvinnik conseguiu encontrar, sem análise anterior, em pleno tabuleiro da partida, a jogada ganhadora. Na última partida, Bronstein conseguiria apenas empatar – mas, com isso, o match estava empatado, e Botvinnik manteve o título de campeão.
Foi o gatilho para uma enxurrada de panfletos anticomunistas, sob a forma de artigos, “análises” e livros, que até hoje perdura.
(continua)