CARLOS LOPES
(HP 24/10/2007)
O artigo de Fischer, “How the russians fixed world chess” (“Como os russos fraudam o xadrez mundial”), publicado na “Sports Illustrated” em agosto de 1962, pode ser resumido rapidamente: durante o Torneio de Candidatos de Curaçao, realizado dois meses antes, os soviéticos (havia cinco entre os oito competidores: Tahl, Petrosian, Keres, Geller e Korchnoi) combinavam os resultados, em geral empatando rapidamente entre si, enquanto jogavam para valer contra os outros, isto é, contra Fischer (nitidamente, ele não estava muito preocupado com os outros participantes não-soviéticos: o húngaro-americano Pal Benko e o tcheco-eslovaco Miroslav Filip. Mas como ninguém achava que o excelente Filip tivesse chances, muito menos Benko, a questão se resumia, realmente, a Fischer).
Assim, era através da trapaça que, supostamente, os soviéticos conseguiam vencer torneios e, sobretudo, manter o título de campeão mundial. Por consequência, essa também era a razão de Fischer não haver saído de Curaçao como o desafiante de Botvinnik: os soviéticos, isto é, os comunistas, trapacearam para impedi-lo.
Note-se que, pelo menos explicitamente, Fischer não estava se queixando de que os soviéticos se ajudavam mutuamente na análise de suas partidas, o que era público – e lícito. O próprio Botvinnik, na análise de sua única partida com Fischer (ocorrida no mesmo ano, na Olimpíada de Varna), declarou que obtivera o empate numa situação desfavorável, devido a uma ideia de seu colega Efim Geller. Explicitamente, não era disso que Fischer se queixava – embora esta nos pareça a verdadeira razão de seu inconformismo, como veremos até o final desta parte de nosso artigo.
A queixa explícita de Fischer é que os soviéticos combinavam seus resultados, o que não era lícito. Além disso, segundo ele, durante seus jogos os soviéticos rodeavam a mesa, e, ignorando que Fischer entendia o idioma russo, davam sugestões e/ou instruções aos compatriotas que o enfrentavam, e o atrapalhavam com a tagarelice. Como este problema poderia ser resolvido simplesmente com uma queixa ao árbitro, não nos deteremos nele – assim como não se detiveram nenhum dos que apoiaram Fischer, exceto fugazmente.
No entanto, a primeira acusação perdurou por longos anos e, na verdade, ainda perdura. Ela ainda é, com as copiosas ampliações de Kasparov, uma das bases da campanha anti-comunista – e não apenas no xadrez. Livros e autores que se pretendem muito sérios, continuam repetindo-a. (v., p. ex., o livro de 2005 do GM holandês Jan Timman, “Curaçao 1962 – The Battle of Minds That Shook the Chess World” – e esse autor não é apenas Grande Mestre, mas um ex-candidato a campeão mundial e editor-chefe da “New in Chess”, hoje, provavelmente, a mais lida revista sobre xadrez).
Sobretudo, a acusação de Fischer foi o pretexto para um atropelo geral nas regras do campeonato mundial. A FIDE, sob pressão norte-americana, acabou com o Torneio de Candidatos, substituindo-o por matches entre os pretendentes ao título – ou seja, a FIDE tratou como verdadeira a acusação.
O problema, evidentemente, não era que as regras não podiam ser alteradas. O problema é que quando elas são alteradas sob um pré-julgamento contra um dos lados em disputa – uma disputa que, inclusive, ia bem além do xadrez – e a favor de outro, está aberto o caminho para que ninguém respeite regra alguma. Assim, a alteração das regras, que começara com a revogação do direito do campeão ao match-revanche, deu mais um passo em direção à anarquia que seria alcançada com a cisão de Kasparov, em 1993.
O pior de tudo, provavelmente, foi que a acusação de Fischer colocou em defensiva não somente os soviéticos, mas pessoas que estavam bastante longe de concordar com a propaganda anti-comunista. O autor destas linhas deve confessar, honestamente, que foi um desses.
Mas isso não aconteceu por acaso: mesmo hoje, basta uma releitura do artigo de Fischer para perceber que o autor não está mentindo, pelo menos não no sentido em que, em geral, se usa a palavra “mentira”. Ele realmente tinha convicção no que dizia. Essa é a força maior do texto, pois não é uma experiência comum para a maioria das pessoas travar contato com alguém convicto, não de uma crença, mas de um fato, e, ao mesmo tempo, o suposto fato não ser verdade.
Para dificultar ainda mais a distinção entre fato e fantasia, entrou em cena a máquina da mídia e dos órgãos governamentais norte-americanos. Pouco tempo antes, em 1958, o FBI desconfiara que Fischer havia sido recrutado como espião pelos soviéticos. Agora, haviam conseguido um propagandista ideal, ainda que inconsciente (ou ideal por causa disso mesmo): alguém que acreditava no que dizia, e contava uma história, digamos, plausível.
Nessa época, evidentemente, não se sabia que o FBI vigiava a família de Fischer desde a década de 40. Os documentos referentes a isso somente seriam liberados, com inúmeras tarjas negras sobre o texto, em 2002.
A última dificuldade foram os desmentidos soviéticos (inclusive os de Keres e Petrosian), que não ajudaram a elucidar a questão. Eram desmentidos – o que é outro sinal da defensiva dos soviéticos a partir de Kruschev – genéricos. Não demoliam ou desmontavam as alegações do oponente – o que, sem dúvida, é o caminho seguro para a derrota, mesmo quando se está com a verdade, e o adversário, com a mentira. Se a verdade pudesse se impor somente porque é verdade – ou seja, sem o esforço dos que estão com ela para desmascarar a mentira – o nazismo e o macartismo não teriam existido, e o mundo de hoje seria um maravilhoso Shangri-La. Mas não é assim, sem luta, que as coisas funcionam.
CURAÇAO
Examinemos as alegações.
Em seu artigo, Fischer excetua Tahl da conspiração soviética. Até ele reparou que incluí-lo transformaria, antes de tudo para si próprio, a acusação num absurdo. Se há algo que Tahl jamais faria, era, precisamente, combinar um empate. Além disso, depois de 21 rodadas, ele abandonou o torneio, por motivos de saúde – e Fischer visitou-o no hospital, sendo recebido de forma muito amistosa pelo ex-campeão mundial. Portanto, para acreditar na conspiração, Fischer tinha que colocar Tahl fora dela.
Porém, como observou o enxadrista e escritor holandês Tim Krabbé, também é necessário excetuar Korchnoi – não exatamente, como diz Krabbé, porque ele sempre negou, mas por razões políticas e também porque até hoje ninguém conseguiu incluí-lo nessa história (V. Tim Krabbé, “The legend of the Curaçao conspiracy”, in “Open Chess Diary”, nota 299, de 22/10/2005).
Com isso, a conspiração fica reduzida ao suposto envolvimento de três jogadores soviéticos: Petrosian, Keres e Geller. Novamente, como em 1948, é sobre Keres que se concentra a intriga. Recentemente, buscou-se o apoio de Yuri Averbakh (coisa, aliás, bastante fácil – v. parte 5 deste artigo) para dizer que “é claro que foi tudo manipulado” para prejudicar Keres (entrevista de Averbakh para a Schaaknieuws, cit. por Krabbé).
De onde se conclui que, em Curaçao, 1962, teriam existido, não apenas uma, mas duas conspirações soviéticas: uma, com a participação de Keres, contra Fischer; a segunda, dos outros soviéticos contra o próprio Keres…
Ao leitor que porventura comece a achar, como nós, que essa história é excessivamente absurda, pedimos um pouco de paciência. Lembremos que a suposta autoridade de Averbakh, nesse caso, estriba-se no fato de que ele estava em Curaçao como integrante da delegação soviética. Segundo diz, “os russos” não queriam Keres como desafiante do campeão, porque era um estoniano, nem Geller, porque era um ucraniano de origem judaica – portanto, o vencedor, escolhido de antemão, e favorecido pela trapaça, foi Petrosian.
O problema dessa versão “étnica”, ou, melhor, dessa versão em que os soviéticos (isto é, os comunistas, ou, “os russos”) trapaceavam por racismo, é que Petrosian era armênio. “Por que razão um estoniano e um judeu ucraniano (e o judeu russo Korchnoi!) não eram convenientes e um armênio era, Averbakh deixou, melancolicamente, de dizer”, observa Krabbé em seu “Open Chess Diary”.
Nós acrescentaríamos algumas outras perguntas sobre o que Averbakh “deixou de dizer”:
1) Por que razão um russo de origem judaica, como Botvinnik, podia ser campeão do mundo, mas um outro russo de origem judaica, Korchnoi, não podia ser o seu desafiante?
2) Por que razão, numa época em que o principal dirigente da URSS, Kruschev, era mais ucraniano que russo, um ucraniano de origem judaica, Geller, não podia ser o desafiante do campeão?
3) Por que razão uma nação báltica, a Letônia, podia ter um campeão do mundo, Mikhail Tahl, mas outra nação báltica, a Estônia, não podia ter Paul Keres como desafiante do campeão?
4) Por último: por que razão um judeu de ascendência alemã – o próprio Averbakh – podia ser presidente da Federação Soviética de Xadrez, mas ucranianos e russos de origem judaica, assim como estonianos, não podiam ser desafiantes do campeão do mundo?
EMPATE
A duas rodadas do fim do torneio, Keres estava em primeiro lugar. Era o virtual desafiante. Foi então que perdeu, não para um soviético, mas para o americano Pal Benko. Aliás, Keres somente perdeu duas partidas em Curaçao, ambas para norte-americanos – Fischer e Benko. Foram essas duas derrotas que o impediram de ser o desafiante do campeão – as duas, para os únicos jogadores norte-americanos presentes ao torneio.
Averbakh não diz que Keres perdeu de propósito, até porque isso seria insustentável diante da partida com Benko, mas afirma que a sua derrota “foi um alívio” para a delegação soviética, que assim não teria que se expor, recorrendo a algo mais escandaloso… Portanto, Averbakh está propugnando que a prova de que existiu a “manipulação”, consiste em que não foi necessário recorrer a ela. Em bom português (mas em péssima lógica): a prova de que “foi tudo manipulado” para excluir Keres é que a manipulação não aconteceu, mas aconteceria, se ele não perdesse para Benko…
Mas, continuemos: uma das provas cruciais apresentadas por Fischer da existência de uma conspiração soviética contra si é a partida de Keres contra Petrosian, na 25ª rodada. Nessa partida, houve um empate em apenas 14 jogadas, algo, aliás, nada raro na trajetória de Petrosian – mais ainda, faltando três rodadas para o final, com os jogadores próximos da exaustão, em um torneio no qual cada um enfrentava 4 vezes o mesmo oponente.
Segundo Fischer (e Timman, no livro de 2005), esse empate prova a sua tese, pois a partida estava ganha para um dos lados, e, no entanto, eles empataram rapidamente. Na análise, tanto Fischer quanto Timman procuram demonstrar, o que parece certo, que a partida estava ganha para as negras.
O problema, como ressaltou o GM inglês Raymond Keene, autor de “Petrosian vs the Elite” (Batsford, Londres, 2006), é que quem estava jogando com as negras era Petrosian, e não Keres. Portanto, se Petrosian aceitou ou propôs o empate numa posição ganhadora, livrou Keres de uma derrota. Ou seja, o jogador estoniano foi beneficiado com a suposta conspiração, da qual, segundo Averbakh, era a vítima. Sobre isso, Krabbé faz outra excelente pergunta: “Se Petrosian era o indicado para ser o vencedor, e Keres não devia vencer, então, o que poderia ter sido mais fácil do que fazer Keres perder essa posição perdida, e dar o ponto a Petrosian?”.
Pelo visto, as conspirações dos comunistas no xadrez eram só para empatar, mesmo que isso livrasse suas vítimas da derrota…
Entretanto, poderia acontecer que o empate de Petrosian e Keres tivesse o objetivo de prejudicar Fischer. Aliás, é o que se entende em seu artigo para a “Sports Illustrated”. Portanto, voltemos, aqui, à primeira conspiração.
Na 25ª rodada, quando foi jogada essa partida, Fischer já não tinha chance alguma, nem mesmo teórica, de ser o vencedor do torneio. Estava em quarto lugar, onde permaneceu até o fim. Já havia perdido para Petrosian, Keres, Geller (duas vezes), Korchnoi, e até mesmo para o seu naturalizado compatriota, Pal Benko. À sua frente estavam, e ficaram, precisamente, os três jogadores soviéticos sobre os quais ele lançou a acusação de trapaça: Petrosian, Keres e Geller. Logo, resta descobrir os motivos dos soviéticos para conspirar contra Fischer, a ponto de fraudar uma partida entre seus dois principais jogadores, numa situação em que o suposto alvo da conspiração já havia saído da pista, e em um jogo onde, se Petrosian vencesse, ao invés de empatar, aumentaria mais a diferença a seu favor, em relação ao jogador norte-americano.
Mas, examinemos outra hipótese. Poderia acontecer que Fischer, em algum momento anterior do torneio, estivesse com chances de ser o vencedor e tenha sido alijado pela conspiração soviética. No entanto, não foi isso o que ocorreu. No início do torneio, Fischer estava mal – começou perdendo as duas primeiras partidas, para Benko e para Geller. Na 14ª rodada, isto é, na exata metade do torneio, Fischer estava atrás de cinco jogadores soviéticos: Petrosian e Geller, em primeiro; Keres, em segundo; Korchnoi, em terceiro.
Mais especificamente: os dois primeiros estavam com 9 pontos; o segundo com 8,5; o terceiro com 8 pontos; e, Fischer, com 7 pontos. A única chance que Fischer tinha de superar os líderes, era se os soviéticos empatassem entre si. Foi, precisamente, o que ocorreu. Ou seja, mais uma vez, se a conspiração tivesse existido, teria sido a favor de Fischer.
A partir daí, o problema de Fischer foi que, mesmo com os empates dos soviéticos dando-lhe uma chance de ser o vencedor, ele perdeu para Keres (21ª rodada), e, embora haja vencido Korchnoi e Geller na 19ª e na 23ª rodadas, empatou duas vezes com Petrosian e também empatou a quarta e última partida tanto com Keres quanto com Geller. Ou seja, não conseguiu superar os jogadores soviéticos, exceto Korchnoi.
Reproduzimos a conclusão de Krabbé: “a forma de Fischer não era boa o suficiente para aproveitar essa vantagem [o empate entre os soviéticos] em seu benefício. Não há razão para pensar que em Curaçao havia algo além de que Geller, Keres e Petrosian, tendo grande respeito uns pelos outros, pensaram em alguns dias de descanso extra, e Petrosian teve mais sorte – ou, talvez, fosse o mais forte. Fischer nunca foi um problema”.
Porém, não havia sido apenas com os soviéticos que Fischer se chocara em Curaçao. Na 5ª rodada, Fischer e Benko adiaram a continuação de suas partidas. Só havia um “segundo” para analisar seus jogos adiados, o GM e ex-campeão norte-americano Arthur Bisguier, pois a Federação dos EUA não havia liberado dinheiro para contratar outro.
No dia seguinte, Fischer dirigiu ao comitê organizador do torneio um pedido para que Benko fosse “penalizado e/ou expulso do torneio”. Transcrevemos a fundamentação, porque ela é importante para avaliar o grau de maturidade de Fischer, com 19 anos na época: “Na noite de 9 de maio, um pouco antes da meia-noite, Benko entrou pelo quarto sem minha permissão (….). Eu imediatamente pedi a ele para sair e ele recusou-se. Eu repetidamente pedi que saísse e ele recusou-se a cada pedido. Ele ficou furioso quando recusei-me a permitir que meu segundo, Arthur Bisguier, o ajudasse a analisar seu adiamento com Petrosian. Ele insultou-me e, quando eu respondi, atacou-me quando eu estava sentado numa cadeira. Eu não revidei. Então, finalmente, ele deixou o quarto” (Hanon W. Russell, “The Fischer-Benko Slapping Incident”).
Posteriormente, Arthur Bisguier exporia o cerne da questão, nesse conflito de Fischer com Benko, o que também esclarece muito a respeito do conflito com os soviéticos. No fundo, era a mesma questão: “Apesar de que eu expressei minha disposição de também trabalhar para Benko, Fischer insistiu em que eu fosse unicamente seu segundo. Sua justificativa era que o Torneio de Candidatos é um torneio individual, não um evento de equipes, e Benko era outro oponente em perspectiva”.
(continua)