CARLOS LOPES
(HP 17/10/2007)
A propaganda anti-soviética em torno do match Botvinnik-Bronstein não teria maior importância se não fossem as declarações posteriores de Bronstein. É nelas, e nas de Yuri Averbakh, que se baseia o atual quiproquó sobre o assunto. Por isso, vale a pena um rápido exame dessas declarações. Na verdade, nos limitaremos a uma declaração de Bronstein, que nos parece especialmente elucidativa.
Em “Aprendiz de Feiticeiro”, Bronstein, na ânsia por mostrar que os comunistas são trapaceiros, diz, sobre sua escolha como desafiante de Botvinnik, em 1950: “Isaac Boleslavsky estava liderando o Torneio de Candidatos, mas, depois de uma conversa com Boris Vainstein [então presidente da Federação Soviética de Xadrez], decidiu maneirar [to slow down – literalmente, “dar uma freada”] para permitir-me empatar com ele em primeiro lugar” (“The Sorcerer’s Apprentice”, pág. 107, Cadogan Books, 1995).
Em suma, Bronstein está dizendo que os soviéticos roubaram, isto é, trapacearam a seu favor. Resta saber por que os comunistas iriam trapacear a favor de um anticomunista, filho de um condenado por conspiração contra o Estado, preterindo um jogador (Boleslavsky) que não tinha nenhum desses problemas – e que sempre mostrou um respeito por Botvinnik de que Bronstein sempre foi, realmente, incapaz.
Resta saber, também, porque iriam trapacear para que o desafiante do campeão fosse um jogador que, fora de dúvida, ele teria muito mais dificuldade em vencer do que Boleslavsky, se a intenção deles (essa é a tese de Bronstein) era facilitar a vitória de Botvinnik. Como observa Taylor Kingston, comentando o mesmo trecho do livro de Bronstein, em 1950 o retrospecto de Botvinnik era ruim em relação a Bronstein (uma derrota, um empate e nenhuma vitória), mas não em relação a Boleslavsky (7 vitórias, 4 empates e nenhuma derrota).
Então, qual o sentido dos soviéticos trapacearem a favor de Bronstein? Para complicar a vida de quem eles queriam que ganhasse? Ou para se arriscar a ter mais uma dor de cabeça – um “dissidente” como campeão do mundo, no esporte mais popular do país?
Bronstein, nessa declaração, joga com o fato de que Boleslavsky era pai de sua terceira mulher, Tatiana. Logo, supõe-se, ele estaria informado da trapaça pela própria vítima. Mas, convenientemente, quando “Aprendiz de Feiticeiro” foi publicado (1995), já havia 18 anos que Boleslavsky não estava mais neste mundo. Porém, havia quase 40 anos (desde 1956) que qualquer declaração manchando a época de Stalin seria bem recebida pela imprensa e pela nova cúpula da URSS – sobretudo nos 10 anos anteriores, pois, desde 1985, Gorbachev era o secretário do PCUS. No entanto, essa declaração somente apareceu em 1995, alguns meses após a morte de Botvinnik.
FRACASSO
Porque Bronstein fez essa declaração ridícula, não é difícil perceber. Ele não tinha como dizer – e, realmente, não disse – que o match com Botvinnik havia sido uma trapaça: os soviéticos permitiram até mesmo que ele levasse uma claque para a sala onde se realizava o match – e os árbitros, Opocenski (Tchecoslováquia) e Stahlberg (Suécia), deixaram até que ele regesse pessoalmente a claque, como na decisiva 23ª partida, para aplaudi-lo e hostilizar o oponente.
Bronstein também não podia dizer que, em algum momento do processo de sua escolha como desafiante, teria sido vítima de uma trapaça. Afinal, os soviéticos não fizeram objeções à sua participação no Interzonal – e ele ganhou tanto o Interzonal, quanto o Torneio de Candidatos.
Assim, para mostrar que os soviéticos eram trapaceiros – e que, supostamente, ele tinha provas de tal coisa – não havia outra solução, senão escolher a si próprio como beneficiário da fraude e a seu falecido sogro como vítima, pois somente ele, Bronstein, e mais ninguém, teve um resultado superior ao de Boleslavsky. Logo, se houve trapaça, só poderia ser a seu favor. Portanto, a prova da trapaça dos soviéticos é a sua própria vitória na escolha do desafiante de Botvinnik.
Bronstein e algumas cabeças de alfinete que lhe seguiram não se aperceberam que, se essa história fosse verdade, ela, antes de tudo, provaria que os soviéticos da época de Stalin eram doidos varridos, que trapaceavam contra seus próprios interesses, para beneficiar os adversários…
Entretanto, as razões reais do fracasso de Bronstein foram sucintamente expostas por seu oponente: “Bronstein era na época indubitavelmente um jogador forte, mas seu talento era marcado por uma limitação. Ele era bom nas complicações do jogo de peças, e dispunha-as no tabuleiro de forma muito bem sucedida do ponto de vista das considerações gerais. (….) mas quando era necessária a precisão da análise para procurar exceções às regras, Bronstein não era tão forte. A análise precisa é necessária no final de jogo, quando um jogador não tem direito de cometer erros, exatamente como um sapador na guerra. Se Bronstein fosse forte nos finais, então, seguramente, eu teria perdido o match. Além disso, fui favorecido pelas deficiências humanas e competitivas do desafiante – uma inclinação para a excentricidade, afetação e ingenuidade em suas táticas de competição” (Botvinnik, “Achieving the Aim”, pág. 130, Pergamon Press, Londres, 1981 – a primeira edição russa é de 1978).
HELSINQUE
Uma sociedade dirigida por pessoas que admitem como verdadeira a versão de sua História forjada pelos que querem destruí-la, está, cedo ou tarde, destinada a ser destruída.
Se foi isso o que ocorreu em geral na URSS, a partir de 1956, também foi verdade no restrito campo do xadrez soviético.
No terceiro volume de suas “Partidas Selectas” (usamos a edição Eseuve, em castelhano), Mikhail Botvinnik relata como, após sua derrota para Vassily Smyslov, em 1957, “sofri pressões para convencer-me de que não pedisse a revanche”. No entanto, o match-revanche fazia parte das regras da FIDE, em caso de derrota do campeão.
“Depois da análise das partidas do match”, lembra Botvinnik, “resolvi não queimar incenso aos deuses (….). O match-revanche celebrou-se na primavera de 1958. (….) A preparação foi simples, o match perdido me proporcionou abundante informação. (….) Na 15ª partida eu já tinha vantagem de 4 pontos”.
Botvinnik conta, em seguida, como, nesta 15ª partida, depois de obter posição ganhadora antes do adiamento, subestimou o oponente e, no dia seguinte, tendo que analisar durante a partida o que deveria ter analisado durante a noite, perdeu porque ultrapassou o tempo permitido: “em vez de 5 pontos de vantagem, tive de conformar-me com três. (….) mas conquistei o título de campeão”.
O que vem logo em seguida é ainda mais significativo:
“Meus colegas (e não somente eles) mostraram seu descontentamento. Compreendiam que ainda que pudessem superar o campeão vigente num match, depois, em um match-revanche, a preparação se fazia notar… e, às minhas costas, começou uma campanha pela supressão do match-revanche” (grifo nosso).
Botvinnik não relaciona essas pressões e essa campanha com os acontecimentos políticos ocorridos após o XX Congresso do PCUS. Porém, nos parece evidente a relação: os kruschevistas, a partir de 1956, estavam alucinados em sua cruzada “anti-stalinista”. Queriam apagar tudo que tivesse o nome de Stalin – ou lembrasse a sua época. O fato disso ser impossível, apenas os deixava mais histéricos.
Botvinnik, campeão soviético em 1931, 1933, 1939, 1944, 1945 e 1952, condecorado por Stalin após sua vitória de 1936 em Nottingham (a primeira de um jogador soviético no exterior), campeão do mundo em um esporte popular na URSS, e fundador da própria escola soviética de xadrez, era quase tudo o que eles detestavam: uma das personificações de uma época que eles, na impossibilidade de eliminá-la da História, queriam demonizar, o que faziam meramente repetindo, assumindo como verdadeira, a propaganda anti-soviética e anti-comunista da década de 30.
Foi então que começou a campanha contra Botvinnik, retratando-o como um ditador super-poderoso do xadrez soviético na época de Stalin. Uma idiotice completa. Basta lembrar a exclusão de Botvinnik da equipe soviética que jogou na 10ª Olimpíada de Xadrez, em Helsinque, 1952 – portanto, com Stalin ainda vivo. A exclusão foi articulada, entre outros, por Keres e Bronstein. Devido à campanha contra Botvinnik, da qual Kasparov tem sido um especial esbirro, relembramos brevemente os acontecimentos.
Durante o treinamento, a equipe foi chamada, subitamente, para comparecer à sede do Comitê de Esportes da URSS, na ausência de seu presidente, Romanov, que já estava em Helsinque – e que havia insistido para que Botvinnik, que mantivera recentemente o título mundial, fosse o primeiro-tabuleiro da equipe. Transcreveremos o relato de Botvinnik – e já diremos ao leitor por que este relato merece confiança:
“O primeiro a ser chamado para falar com Ivanov, vice-presidente do Comitê, foi Keres. Então, Keres saiu e eu fui chamado, acompanhado do pessoal encarregado das sessões de treinamento e do staff de xadrez do Comitê. Em minha presença foi dado um informe a Ivanov, segundo o qual tudo estava indo bem, exceto que os membros da equipe consideravam que Botvinnik estava jogando muito mal.
“Ivanov colocou-me a questão: ‘você pode garantir que será o primeiro lugar no primeiro-tabuleiro?’. Eu respondi: ‘peça a Keres para entrar, por favor’. Tinha se tornado claro para mim que Keres tinha acabado de dar tal garantia, em caso de substituir-me.
“Depois de alguma confusão na sala, foi decidido chamar Keres de volta. Ele apareceu, pálido e embaraçado. Eu percebi, então, que depois dessa ‘acareação’, Keres não seria capaz de jogar bem em Helsinque – ele é psicologicamente instável. Jogar não é a mesma coisa do que dar garantias!
“‘Eu solicito que este assunto seja considerado numa reunião da equipe’, declarei. E foi onde se ficou naquele momento” (cf. “Achieving the Aim”, págs. 136/137).
Depois de uma noite em claro, na manhã seguinte, quando Botvinnik entrou nos sanitários do local onde os jogadores estavam concentrados, encontrou outro integrante da equipe, Vasily Smyslov. Fez a pergunta à queima-roupa: “Vasily Vasilyevitch, você informou que considera que eu não sei como jogar xadrez?”.
Smyslov estava escovando os dentes. E continuou escovando os dentes. Depois, respondeu: “Eu não sabia que isso tudo viria à tona” (“Achieving the Aim”, pág. 137 – Smyslov está vivo, e, evidentemente, também estava em 1978, quando foi publicado este relato de Botvinnik. No entanto, nunca o desmentiu).
Então, aceitando a proposta de Botvinnik, o Comitê de Esportes reuniu a delegação: “Keres disse que Botvinnik estava em má forma, e que não era possível melhorar a forma rapidamente (ele esqueceu de acrescentar que é possível a alguém perder a forma rapidamente!). Bronstein disse que se Botvinnik estivesse para perder um peão, ele perderia o jogo, mas que, se Keres perdesse um peão, ele faria uma coisa ou outra para conseguir um empate (um sábio pensamento!). Smyslov e Kotov simplesmente exigiram que eu fosse excluído da equipe. Somente Boleslavsky manteve-se ao lado do campeão do mundo. Eu fui substituído na equipe por Geller” (quando este relato foi publicado na Rússia, dos participantes desta reunião, além de Smyslov, estavam vivos Bronstein e Kotov – nenhum desmentiu Botvinnik).
Sobre a má forma do campeão mundial em 1952, notemos, somente de passagem, que em dezembro daquele ano, portanto apenas alguns meses depois dessa reunião (e dos sofríveis resultados de Keres como primeiro-tabuleiro da equipe soviética na Olimpíada), Botvinnik venceu pela sexta vez o Campeonato da URSS. Keres foi o 10º colocado; Smyslov, o 9º; e Bronstein, o 7º. Kotov não participou. Mas Boleslavsky foi o quarto colocado.
Além de Bronstein, a outra fonte da campanha contra Botvinnik é Yuri Averbakh, principalmente através de suas entrevistas, onde procura avalizar cada uma das calúnias presentes e passadas, mesmo àquelas que nem autores ocidentais insistem mais, e mesmo àquelas que se referem a acontecimentos sobre os quais é impossível que ele tivesse algum conhecimento de primeira mão.
As entrevistas atuais de Averbakh procuram passar a ideia, ainda que às vezes ambígua, de que ele foi um perseguido durante o socialismo. Nada mais longe da verdade. Averbakh foi, durante muito tempo, o editor-chefe da principal publicação soviética de xadrez – a revista “Xadrez na URSS” – e, depois, presidente da Federação Soviética de Xadrez. Em suma, depois de ter sido um bom jogador (foi campeão da URSS em 1953) e teórico, fez, depois de 1956, carreira como “cartola”. Poucos enxadristas foram tão prestigiados na URSS quanto Averbakh. E poucos se destacaram tanto pelo puxa-saquismo. Sua ascensão coincidiu, precisamente, com o início da campanha anti-soviética – ou contra a história soviética – dentro da URSS. Que ele atualmente use o prestígio adquirido naquela época para se cacifar junto ao que há de pior na Rússia, e fora dela, é apenas um desdobramento lógico de sua carreira.
O INVENCÍVEL
É interessante que o autor americano Fred Reinfeld haja escolhido para título de um de seus best-sellers enxadrísticos, “Botvinnik, o Invencível”. Pois, como o próprio Botvinnik diz acima, ele estava longe de ser invencível no tabuleiro. No entanto, ele dominou toda uma época, sem contestação, e é a isto que Reinfeld se refere, com razão. Mesmo quando Vassily Smyslov – uma rara vocação dupla, de cantor lírico e enxadrista – despontou com os melhores resultados do mundo na década de 50, Botvinnik, ao fim e ao cabo, manteve sua predominância.
O próximo match pelo título mundial foi, exatamente, entre Botvinnik e Smyslov, que saíra vencedor do Torneio de Candidatos de Zurique, em 1953. Smyslov, como Botvinnik, era um estrategista (um “jogador posicional”, como dizem os enxadristas). Era excelente tanto na defesa quanto no ataque, preciso nas aberturas, e, sobretudo, nos finais de partida. Além disso, como observou Botvinnik, tinha uma capacidade especial para refutar linhas de jogo preparadas de antemão – exatamente o elemento em que o seu oponente era famoso. Em resumo, era um jogador sem as limitações de Bronstein.
Outra vez, este match, disputado em 1954, foi um empate – com Botvinnik, consequentemente, retendo o título de campeão. Mas esteve longe de ser um match monótono. Nas seis primeiras partidas, Botvinnik tinha 3 vitórias contra nenhuma de Smyslov. Nas cinco partidas seguintes, Smyslov venceu 4 vezes. Ficou, portanto, um ponto acima do campeão. Então, nas próximas 5 partidas, Botvinnik venceu 4 delas – e ficou dois pontos à frente do desafiante. Porém, à beira do esgotamento, perdeu a 20ª e a 23ª partidas, e a decisão foi para a última partida do match – mas esta foi um empate, e, com 7 vitórias para cada um, o match de 24 partidas também terminou empatado, com Botvinnik mantendo-se campeão.
Porém, Smyslov venceu outra vez o Torneio de Candidatos (Amsterdã, 1956). E, no match de 1957, “a luta transcorreu com êxitos de um lado e de outro, mas depois não aguentei a dura prova, e V. Smyslov conquistou com brilhantismo o título de campeão. (….) No período 1953-1958, Smyslov não conheceu a derrota; este foi o cume de sua trajetória enxadrística” (Botvinnik, “Partidas Selectas”, vol. 3). A observação “não aguentei a dura prova” é uma referência de Botvinnik à sua idade: tinha 46 anos e Smyslov, 36. Dez anos de diferença na idade, num match de 24 partidas, são um peso difícil de neutralizar (em 1957, Botvinnik não chegou até a última partida – Smyslov, com 12,5 pontos contra 9,5, conquistou o título na 22ª partida).
Mas, como já vimos, ele ganhou o match-revanche em 1958. Continuava insuperável na preparação teórica e psicológica, em especial na análise do estilo e das características do oponente.
Apenas um ano depois, no Congresso da FIDE, o campeão mundial seria surpreendido por uma decisão que explodiu no mundo do xadrez como uma bomba. A FIDE aprovou o que a revista inglesa “Chess” chamou de “a regra anti-Botvinnik” – com o apoio, para surpresa ainda maior de Botvinnik, da delegação soviética.
(continua)