O problema da retirada da criminalização do caixa 2 eleitoral, no projeto entregue ao Legislativo na terça-feira (19/02) pelo ministro da Justiça, Sérgio Moro, é que, com isso, ele pretende aprová-lo em aliança com os corruptos que se elegeram no Congresso Nacional.
Quem mais estaria interessado em retirar a criminalização do caixa 2 eleitoral do “pacote anticrime” de Moro?
Aliás, isso é quase explícito na declaração de Moro:
“Houve reclamações por parte de agentes políticos de que o ‘caixa 2’ é um crime grave, mas não tem a mesma gravidade de corrupção, crime organizado e crimes violentos. Então, nós acabamos optando por colocar a criminalização num projeto à parte, mas que está sendo encaminhado neste momento. Foi o governo ouvindo as reclamações razoáveis dos parlamentares quanto a esse ponto e simplesmente adotando uma estratégia diferente. Mas os projetos serão apresentados ao mesmo tempo.”
Moro, agora explicitamente, disse, portanto, que a decisão de retirar a criminalização do caixa 2 foi do governo – mas que ele aceitou a retirada.
Em que governo que Moro se meteu!
Para ficar nele, um sujeito como Moro tem que flexibilizar suas convicções, ou, mais precisamente, adaptar-se à falta de convicções dos outros – essa falta quase absoluta, que faz alguns substituírem as ideias (para não falar nos ideais) pelo caixa 2.
Assim, diz Moro: “Caixa 2 não é corrupção. Existe o crime de corrupção e o crime de caixa 2. Os dois crimes são graves.”
Resumindo: Moro aceitou retirar a criminalização do “caixa 2” eleitoral porque “parlamentares”, “agentes políticos” reclamaram com o governo.
Que “parlamentares”, que “agentes políticos”?
Obviamente, os que praticam o “caixa 2” nas eleições, os que se elegeram através dessa prática ilegal, os que se serviram de dinheiro não declarado à Justiça Eleitoral, ou foram intermediários de recursos assim repassados, ou pretendem fazê-lo (somente para um exemplo, v. Sérgio Moro e o caso Onyx Lorenzoni/JBS).
Certamente, não seriam aqueles que não praticam o caixa 2 – ou que são a favor da sua criminalização – que fariam pressão para que Moro retirasse o item do seu projeto…
Quanto a que “os projetos serão apresentados ao mesmo tempo”, etc., se fosse assim tão fácil, é óbvio que Moro não teria fatiado o projeto original para retirar dele, exatamente, a criminalização do “caixa 2”.
Se retirou essa parte do projeto, é porque sabe que é difícil aprová-la.
Mas retirá-la significa aliar-se ou ceder àquilo que sempre Moro combateu.
Não é uma questão de “estratégia”. Ou, talvez seja, em outro sentido: o objetivo da “estratégia” é combater a corrupção ou fazer concessões aos corruptos?
Moro não fez algo semelhante – pelo contrário – quando, em 2016, alguns políticos e partidos quiseram “anistiar” o caixa 2. Nessa época, ele foi um dos principais opositores a essa tentativa – de resto, corrupta até os cueiros – que, por muito pouco, não foi aprovada (v. Golpe da bandidagem para anistiar caixa 2 perde no Congresso e Querem é anistiar crimes pesados, adverte Janot).
MEDIDAS
O ponto de vista de Moro sobre essa questão sempre foi claro:
“Tem que se falar a verdade, caixa dois nas eleições é trapaça, é crime contra a democracia. Alguns desses processos me causam espécie quando alguns sugerem fazer uma distinção entre corrupção para fins de enriquecimento ilícito, e a corrupção para fins de financiamento de campanha eleitoral. Para mim, a corrupção para financiamento de campanha eleitoral é pior que para o enriquecimento ilícito. No caso do enriquecimento ilícito, você coloca o dinheiro na Suíça e não prejudica mais ninguém. Agora, se eu utilizo para ganhar uma eleição, para trapacear uma eleição, isso para mim é terrível” (abril/2017, conferência na Universidade de Harvard).
Dois anos depois, Moro descobriu que “o ‘caixa 2’ é um crime grave, mas não tem a mesma gravidade da corrupção”.
A criminalização do caixa 2 era (e é) a oitava das 10 Medidas Contra a Corrupção, propostas pela força-tarefa da Lava Jato e apoiadas – ou, mais que isso, inspiradas – por Moro, quando era juiz federal (cf. Moro defende aprovação de medidas contra corrupção).
Porém, por que a criminalização do caixa 2 eleitoral é importante?
Se ele fosse uma fonte de virtudes, um repositório de santidades abençoadas, não haveria razão para criminalizá-lo. Pelo contrário, se fosse assim, teríamos que legalizá-lo.
Evidentemente, o motivo da criminalização é porque grande parte da corrupção, na área política, é através do uso de caixa 2 – recursos ilícitos que não aparecem, que são ocultos, que são desconhecidos dos eleitores.
No Brasil de hoje, caixa 2 eleitoral é um veículo para a corrupção e para o abuso do poder econômico nas eleições.
Podem existir exceções – como tudo na vida – mas esse é o caso geral, habitual, reiterado, costumeiro.
Entretanto, disse Moro que “caixa 2 não é corrupção. Existe o crime de corrupção e o crime de caixa 2”.
Remeter tal questão para um debate sobre o conceito de caixa 2, é fugir do assunto. Alguém poderia escrever uma tese sobre o papel ou o caráter do caixa 2 no capitalismo contemporâneo ou na política hodierna – mas isso não tem qualquer importância para o que realmente importa na criminalização do caixa 2 eleitoral.
O problema é concreto: trata-se de como o caixa 2 é usado nas eleições do Brasil, no momento atual, quando uma casta política apodreceu tanto que ex-ministros, ex-deputados, ex-governadores, ex-presidentes da Câmara e até um ex-presidente da República passaram a compor a população carcerária do país – graças, inclusive, à ação de Moro como juiz federal.
Qual a razão do uso de caixa 2 atualmente nas eleições?
Será para a passagem de recursos lícitos?
Moro não acredita nisso, tanto assim que não reclamou quando a criminalização do caixa 2 foi incluída nas 10 medidas contra a corrupção.
No entanto, aceitou a retirada da criminalização, no projeto que ele mesmo entregou ao Congresso na terça-feira.
PROJETO
O “projeto anticrime” de Moro tem vários méritos. É bobagem dizer que ele não enfrenta os problemas que causam a epidemia de crimes que assola o país, pois seu objetivo não é esse.
Nenhuma lei ou projeto de segurança pública consegue resolver problemas sociais e econômicos – nem por isso o enfrentamento da questão nesse nível, policial, judicial e legal, deve ser deixado de lado.
Quais são os pontos positivos do projeto de Moro?
1) Define a execução da pena após a condenação em segunda instância, acabando com a situação em que só os pobres, sem condições de pagar advogados que protelam a execução, vão para a cadeia; se isso é importante em geral, mais ainda nos casos de corrupção (v. Por que a prisão após a segunda condenação é legal, justa e necessária).
2) Explicita que os recursos ao STJ (“recurso especial”) e ao STF (“recurso extraordinário”) não têm efeito suspensivo da execução da pena, com algumas exceções, nem podem ter caráter protelatório.
3) Estabelece regime fechado para criminosos reincidentes, inclusive em crimes de corrupção e peculato.
4) Determina o confisco, nos casos de corrupção, tráfico de drogas e associação criminosa, de toda a propriedade dos criminosos que eles não conseguirem demonstrar que tem origem lícita.
5) Estabelece um prazo para o pagamento das multas – algo importante nos casos de corrupção – e estende a elas os critérios de correção monetária da dívida ativa da União.
6) Institui uma ouvidoria para as denúncias de crimes – por ação ou omissão – contra a administração e o interesse público.
7) Esboça regras mais nítidas para os presídios de segurança máxima.
8) Permite o desmembramento de ações em crimes eleitorais, com a divisão do julgamento daqueles que não têm foro privilegiado e o envio daqueles que têm essa prerrogativa à instância competente.
9) No caso do Tribunal do Júri, a execução da sentença seria após a condenação, ainda que existisse recurso.
10) Limita a possibilidade de certos recursos (“embargos infringentes”) para impedir a protelação nos processos.
11) Redefine o conceito de “organização criminosa” para incluir, explicitamente, as “milícias”.
Ao lado disso, Moro, infelizmente, fez uma concessão desastrosa (é a palavra que nos vem na cabeça) à estupidez da Família Bolsonaro e seu entorno. Em seu projeto, os “excessos puníveis” tornam-se impuníveis, pois:
“O juiz poderá reduzir a pena até a metade ou deixar de aplicá-la se o excesso decorrer de escusável medo, surpresa ou violenta emoção.”
Já abordamos detidamente essa questão (v. A contribuição da família Bolsonaro ao projeto do Dr. Moro).
Aqui, acrescentaremos que é uma contradição insustentável explicitar que as “milícias” são organizações criminosas, e, ao mesmo tempo, colocar na lei um dispositivo que permite o comportamento “miliciano” dentro da polícia, ao conceder impunidade a supostos “excessos”.
É tão insustentável, que torna-se evidente que, nesse dispositivo, houve um enxerto dentro do projeto. Ou Moro aceitou ou ele próprio fez esse enxerto, para facilitar ou provocar a aprovação de Bolsonaro & cia.
Que Moro tenha se dobrado a essa pressão – ainda que encontre alguma racionalização para isso – não está à altura dos serviços que prestou ao país quando era juiz federal. E, também, mostra que estávamos certos, em nosso comentário, após sua aceitação do convite de Bolsonaro para ser ministro (v. Bolsonaro quer usar Moro para dar respeitabilidade de fachada a um governo sem nenhuma).
Aliás, o fatiamento do “projeto anticrime” para retirar dele a criminalização do caixa 2 eleitoral é um enxerto – ou, melhor, uma poda – do mesmo tipo.
O fato é que, depois de aceitar o convite de Bolsonaro para o Ministério, Sérgio Moro, para conseguir ficar no governo, tem “aceitado” outras coisas: desde as transgressões de Lorenzoni, até o enxerto a que acabamos de nos referir, e, agora, a poda da criminalização do caixa 2, no seu “projeto de lei anticrime”.
É um preço muito alto – a dilapidação crescente do prestígio adquirido no combate à corrupção – para continuar em um governo cujo núcleo, a Família Bolsonaro, é composto de elementos que parecem, mental e politicamente, neandertais que saíram ontem de alguma caverna.
Para não falar nos casos de “baixa corrupção” que pululam a todo momento: desde o Queiroz, feitor do laranjal do próprio Bolsonaro, até os seus congêneres, e a lista já está grande demais para ser citada de passagem.
Naturalmente, Moro sabe o que é isso – e sabe que a diferença entre a “baixa corrupção” e a “alta corrupção”, é apenas o tamanho do cofre a que o corrupto tem acesso.
LEIS
Atualmente, “caixa 2 eleitoral” é um crime incluído como “falsidade ideológica” no seguinte dispositivo do Código Eleitoral, que data de 1965 (Lei nº 4.737):
“Art. 350. Omitir, em documento público ou particular, declaração que dele devia constar, fazer inserir ou nele inserir ou declaração falsa ou diversa da que devia ser escrita, para fins eleitorais:
“Pena – reclusão até cinco anos e pagamento de 5 a 15 dias-multa, se o documento é público, e reclusão até três anos e pagamento de 3 a 10 dias-multa, se o documento é particular.”
O artigo é, realmente, demasiado genérico – e provoca a impressão (aliás, evidentemente, correta) de que não foi elaborado para os problemas da época atual.
Moro propôs, no “projeto de lei anticrime”, acrescentar outro artigo ao Código Eleitoral:
“Art. 350-A. Arrecadar, receber, manter, movimentar ou utilizar qualquer recurso, valor, bens ou serviços estimáveis em dinheiro, paralelamente à contabilidade exigida pela legislação eleitoral.
“Pena – reclusão de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, se o fato não constitui crime mais grave.
“§ 1º Incorre nas mesmas penas quem doar, contribuir ou fornecer recursos, valores, bens ou serviços nas circunstâncias estabelecidas no caput.
“§ 2º Incorrem nas mesmas penas os candidatos e os integrantes dos órgãos dos partidos políticos e das coligações quando concorrerem, de qualquer modo, para a prática criminosa.
“§ 3º A pena será aumentada em 1/3 (um terço) a 2/3 (dois terços), no caso de algum agente público concorrer, de qualquer modo, para a prática criminosa.”
Realmente, bem mais adequado e próprio à situação presente.
No entanto, ao levar seu projeto à Câmara, na terça-feira, o texto que Moro lá entregou fora amputado dessa parte.
Segundo disse (v. acima), ela seria apresentada como lei separada.
Resta saber como esse fatiamento facilitará a aprovação dessa parte, se Moro, supostamente para garantir a aprovação do projeto, teve que tirar dele, precisamente, a criminalização do caixa 2 eleitoral.
C.L.
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