
O crescimento estarrecedor no número de crianças e adolescentes mortos por policiais militares em São Paulo escancara uma crise na segurança pública sob a gestão do governador Tarcísio de Freitas (Republicanos). Entre 2022 e 2024, houve um salto de 120% nas mortes de jovens de 10 a 19 anos causadas por PMs — de 35 casos registrados em 2022, o número foi para 77 em 2024, segundo a segunda edição do relatório “As Câmeras Corporais na Polícia Militar do Estado de São Paulo: mudanças na política e impacto nas mortes de adolescentes”, produzido pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) e o Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP).
Os casos de Gregory Ribeiro Vasconcelos, de 17 anos, morto com sete tiros — quatro pelas costas — e Ryan da Silva Andrade dos Santos, de apenas 4 anos, atingido no abdômen enquanto brincava, ambos assassinados no mesmo dia por PMs sem câmeras corporais no Morro do São Bento, em Santos, ilustram a brutalidade que tem marcado essa nova fase da letalidade policial. “É um absurdo que essas crianças e adolescentes estejam perdendo a vida nas mãos de quem deveria protegê-los”, afirma Adriana Alvarenga, chefe do escritório do Unicef em São Paulo. “As vidas perdidas afetam a família, a comunidade e a escola, e criam um ambiente negativo para a população como um todo, em especial para aqueles que são nosso presente e nosso futuro.”
Entre 2023 e 2024, a violência policial aumentou consideravelmente. Somente em 2024, 649 pessoas foram mortas por PMs em serviço, número que representa um aumento de 153,5% em relação a 2022, quando foram 256. Esse avanço foi mais intenso entre adolescentes e jovens adultos: as mortes de pessoas com mais de 20 anos cresceram 157%, enquanto a letalidade entre os de 10 a 19 anos subiu 120%. Entre esses jovens, 67% das vítimas eram negras, o que escancara o viés racial da violência. Crianças e adolescentes negros têm uma taxa de mortalidade 3,7 vezes maior do que brancos. “Esse número demonstra um pouco da nossa sociedade, que é uma sociedade racista, que enfrenta o racismo em suas diferentes esferas. É preciso investir em informação, em treinamento dos agentes policiais para que a abordagem não seja por características físicas, mas por atos suspeitos”, diz Alvarenga.
Essas mortes agora representam a segunda principal causa de morte violenta entre adolescentes no estado, atrás apenas de homicídios dolosos. “1 a cada 3 mortes violentas nessa faixa etária acontece devido a ações de policiais militares em serviço. Esse cenário reforça a necessidade urgente de investirmos em políticas públicas de segurança que protejam, de fato, a vida de meninos e meninas, e que garantam prioridade na investigação e responsabilização dos culpados”, alerta Adriana Alvarenga.
O aumento ocorre no mesmo período em que o governo Tarcísio promoveu mudanças no uso das câmeras corporais, instrumento que havia sido responsável por uma queda de 66,3% nas mortes de adolescentes entre 2019 e 2022. Desde 2022, medidas de controle foram desmontadas. A Corregedoria da PM teve o comando trocado por Guilherme Derrite, atual secretário da Segurança Pública — capitão reformado da PM, ex-integrante da Rota e conhecido por seu histórico de uso letal da força. Houve redução de 46% nos Conselhos de Disciplina e de 48% nos autos de prisão em flagrante de policiais militares. Para afastar agentes envolvidos em violações graves, agora é necessário aval do subcomandante-geral da PM, o que, na prática, compromete a independência da Corregedoria.
Apesar de o governo alegar que ampliou em 18,5% o número de câmeras corporais, o novo modelo de equipamento permite gravações apenas quando acionadas pelo policial ou pela central, abandonando o registro ininterrupto. “Se hoje já há policiais tentando obstruir as gravações ou deixando as câmeras de lado, o que deve acontecer quando retirarmos essa gravação ininterrupta?”, questiona Samira Bueno, diretora-executiva do FBSP. Ela reforça que “as recentes mudanças nas políticas de controle de uso de força resultaram no crescimento da letalidade policial tanto nos batalhões que utilizam as câmeras como nos demais, na evidência de que a tecnologia é importante, mas precisa estar associada a outros mecanismos de controle”.
A análise das imagens captadas pelas câmeras também é problemática: segundo levantamento da Defensoria Pública com 457 pedidos de acesso a gravações, a PM não respondeu a quase metade dos casos. Em apenas 21,9% deles foi possível avaliar as imagens.
A falta de responsabilização é sentida pelas famílias das vítimas. Os PMs envolvidos nas mortes de Gregory e Ryan voltaram ao trabalho. “Quero justiça e eu quero que quem fez isso pague, que eles não fiquem na rua fazendo o que der na telha só porque eles usam farda, não quero que nenhuma outra família passe pelo o que eu estou passando”, disse a irmã de Gregory.
Para o Unicef e o FBSP, a política de controle da letalidade em São Paulo, que havia se tornado referência internacional entre 2019 e 2022, está sendo desmontada. “É importante compreender que não são só as câmeras que resolvem o problema. Então tem um conjunto de fatores, de políticas públicas que precisam ser implementadas. Isso tem a ver com as comissões de ética e de disciplina que existem já como mecanismo da Secretaria da Segurança Pública, para entender o que vem acontecendo, analisar os casos e identificar medidas que precisam ser tomadas com relação ao policial”, afirma Adriana Alvarenga.
O governo, por sua vez, afirma que não admite “desvios de conduta ou excessos” e que pune “com absoluto rigor todas as ocorrências dessa natureza”, alegando a prisão de 550 policiais e a demissão ou expulsão de outros 364 desde 2023.
Mesmo com essa resposta oficial, o avanço da violência policial no estado exige reflexão urgente: o modelo atual não tem garantido o básico — o direito à vida de crianças e adolescentes.
Enquanto os números disparam e os controles se enfraquecem, famílias como a de Gregory e Ryan seguem em busca de justiça. “Quero justiça e eu quero que quem fez isso pague”, diz a irmã de Gregory. “Não quero que nenhuma outra família passe pelo o que eu estou passando.”
Leia a íntegra do estudo:
https://forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2025/04/cameras-corporais-pmsp-2ed.pdf