“Aqui em SP, lá na região da Praça da Sé, há postes de ferro fundido que são originários de quando a Light começou a operar aqui em 1899. A Enel não fez manutenção preventiva”, apontou o professor Ildo Sauer, sobre os apagões de finados e do dia 13 de novembro
O professor Ildo Sauer, Titular do Instituto de Energia da USP e ex-diretor da Petrobrás, explicou nesta terça-feira (21), em entrevista ao HP, que os dois episódios de falta de energia ocorridos recentemente em São Paulo tiveram causas específicas, mas foram provocadas pela lógica neoliberal que mudou o método de gestão e de fiscalização das empresas. A fiscalização afrouxou e os objetivos das concessionárias passaram a ser a busca frenética por superlucros.
Segundo Ildo Sauer, a lógica trazida após o Consenso de Washington tirou os engenheiros das empresas e os substituiu por financistas. A gestão fixou-se em cortes de gastos e de pessoal e elevação de bônus dos altos gestores. O resultado foi a queda acentuada da qualidade dos serviços ofertados aos brasileiros e uma das tarifas mais altas do mundo.
As agências passaram, segundo Ildo, de uma fiscalização por planejamento e controle para indicadores indiretos. A partir daí, não se fez mais manutenção preventiva. “O órgão que deveria fiscalizar possui apenas dez engenheiros para fiscalizar as mais de 100 empresas em todo o Brasil”, destacou o especialista. “Isso não podia dar certo”, sentenciou Ildo Sauer.
Confira a entrevista na íntegra!
HORA DO POVO: Qual é a sua avaliação dos problemas de falta de energia ocorridos recentemente em São Paulo e em alguns outros pontos do país?
ILDO SAUER: Há que explicar os apagões de duas maneiras. Uma, são para os episódios que estão acontecendo agora. Para cada um deles há uma explicação específica. E há uma outra explicação que me parece maior e mais relevante, que é uma análise da fragilidade estrutural no sistema, que está sendo revelada por estes eventos.
Sobre a situação mais imediata, na semana passada nós tivemos ventos acima do esperado, não se esperava ventos acima de 104 km/h, mas, geralmente, postos e redes são dimensionados para aguentar até 150 km/h. Portanto, isso por si só não explicaria a gravidade do problema. Acho que houve uma conjunção de responsabilidades. Todas as prefeituras municipais, inclusive a de São Paulo, são as responsáveis diretas para manter o sistema urbano, fazer a manutenção preventiva das árvores, estado fito sanitário e podas.
Agora, quando as prefeituras não o fazem, cabe às distribuidoras a vigilância imediata sobre o quanto as árvores se aproximam das áreas de risco e tomar as providências. Isso deveria ocorrer pela indústria de riscos que a distribuidora opera, como é o caso da alta tensão.
“Quando as prefeituras não fazem [a manutenção preventiva], cabe às distribuidoras a vigilância imediata sobre o quanto as árvores se aproximam das áreas de risco e tomar as providências. Isso deveria ocorrer pela indústria de riscos que a distribuidora opera, como é o caso da alta tensão”
Portanto, ali, no feriado de finados, houve uma responsabilidade conjunta. Já o episódio do dia 13 de novembro em São Paulo, pelo que o ONS divulgou, foi uma falha, uma instabilidade no sistema de transmissão, que é uma coisa diferente da distribuição.
Isso que nós acabamos de ver em São Paulo, envolvendo a prefeitura e a Enel, é porque lá não houve ação preventiva, com acompanhamento da manutenção preventiva. Porque, se tivesse havido ação preventiva, as consequências seriam muito menores. Não teriam tantas árvores detonadas derrubando as redes.
É importante lembrar que na regulação da Aneel, que é uma regulação à distância, leve, por comparação, não há intervenção direta da Aneel para verificar o estado – e nem tem recursos para isso – dos equipamentos, se os investimentos são feitos. Isso é um problema da filosofia do modelo que foi implantado no Brasil a partir de 1995 e, substancialmente, mantido. Nós tínhamos uma regulação de comando e controle. Isto significava que as empresas tinham que responder ao órgão regulador com seus planos e eram fiscalizados. Agora não. Agora ela usa indicadores indiretos.
“É importante lembrar que a regulação da Aneel, que é uma regulação à distância, leve, por comparação, não há intervenção direta da Aneel para verificar o estado – e nem tem recursos para isso – dos equipamentos, se os investimentos são feitos. Isso é um problema da filosofia do modelo que foi implantado no Brasil a partir de 1995 e, substancialmente, mantido. Nós tínhamos uma regulação de comando e controle. Isto significava que as empresas tinham que responder ao órgão regulador com seus planos e eram fiscalizados. Agora não. Agora ela usa indicadores indiretos”
HP: Você acha que essas mudanças na filosofia de gestão – adoção de políticas neoliberais – são a causa mais de fundo dessas crises?
ILDO: As consequências da semana passada têm a ver com o modelo estrutural, a ausência da verificação direta por atores sobre o que está sendo investido, o que está sendo feito, há uma pressão muito grande sobre a filosofia de gestão das empresas que é atender, no mínimo necessário, os requisitos de verificação da agência reguladora, que está em Brasília, e extrair o máximo de excedente econômico para dar dividendos para os acionistas.
Essa é a lógica da regulação inaugurada a partir de 1995. Os episódios mais recentes, de ontem, nós estamos saindo do nível da distribuição, que mostrou essa fragilidade aqui na capital, para um outro nível de fragilidade, que é o sistema de transmissão. A subestação de Tijuco Preto é a mais importante, que atende a região metropolitana de São Paulo. Ela traz corrente alternada de Itaipu. Há uma outra equivalente, que é de corrente contínua, que vai até Ibiúna, mas que traz um pouco menos de energia, porque é a diferença entre o que o Paraguai consome e a parte de Itaipu que vem para São Paulo. A outra, do Tijuco, pode trazer até 7 mil MW.
Aparentemente houve um episódio na transmissão, de responsabilidade de Furnas Centrais Elétricas, recentemente privatizada. Também tem sido objeto de avisos dos trabalhadores de que lá tem havido demissões e mudanças na lógica dos quadros de manutenção e operação. Há que se verificar isso. Se está havendo problema na principal linha de transmissão, como tem havido lá no Ceará, como nós acompanhamos há um tempo atrás.
HP: Em sua opinião, está havendo problemas na geração de energia?
ILDO: A única coisa que neste momento parece que não está com problemas é a geração. Porque em função das chuvas, depois de muitos anos os reservatórios estão recuperando seu nível, o que não devia ser uma preocupação porque se também na geração nós fizéssemos o planejamento levando em conta o comportamento estocástico da hidrologia, assim como dos ventos e do sol, também nunca haveria problema lá.
HP: Sobre a responsabilidade da Enel na crise. Foi falta de manutenção?
ILDO: Eu não sei responder, nem a Aneel sabe responder. É isso o que tentei dizer antes. A mudança na filosofia, na forma de fiscalizar e controlar. A partir de 1995, nós copiamos o modelo que foi inspirado pela escola de Chicago no Chile, depois transplantado – regulação por incentivos – na Inglaterra e depois trazido para cá. Foi uma mudança de filosofia na forma de organizar os serviços públicos, como eu disse antes. Antigamente havia em todo o mundo o regime de comando e controle, que significava isso? Não importa se a empresa fosse privada ou fosse estatal, ela tinha que mandar seus planos de investimentos e demonstrar previamente como ela ia atender com qualidade a demanda.
“A partir de 1995, nós copiamos o modelo que foi inspirado pela escola de Chicago no Chile, depois transplantado – regulação por incentivos – na Inglaterra e depois trazido para cá”
Ela fazia os investimentos, a amortização desses investimentos e os custos operacionais eram a base para a tarifação. Então havia para o regulador a evidência de quantos cabos foram instalados, de quantos transformadores, de como era o programa de manutenção. Se sabia quanto era gasto com isso. Com o neoliberalismo e o Consenso de Washington, nós passamos a mudar, aquilo que era uma tarefa de engenheiros em campo, para um grau de supervisão leve de reguladores que pegam indicadores indiretos de gabinetes.
Por exemplo, se vocês pegarem indicadores de falha em São Paulo, duração equivalente de corte para uma certa região do centro de SP ou da periferia – com muita assimetria – se você olhar para os indicadores individuais, eles são apurados como? Por registros feitos a partir de reclamações dos consumidores, depois de um certo tempo e por aí vamos. Se você liga para a concessionária, percebe e dificuldade de ser atendido.
Na tarifação também. Ao invés de calcular com base nos investimentos feitos para serem amortizados, criaram, logo depois da reestruturação liberalizante, empresas de referência. Foi uma inspiração chilena. O que era isso? Para atender uma cidade como São Paulo, calculava-se qual seria o investimento necessário para atender hoje, com tecnologia de hoje, aquele mercado, e via quanto era o investimento necessário. A fração deste investimento, a remuneração, taxa de retorno, considerando risco, é o que a ser amortizado todo o ano. Não se olham se os postes são verdadeiros. Aqui em SP, lá na região da Praça da Sé, há postes de ferro fundido que são originários de quando a Light começou a operar aqui em 1899. Rede implantada a partir de 1903 e 1904. Eles foram amortizados e tarifados umas três ou quatro vezes.
Então, a resposta é a seguinte. Eu não posso responder se a manutenção está bem feita, porque a forma de verificar isso é indireta. Ninguém de fora vai a campo ver o estado dos transformadores, é a própria empresa o faz. E note bem que as próprias empresas internamente sofrem uma pressão enorme. O funcionamento das empresas saiu do campo da engenharia e passou para o campo das finanças, como quase todo o regime de financeirização. Então, eles buscam atender no nível que a Anel consegue controlar e quando a Aneel não consegue, ela aplica multas.
“Eu não posso responder se a manutenção está bem feita, porque a forma de verificar isso é indireta. Ninguém de fora vai a campo ver o estado dos transformadores, é a própria empresa o faz. E note bem que as próprias empresas internamente sofrem uma pressão enorme. O funcionamento das empresas saiu do campo da engenharia e passou para o campo das finanças, como quase todo o regime de financeirização”
HP: Então não há mais fiscalização in loco?
ILDO: Não há. Veja, o diretor da Anel disse recentemente que há dez engenheiros no órgão para ir a campo. São mais de 100 distribuidoras, uma multiplicidade de empresas de transmissão, como essa de Furnas, lamentavelmente privatizada, que está mudando sua forma de gerir e há uma pressão interna aos gestores para pagar o máximo de dividendos, atendendo, na medida do possível, esta que eu chamo de ‘regulação leve’, que está em vigor. Evidente que isso não ia dar certo. Há uma contradição entre uma verificação objetiva de equipamentos, sua qualidade, investimentos em manutenção, podas de árvores da Prefeitura da distribuidora, as empresas de transmissão, da mesma forma. Há muitos episódios, desde daquele do Amapá para cá, que vêm sendo registrados. Então, me parece que no curto prazo a gente explica por eventos imediatos.
“Há uma pressão interna aos gestores para pagar o máximo de dividendos, atendendo, na medida do possível, esta que eu chamo de ‘regulação leve’, que está em vigor. Evidente que isso não ia dar certo”
Há uma instabilidade da tensão em Tijuco, por que houve isso? Precisa avaliar o estado da manutenção, porque existe critério de confiabilidade conhecidos. Você pode perder um ou dois dos elementos mais relevantes e ainda assim o sistema tem que estar estável (N-1 e N-2). Não é só o episódio imediato. Nós temos camadas de análise. Uma explica o episódio imediato e a outra é por que a reforma estruturante de 95, com a hegemonia da finança e do controle indireto, nos levou a esse estado, por uma lógica intrínseca. E os dirigentes das empresas são pressionados dos dois lados. De um lado pelos acionistas, que querem extrais o máximo de excedente entregando o mínimo necessário para passa no exame da Anel. E o exame da Anel é isso que nós já falamos.
HP: Há denúncias de cortes de pessoal. A Enel teria demitido de 35% de seu pessoal?
ILDO: A Enel adquiriu o controle acionário através de uma estatal, quase estatal italiana, cujo maior acionista é o governo italiano. ‘Transestatizou’, vamos dizer assim, uma empresa que foi privatizada pelo governo de SP em 1998. Aliás, o contrato de concessão vence dia 28 de novembro. Ela era privada até 1979, quando Geisel a adquiriu por 400 milhões, e passou para o estado de São Paulo. Depois, foi privatizada em 1998. Quando a Enel assumiu, ela mudou a gestão para criar um padrão diferente e é bom destacar que já tinha havido cortes no tempo da AES/Eletropaulo. A redução de quadro, ou a substituição por terceirizados, em geral traz, além do prejuízo imediato da quantidade, uma redução da qualidade, porque os terceirizados, em geral, tiveram menos tempo de treinamento.
“Quando a Enel assumiu, ela mudou a gestão para criar um padrão diferente e é bom destacar que já tinha havido cortes no tempo da AES/Eletropaulo. A redução de quadro, ou a substituição por terceirizados, em geral traz, além do prejuízo imediato da quantidade, uma redução da qualidade, porque os terceirizados, em geral, tiveram menos tempo de treinamento”
HP: Falou-se na falta de planos de contingência durante o apagão de São Paulo. O que você acha?
ILDO: Não adianta fazer plano de contingência só. Há duas coisas. Primeiro se há manutenção preventiva, centrada em confiabilidade, um evento acontecendo, o plano de contingência necessário é bem menor. Tem que ter plano de contingência, mas o principal é evitar que se chegue a esse estado. Nós chegamos a esse estado pela lógica com que passamos a gerir o sistema elétrico e os serviços. Não é surpresa para ninguém a variação de cargas. Estamos sendo alertados há tempos sobre esses eventos. Que temperaturas como esta poderiam acontecer. Então, não pode ser surpresa. É surpresa que árvores podem cair em cima de redes? Não.
HP: Por que isso?
ILDO: Pela lógica, me parece. Não fazem a manutenção preventiva, reduzem os quadros ao mínimo necessário e a Anel nem sabe, como em todas as outras empresas no Brasil. Vocês viram que uma das empresas da Eletrobras, como Furnas, além da Chesf, Eletronorte e Eletrosul, também tiveram um processo semelhante de enxugamento e quadros, e ao mesmo tempo, aumentaram extraordinariamente os bônus de desempenho dos gestores. É uma lógica diferente de operar o serviço de energia, que é um serviço essencial.
HP: Por que o Brasil está com tarifas tão altas e baixa qualidade no serviço?
ILDO: O Brasil detém os melhores recursos naturais para produzir energia e capacidade tecnológica. Então, por que estamos nessa precariedade? O Brasil tem hoje, para pequenos e médios consumidores, entre as três tarifas mais altas do mundo, quando poderia ter uma das mais baixas e com alta qualidade.
“O Brasil detém os melhores recursos naturais para produzir energia e capacidade tecnológica. Então, por que estamos nessa precariedade? O Brasil tem hoje, para pequenos e médios consumidores, entre as três tarifas mais altas do mundo, quando poderia ter uma das mais baixas e com alta qualidade”
A energia é fundamental para a produtividade, para a geração de empregos. Vamos tirando as cascas da cebola e chegamos no âmago do problema, que é a filosofia com que nós reestruturamos o setor a partir de 1995 – e não fomos capazes de fazer uma análise crítica. São sintomas de que algo não vai bem.
HP: E o papel das agências reguladoras?
ILDO: As agências reguladoras foram criadas por exigência do Banco Mundial no bojo do Consenso de Washington, com o objetivo precípuo de garantir o retorno aos investidores.