CARLOS LOPES
(HP 31/10/2007)
Tigran Petrosian foi, ao mesmo tempo, um dos jogadores de xadrez mais originais da história e um dos mais subestimados – sobretudo, na época, pela imprensa soviética. Por isso, vale a pena reproduzir o juízo do campeão que ele derrotou em 1963:
“Petrosian possui um talento único em xadrez. Como Tahl, ele não esforça-se para jogar ‘de acordo com a posição’, no sentido em que antes isso era entendido. Mas enquanto Tahl tentava alcançar posições dinâmicas, Petrosian criava posições nas quais os eventos se desenvolviam como num filme em câmara lenta. É difícil atacar suas peças: as peças atacantes só avançam lentamente, atoladas no pântano que cerca o campo das peças de Petrosian. Se, finalmente, você arma um ataque, então resta pouco tempo, ou a fadiga entra em jogo. Para entender a força do novo campeão, é necessário também notar a excelente técnica de Petrosian na realização da vantagem posicional” (Botvinnik, “Achieving the Aim”, ed. cit., pág. 172 – o grifo é nosso).
Avaliação essa que tem algum parentesco com o comentário de Fischer, na análise de sua partida com Petrosian, no Torneio Interzonal de Portoroz: “Eu estava pasmado no transcorrer do jogo. Cada vez que Petrosian conseguia uma boa posição, ele manobrava para obter uma melhor” (Fischer, “My 60 Memorable Games”, ed. cit., pág. 27).
Botvinnik lembra, também, que, apesar de não haver “jogado muito bem” durante o match, “minha forma não era de todo má: três meses depois, na Spartakíada dos Povos da URSS, fiz 8 pontos em 9 possíveis!”.
Porém, a consideração de que Petrosian “não esforça-se para jogar de acordo com a posição” pode levar a uma ideia errônea do seu estilo. Ao contrário de Tahl, com quem Botvinnik o compara, Petrosian foi um jogador com um sentido de posição (ou seja, senso estratégico) além das concepções anteriores, daí a observação de que ele não jogava “de acordo com a posição no sentido em que antes isso era entendido”. Realmente, Petrosian extraiu, pode-se dizer, as últimas conseqüências do conceito de posição, formulado por Steinitz (v. parte 1 desta série) na segunda metade do século XIX. Ou seja, Petrosian subiu um novo degrau na estratégia em xadrez.
Para não dificultar a compreensão dos leitores que não são enxadristas, ficaremos por aqui a respeito dessa questão, acrescentando apenas a síntese de Petrosian: “Estou absolutamente convicto de que no xadrez – apesar dele continuar sendo um jogo – nada é acidental. Este é o meu credo”. Observemos que tal formulação vai além, por exemplo, da declaração de Capablanca: “não acredito em combinações que não sejam rigorosamente calculadas”, na qual o leitor que não é enxadrista poderá, sem prejuízo do conteúdo, substituir “combinações” por “sequências de jogadas”.
DEFESA
Petrosian foi, provavelmente, o único gênio defensivo do xadrez, e a maior demonstração desse talento é que conquistou duas vezes o título mundial – contra Botvinnik, e, depois, contra Spassky, então em pleno auge. Como ele mesmo advertiu, “eu sou um sujeito cauteloso. Em meu estilo, como num espelho, está refletido o meu caráter. Entretanto, eu estou certo de que é impossível vencer dois campeões mundiais sendo apenas ‘cauteloso’” (Esta citação de Petrosian, como as posteriores, são do livro de G. Hakobyan, “Tigran Petrosian” – este livro só existe, atualmente, em armênio, mas alguns pequenos trechos foram traduzidos para o inglês no site “Chessgames”).
Em suma, ele não via a defesa como algo passivo. São notáveis as suas partidas onde envolve progressivamente o oponente, deixando-o sem espaço e, cada vez mais, sem opções de jogadas (“pode ser que eu goste de defender mais do que de atacar. Mas quem provou que defender é menos perigoso do que atacar?”).
Sintomaticamente, Kasparov, que adotou e tentou rebatizar algumas das inovações de Petrosian (por exemplo, a chamada Variante Petrosian da Defesa Índia da Dama, que quase se tornou a “variante Kasparov”), diz, em “Meus Grandes Predecessores”, que o armênio era “o filho ideal de sua época. (….) [uma época] de completo sufocamento da liberdade de expressão, de diminuição na crença nos ideais comunistas, substituídos pelo conformismo, reticência, cautela e discrição. Em Petrosian, com sua infância difícil, quieta prudência e enorme talento natural, essas qualidades estavam presentes em plena medida” (grifos nossos).
Kasparov nem mesmo consegue perceber a contradição evidente entre “enorme talento” e as “qualidades” (?) de um burocrata cinzento, que atribui a Petrosian. Mas, por que ele acha que o talento de Petrosian era “natural”?Simplesmente porque é preciso que nenhuma característica positiva tenha a ver com a sociedade em que Petrosian nasceu e viveu. Por consequência, seu talento só pode ser um dom da natureza, um dom que, como raio em céu azul, a natureza pode conceder até a um “conformista”, ou seja, a uma mediocridade. Para completar esse mero mecanismo da propaganda reacionária, essa forjada mediocridade – e só ela – é que tem a ver com a sociedade em que Petrosian nasceu e viveu. Já o talento, esse é “natural”…
Mas isso é apenas mais um exemplo do vácuo moral de Kasparov, onde, há muito, a coerência e a integridade foram extirpadas pelo oportunismo sem escrúpulos. Para quem declarou, numa de suas viagens ao Brasil, que foi perseguido pelos comunistas porque era filho de um judeu e de uma armênia, tudo é possível. Já abordamos a suposta perseguição aos judeus e a consideração que Kasparov mostrou pelo pai. Resta agora apontar que, no livro que citamos, ele considera que a expressão maior no xadrez do regime que o teria perseguido por ser filho de uma armênia, era um armênio… Será que os comunistas só perseguiam os filhos de armênias, mas não os armênios?
Quanto à menção à “infância difícil” de Petrosian como origem de seu suposto “conformismo”, aqui entramos no terreno da infinita canalhice. Que, como quase sempre, é apenas uma projeção: Kasparov projeta, sobre um homem de caráter incomensuravelmente superior, os seus próprios problemas. Mas não é surpreendente que, por essa diferença de estatura, ele não consiga entender que as dificuldades nem sempre esmagam as pessoas, e que, ao contrário, muitos cresçam, e não pouco, ao enfrentar os desafios da vida.
TRAJETÓRIA
Realmente, o hoje famoso estilo defensivo de Petrosian parece ter profundas raízes psicológicas. Armênio, ele nasceu na Geórgia. Perdeu seus pais durante a II Guerra Mundial. Aos 15 anos, sem pai e sem mãe, assumiu a criação de seus irmãos. Sua única distração, durante essa época, parece ter sido o xadrez, descobrindo duas influências que o moldaram originalmente como jogador: as obras de Nimzowitsch, o teórico da escola “hipermoderna”, e as partidas de Capablanca. Sua primeira formação enxadrística, como a de Tahl, foi feita entre os Pioneiros Soviéticos – a instituição para-partidária que, na URSS, se dedicava às crianças.
Sua trajetória nunca foi fácil. Mas conseguiu sempre superar, com uma tenacidade impressionante, as dificuldades. Esteve 10 vezes entre os candidatos a desafiantes do campeão mundial – e venceu 4 vezes o Campeonato da URSS, não perdendo uma só partida em seis deles (nas Olimpíadas, de 129 partidas que jogou, perdeu uma). Era, além de tudo, um excelente caráter, a quem feria a incompreensão que seu estilo encontrou na época – como registrou o ex-campeão norte-americano Arthur Bisguier, um dos primeiros, após a morte de Petrosian, em 1984, a celebrá-lo.
Apesar de todas as dificuldades, Petrosian foi um homem feliz. Em sua entrevista de 2003, a primeira mulher de Tahl, Sally Landau, lembra com admiração – e alguma inveja – o amor do casal Petrosian, Tigran e Rona Petrosian. Talvez o seu legado seja bem expresso por uma de suas observações: “Todo jogador de xadrez, quando enfrenta seu oponente, também enfrenta a si mesmo. Cada batalha é uma luta interior”.
SPASSKY
É possível que somente muito tarde os responsáveis pelo xadrez soviético tenham advertido sobre a origem de certas debilidades de Boris Spassky. Se é que chegaram a alguma conclusão sobre isso.
No entanto, essas debilidades eram sensíveis desde a primeira fase de sua trajetória – a fase que, depois, iria provocar a admiração de Fischer. Nessa época ele parecia sempre trair-se pelos nervos nos momentos decisivos. Sua derrota para Tahl na última rodada do Campeonato Soviético de 1958 ficou famosa: naquele ano a FIDE havia reduzido para quatro o número máximo de vagas para cada país no Interzonal de Portoroz, de onde sairiam os candidatos a desafiante do campeão mundial – uma decisão, por sinal, que afetava um só país: a URSS.
Spassky necessitava pelo menos empatar para disputar a quarta vaga soviética. Ou seja, não podia perder, mas não precisava, necessariamente, ganhar. Uma situação relativamente confortável, pois Tahl já estava classificado para o Interzonal – mesmo se perdesse a partida, iria a Portoroz. No entanto, é verdade, se Tahl quisesse garantir o bicampeonato soviético sem depender do resultado de outros jogadores, precisava ganhar. Para isso, o empate não lhe servia.
Spassky esteve em vantagem durante quase toda a partida – uma longa batalha que durou 73 movimentos, ou seja, 146 jogadas. Após o adiamento, Spassky conseguiu uma posição francamente ganhadora – e jogou a vitória pela janela na 62ª jogada. Tahl igualou o jogo e propôs o empate. Spassky recusou – e perdeu, depois de uma trinca de erros. Mais importante do que a derrota, para entendermos Spassky, foi sua reação, contada por ele mesmo: levantou-se da mesa chorando e assim percorreu, por horas e sem destino, as ruas de Riga, onde se realizou o Campeonato da URSS de 1958.
No entanto, poucos jogadores foram tão insistentemente promovidos no meio enxadrístico – ainda não era a época em que jogadores de xadrez se tornaram assuntos da mídia em geral – quanto Spassky. No início da década de 60, houve até quem propusesse um novo conceito: o “jogador universal”, isto é, aquele que é capaz de dominar igualmente a estratégia e a tática – e adaptar plasticamente o seu estilo ao do oponente. A base do suposto novo conceito eram as vitórias de Spassky.
Em nossa opinião – que, sem dúvida, é discutível – tomava-se por qualidade o que era um subproduto dos problemas não-resolvidos de Spassky, problemas que lhe conferiam uma certa indefinição de personalidade, que seria fatal em 1972, no match com Fischer. Em suma, Spassky não era – e não é – um canalha, mas era – e é – um homem muito dividido. Não por acaso, apesar de seus pontos de vista políticos e os de Korchnoi serem aparentados, Spassky (aliás, como Petrosian, Karpov, Botvinnik, e até Judite Polgar) jamais o suportou. Ao contrário de Korchnoi, jamais traiu o seu país, mesmo quando, depois de casar-se com uma francesa, resolveu sair dele e naturalizar-se francês, em 1978. O que não quer dizer que não tenha – e hoje mais do que antes – dito algumas coisas que, simplesmente, não são verdade. No entanto, não parece que ele o faça por malignidade, mas por fraqueza e esmagamento.
Spassky aprendeu xadrez aos cinco anos, no trem em que viajava, quando Stalin decidiu que as crianças de Leningrado fossem retiradas da cidade, pouco antes que os nazistas fechassem o cerco que matou um milhão de seus habitantes. Seus primeiros triunfos causaram sensação. E, depois da primeira fase que mencionamos, ele pareceu se retemperar. No entanto, olhando para sua trajetória enxadrística do começo ao fim, alguém já disse que Spassky é o único jogador que chegou a campeão mundial e, apesar disso, sua história sempre causa a impressão de que não realizou todo o seu potencial – e por preguiça.
Este era, precisamente, um problema que Petrosian não tinha. Não é certeza que, em meio à promoção de Spassky na URSS, ele tenha pensado em não disputar o match de 1966 pelo título mundial. Segundo algumas versões, sua esposa, Rona Petrosian, é que o teria estimulado a enfrentar o desafiante. Sem dúvida, Rona deve tê-lo estimulado, como sempre fez. Porém, não nos parece típico de Petrosian abandonar o título sem luta.
Mas, em março de 1966, quando os dois jogadores começaram o match, Spassky era o franco favorito. Surpreendentemente, em meio a uma série de empates (17 ao todo), Petrosian foi o primeiro a vencer, na sétima partida e, depois, na décima. Spassky igualou a contagem, ao vencer a 13ª e a 19ª partidas.
Mas a tenacidade e a força de vontade eram o campo de Petrosian, não de Spassky. Assim, logo na partida seguinte a que Spassky igualou, Petrosian venceu e ficou um ponto à frente. Em seguida, ganhou também a 22ª partida. Spassky conseguiu triunfar na 23ª e penúltima partida, mas não conseguiu vencer Petrosian na última. Assim, o campeão conservou seu título, vencendo por um ponto o desafiante – uma tarefa que nem Botvinnik havia conseguido cumprir em seus primeiros matches.
Do ponto de vista da teoria do xadrez, havia sido um massacre – o placar, por várias razões, inclusive o cansaço, nem de longe refletiu esse fato.
Pelo que ele mesmo conta, Spassky resolveu levar a sério a preparação teórica nos três anos seguintes. Nas suas palavras, “tornei-me um especialista no estilo de Petrosian”. Porém, para enfrentar Petrosian novamente, ele teria que passar pelos matches entre os candidatos. E, com efeito, derrotou Geller, Larsen e Korchnoi por contagens mais do que convincentes.
Em março de 1969, quando começou o novo match entre Spassky e Petrosian, o primeiro estava realmente bem preparado, ainda que também o campeão. Porém, Petrosian já estava com 40 anos e Spassky apenas com 32. Não é uma diferença pequena em um match de 24 partidas. E, como observou Botvinnik, que, nesse particular, sabia, mais do que do que qualquer outro, do estava falando, “infelizmente [Petrosian] nunca foi um pesquisador. Para tais jogadores, 40 anos é uma idade perigosa. Com o inevitável declínio da capacidade para o cálculo, seu talento desbota muito – se não é polido novamente!” (“Achieving the Aim”, pág. 173).
Mesmo assim, não foi um passeio: Petrosian ganhou a primeira partida e Spassky somente igualou na quarta. Depois disso, venceu também a quinta e a oitava, mas Petrosian não era um cachorro morto: venceu a 10ª e a 11ª. Spassky voltou a ganhar na 17ª e na 19ª, e Petrosian descontou na 20ª. Mas era tarde. Spassky ganhou a partida seguinte – e os empates na 22ª e 23ª selaram o resultado.
Todas as previsões eram de um longo reinado para Spassky. Simplesmente porque não havia nenhum jogador soviético no auge. Todos os outros grandes jogadores já tinham passado do apogeu, e não havia ainda, na geração seguinte à de Spassky, quem os substituísse à altura. Pela primeira vez desde o fim da II Guerra, o xadrez soviético passava por uma entressafra.
Com o afastamento de Fischer, então dedicado a suas atividades religiosas, também não havia, entre os possíveis desafiantes estrangeiros, algum que fosse capaz de derrotar Spassky. Portanto, os soviéticos teriam algum tempo – pelo menos até 1975, com a conservação do título por Spassky em 1972 – para preparar a nova geração.
A realidade, porém, não caminha de acordo com as ilusões. Alguém nos EUA percebera a entressafra soviética e os problemas de Spassky, e não deixaria passar a oportunidade – ainda que fosse preciso passar por cima de estatutos, regulamentos, regras, e até de leis.
Foi então que, pouco antes de começar o Interzonal de Palma de Mallorca, em novembro de 1970, um dos participantes dos EUA, o ex-húngaro Pal Benko, desistiu do torneio para dar o seu lugar, precisamente, a Fischer, que nem mesmo disputara uma vaga para ir ao Interzonal.
(continua)